‘Políticas públicas precisam integrar comunidades’
Lucas Zacari
20 de março de 2023(atualizado 28/12/2023 às 17h19)Em entrevista ao ‘Nexo’, o pesquisador e organizador do Guia do Urbanismo Social Carlos Leite fala sobre a importância de unir organização social e atuação do governo em territórios mais vulneráveis
Temas
Compartilhe
Vista aérea da unidade Compaz Governador Eduardo Campos, no Recife, uma das iniciativas de urbanismo social no país
Voltado para a urbanização de comunidades e outros territórios vulneráveis, o urbanismo social propõe pensar aspectos do planejamento e das transformações desses bairros com apoio não só do poder público mas a partir de uma “governança compartilhada” com moradores, terceiro setor e academia, entre outros.O termo foi cunhado a partir da experiência da cidade colombiana de Medellín na década de 2000, mas acumula exemplos em outros países, entre eles o Brasil.
Alguns desses exemplos são incluídos e debatidos no Guia de Urbanismo Social, publicação lançada pelo Insper e pela Diagonal, consultoria em gestão socioambiental, nesta segunda-feira (20).
“Os processos de urbanização de favelas no Brasil são muito morosos e acabam se interrompendo. Muda uma gestão, interrompe, para, retoma parcialmente. O urbanismo social vem trazer também entregas mais rápidas”, disse ao Nexo o organizador do guia, Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. A publicação, distribuída de forma gratuita , pretende ser um material de referência para estruturar ações e construir políticas públicas na área.
Nesta entrevista para o Nexo , Leite explica os principais pontos do urbanismo social e como essa visão pode contribuir para o desenvolvimento de cidades mais integradas e inclusivas, tanto por parte das lideranças comunitárias como dos gestores públicos.
Carlos Leite O urbanismo social, com esta nomenclatura, com esse nome, nasceu em Medellín [cidade colombiana] em 2004, com o prefeito Sérgio Fajardo, que era um acadêmico, matemático e professor, e nunca tinha entrado na vida política. E ele aproveita para montar um secretariado só de técnicos e acadêmicos e, como principal secretário, ele chama o urbanista Alejandro Echeverri. Os dois juntos montam, logo no início da gestão, a reinvenção de Medellín por meio da educação, cultura e urbanismo.
Eles cunham essa expressão, urbanismo social, para levar tudo que as pessoas precisam nos territórios mais frágeis, que eles lá chamavam de comunas, as favelas que estão nos morros de Medellín. Isso foi super exitoso, durou quase 15 anos, uma coisa raríssima na América Latina, e virou um case.
O urbanismo social trata da urbanização de favelas, que é algo que a gente já tinha, o caso pioneiro é o programa Favela-Bairro , do Rio de Janeiro, na década de 90. Mas os colombianos acrescentam alguns ingredientes, principalmente em como fazer: governança compartilhada, junto com academia, terceiro setor, comunidades locais. É um programa muito amplo que vai além das necessidades básicas que já estavam e continuam estando nos programas de urbanização de favelas.
O urbanismo social de Medellín começou a fazer entregas rápidas, equipamentos públicos de altíssima qualidade no território, que lá foram as bibliotecas e as unidades de vida articulada, que são grandes equipamentos públicos multifuncionais, ampliados, de acesso público, ele é um ponto de encontro, convivência, discussão comunitária.
Também ficaram muito famosos os metrocables , que são os teleféricos que sobem do metrô e da área central de Medellín para chegar nessas favelas. Foi a primeira vez que essa comunidade pôde ter acesso à cidade melhor infraestruturada, o que fez uma enorme diferença na qualidade de vida das pessoas.
É um pacote completo de intervenções que envolve questões de sustentabilidade e mudanças climáticas, mobilidade, urbanização, infraestrutura, habitação social, equipamentos públicos, espaços públicos, tudo atrelado a um modelo de governança compartilhada.
Carlos Leite Um caso que é muito inspirado em Medellín, são as Utopias em Iztapalapa , na Cidade do México. São, de novo, grandes equipamentos que mesclam educação, cultura, esportes e outras atividades no meio do território, fazendo também a urbanização em volta. Eles já tem oito equipamentos desses em muito pouco tempo, em quatro anos.
Infelizmente, os processos de urbanização de favelas no Brasil são muito morosos e acabam se interrompendo. Muda uma gestão, interrompe, para, retoma parcialmente. O urbanismo social vem trazer também entregas mais rápidas. Se tem uma vontade política naquele momento, naquela gestão, é possível já começar a fazer entregas que a população começa a ter aderência e ver a diferença.
O Compaz [Centros Comunitários da Paz], no Recife, é um exemplo, já tem três gestões de continuidade, algo raro no Brasil. O responsável pelo projeto é Murilo Cavalcante, que não é urbanista, isso é interessante falar. O Compaz nasce na Secretaria de Segurança, com uma visão não policial da segurança, mas sim de acolhimento e empoderamento da população local para melhorar os índices de violência urbana. O Murilo está fazendo um trabalho muito bacana, já inaugurou cinco desses Compaz, é super inspirado em Medellín.
Outro que se inspirou no Compaz são os Territórios da Paz e Usinas da Paz no estado do Pará. É uma iniciativa da última gestão do governo do estado, mas já estão também acho que com quatro ou cinco unidades inauguradas.
Depois, o Programa Mais Vida nos Morros, também no Recife. Esse é um pouco diferente, porque ele não traz um investimento tão potente, não traz equipamentos, mas faz um trabalho mais de urbanismo tático, de criar espaços públicos, portanto ele é mais barato, mas é muito mais ágil e rápido, já estão na 56ª favela nos morros de Recife. E esse tem um aspecto lindíssimo que é o trabalho com crianças. Foi feita uma parceria com a holandesa Fundação Bernard van Leer e se criou um programa chamado Urban 95, mostrando como o território e a cidade educa a criança. O urbanismo e a cidade faz parte da formação infantil.
Este conjunto de casos do urbanismo social se completam e andam junto com os programas mais tradicionais que já existiam de urbanização de favela. Como exemplo, há dois casos que colocamos no guia, que são o programa da Ilha de Deus, no Recife, e o de Braços Abertos, em Boa Vista, Roraima. O que eu acho também um diferencial porque é um lugar que não não aparece muito nas intervenções públicas aqui no Brasil, além de distante, com muito menos recursos, e tivemos ali uma prefeita pioneira que fez um trabalho pioneiro.
Mas é importante ressaltar que nós sempre tentamos contextualizar os casos que trazemos no guia, que eles não são de fácil replicabilidade. Então a gente sempre procura alertar e falar “olha, aprende-se com os erros e com os acertos”.
Carlos Leite O Estado, enquanto Estado, óbvio que tem o papel primordial no urbanismo, principalmente nos países de desenvolvimento mais recente e tardio. Vamos lembrar que América Latina é o continente que mais se urbanizou no século 20, teve um processo de urbanização dramático.
O problema dessa transformação radical está agora conosco no século 21. Falta tudo: falta mobilidade, falta transporte, falta habitação. Tem um monte de gente morrendo em cada deslizamento de morro que acontece, como infelizmente a gente viu esse mês em São Paulo, as cidades estão alagando . O problema não é da natureza, o problema é nosso, da sociedade, que fez um monte de coisa errada e não preparou os territórios para uma vida adequada em todos os aspectos.
O Estado sempre tem que ser o principal provedor, de moradia digna, de estrutura básica e por aí vai, isso de promoção de políticas públicas, planos e ações efetivas. O Estado sempre terá a obrigação de melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão nos territórios periféricos, infraestrutura, saúde, educação, equipamento público, urbanismo, urbanismo social, urbanização de favela.
O que o urbanismo social traz de novidade também é que uma sociedade que não fica sempre à espera ou refém das ações públicas e das suas descontinuidades é aquela que, de alguma maneira, consegue se organizar. Ou seja, a governança compartilhada, a comunidade local organizada, fazendo planos de bairro, montando colegiados, se organizando, junto, se possível, com outras instituições da sociedade civil organizada, do terceiro setor, da academia, para que o que está sendo discutido e planejado de fato possa ser entregue pelos governos.
Em São Paulo, tem um caso muito particular e semelhante, que é o Jardim Lapena. É uma comunidade vulnerável na zona leste, no distrito de São Miguel, e que tem um diferencial incrível que é a presença de uma organização do terceiro setor, a Fundação Tide Setubal , há 15 anos. Trabalhando com eles, contratou e desenvolveu um plano de bairro.
Nós precisamos muito no Brasil, nesses territórios, de políticas públicas que se integrem e se territorializem. Esses são outros dois dramas no Brasil. Temos muitos planos e muita pouca coisa sai do papel. E a outra coisa é a integração. Infelizmente temos esse drama também nas nossas gestões, a Secretaria de Saúde não conversa, não dialoga com a da Educação, que não dialoga com a do Transporte Público.
Carlos Leite Em um trabalho correto, exitoso, como é que se começa a trabalhar? Vamos dar início a um plano de ação local, dentro de um plano de bairro. Muito bem, temos duas avenidas que eu costumo dizer que não são paralelas, duas rotas que vão sempre se cruzando, se encontrando e dialogando.
Uma, a participação comunitária organizada. Vamos organizar aí a comunidade local, formar um colegiado desse território, vamos ver onde essas pessoas podem se encontrar com frequência. Em um cenário correto, ideal, temos uma equipe da prefeitura que trabalha com questões sociais juntas. E essa comunidade, a partir das diversas oficinas e escutas, vai formular um diagnóstico social participativo. O que a comunidade está dizendo, as vozes do território, as vozes da comunidade, dos agentes locais. Estamos sentindo falta disso, estamos vivenciando esses problemas, podem ser problemas territoriais ou não.
A outra rota está sendo feita por um conjunto de técnicos, arquitetos, urbanistas, engenheiros, pessoal que trabalha com as questões ambientais, de transporte, vamos fazer um diagnóstico físico-territorial. Essas duas rotas vão andando. Chega um momento, vamos fechar um diagnóstico, sempre as duas equipes conversando juntas. Fechamos o diagnóstico, está aqui o conjunto de principais demandas e problemas.
O passo seguinte, vamos começar a formular diretrizes de atuação. Ações de curto prazo, ações de médio prazo, ações de longo prazo. Numa situação ideal, se perguntar qual secretaria que vai aportar isso, que secretaria vai aportar aquilo, o que é e quais são as questões intangíveis que também podem ser endereçadas. Aí vai se formulando um plano de ação local.
Carlos Leite Nesse caso, eu diria que nem é um tema específico do urbanismo social , mas eu diria que ele é da questão da urbanização de maneira geral e principalmente nos territórios de maior vulnerabilidade social.
Em uma situação ideal, nenhum desses lugares deveria ter sido urbanizado. Dito isso, a culpa é das pessoas? Não, claro que não, as pessoas humildes, pobres vão pra esses lugares por absoluta carência de oportunidades, não têm onde morar, é uma situação de sobrevida.
A situação é essa, não adianta ficar reclamando que a culpa é da natureza ou das pessoas que vão ocupar aquele lugar. Tem um contexto que explica isso, inclusive um contexto muito grave de falta de cuidado, dos diversos governos ao longo de 130 anos, que não fizeram a lição de casa, não proveram habitação para as pessoas em lugar decente.
Então hoje trata-se de olhar para esses lugares, tendo esse contexto sempre, esse entendimento, não se trata de chegar e culpar as pessoas, expulsá-las de lá, e tirar todo mundo. Isso é retrógrado, é uma política higienista. A situação é trabalhar com a situação real, o que é que pode ser feito é de maneira urgente pra gente resolver problemas ambientais.
Um dos dramas também é que nós não temos ações coordenadas entre prefeituras e governo do estado. Vamos pegar o litoral norte [paulista] agora, o drama que aconteceu lá. O que que deveria ter sido feito? Ações corretas da gestão municipal junto com o governo do estado. Porque dificilmente um município do tamanho de São Sebastião teria condições financeiras de fazer todas as obras e intervenções dos morros para cuidar das questões de excesso de chuvas. É necessário olhar para as questões ambientais atuais, a relocação de algumas comunidades, a oferta de habitação social para essas comunidades e tratar ali dos deslizamentos.
Demanda uma articulação política e também, no final do dia, sempre uma vontade política. E para completar o drama, o mercado imobiliário atua com as suas demandas, ocupando lugares que também não deveriam ter sido ocupados ou não deveriam ter deixado construir tanto quanto se deixou.
Carlos Leite Eu acho que esse também é um diferencial que a gente conseguiu aportar no guia. São temas que não são comuns, infelizmente de aparecer nas publicações de urbanização de favela, mas que fazem toda a diferença.
O capítulo de Mulheres e Territórios foi todo ele escrito por um Laboratório de Territórios e Mulheres, que é constituído por oito lideranças comunitárias, mulheres de favelas e de movimentos de moradia. Carmem Silva talvez seja mais conhecida. Vamos deixar as mulheres que estão lá, atuando na linha de frente nas ocupações, nos movimentos de moradia, nas favelas, trazerem um capítulo inteiro dizendo, do que elas enfrentam, das dificuldades, e escrever um capítulo inteiro.
Então acho que assim, tem o diferencial de serem elas, escrevendo um assunto delas, e o fato de que são pessoas não acadêmicas especialistas. São moradoras de lá, que atuam lá há 10, 15, 20, 30 anos. As mulheres na favela sempre são agentes de transformação fundamentais, pelas dificuldades que enfrentam de tudo. São pessoas que estão lá fazendo um trabalho incrível, com uma diversidade, não só de um único território.
Eu diria que tem também um trabalho muito importante sobre saúde pública e crianças, que é a gente tornar essas frentes aí menos invisíveis. Os agentes de saúde pública nas favelas são fundamentais, tem muitos territórios hoje que são dominados, infelizmente, pelo tráfico que ninguém entra, exceto agentes de saúde.
Heliópolis está aí fazendo um Censo deles, porque o Censo de 2010 está completamente desatualizado. É a maior favela de São Paulo e, pelo Censo, tem 100 mil pessoas aproximadamente morando lá, mas todas as lideranças comunitárias sabem que hoje deve ter quase o dobro disso. Então assim, isso é muito relevante porque quer dizer que tem muita casa e muita gente que está invisível. Como é que você vai formular políticas públicas, serviços públicos, equipamentos públicos, se você não tem um diagnóstico, você não sabe nem quantas pessoas moram?
NEWSLETTER GRATUITA
Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia
Gráficos
O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você
NAVEGUE POR TEMAS
ponto. futuro
Navegue por temas