Favoritos

Martha Batalha


27 de maio de 2023

Temas

Compartilhe

Foto: Devin Stinson

A convite da seção ‘Favoritos’, a jornalista e escritora Martha Batalha indica 5 livros que mostram as possibilidades da língua portuguesa

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Há livros que seduzem pelo enredo e livros que seduzem pelo estilo. Os do segundo grupo merecem a releitura. E sem pretensões, apenas para se envolver pela beleza da língua. Os dessa lista eu releio como algumas pessoas leem a Bíblia, abrindo em qualquer página e deixando-me levar. Neles o estilo se ressalta pela construção e ritmo das sentenças, pela escolha precisa de palavras ou pelos detalhes corretos. São livros que confortam e me recordam sobre as possibilidades da língua portuguesa.

O Evangelho segundo Jesus Cristo

José Saramago (Companhia das Letras, 1991)

É meu livro preferido do Saramago, mas em termos de elegância de prosa também poderia citar “Levantado do chão” ou “Memorial do convento”. Os três apresentam uma escrita mais elaborada e barroca, diferentemente de livros mais recentes, como o também ótimo “Ensaio sobre a cegueira”. Aqui o português reconta a história de Jesus Cristo despindo o personagem de qualquer toque divino. É um homem comum, e ao acompanhar sua trajetória o leitor se vê questionando as arbitrariedades da Igreja e o culto ao sofrimento. Há em Saramago a beleza no cerne de cada sentença e os socos esporádicos da mensagem certeira. Não vou ser má de revelar a última frase do livro, mas nem o arrebatamento causado pela leitura das mais de 400 páginas anula o baque final.

Leite derramado

Chico Buarque (Companhia das Letras, 2009)

Esse livro é uma delícia. Quem bem conhece a história do Brasil vai se divertir com a forma do Chico de recontá-la através da decadência do protagonista. Este é um homem de uma família tradicional, capaz de manter os privilégios enquanto as relações cordiais prevalecem sobre a própria incompetência. Agora ele é um velho doente, contando de um leito de hospital suas memórias para a enfermeira da vez, ou para a filha, em monólogo. Ele se confunde e delira, mas há uma clara linha narrativa unindo a abastada infância num chalé em Copacabana até a última morada por caridade, no puxadinho de uma Igreja Evangélica na Baixada. o autor usa palavras precisas que funcionam como um afago na minha memória. Neste livro, por exemplo, ele usa “croqui” em vez de desenho, “pequerrucha” em vez de pequena, “matutando” em vez de pensar, “pernóstico” em vez de pedante. Por fim, Chico deve ser lido com alguma malícia e atenção para as ironias e sutilezas. É divertido.

A bolsa amarela

Lygia Bojunga (Casa Lygia Bojunga, 2013)

Já aqui não há ironia ou malícia. O texto de Lygia é límpido, direto e sincero. Um texto que em si representa a pureza e simplicidade da infância. Nessa história, uma menina guarda numa bolsa amarela as suas vontades e os personagens criados pela imaginação. A protagonista Raquel se mostra no início do livro incomodada com o seu lugar na família. Ela nasceu bem depois dos irmãos e escuta sempre que não deveria ter nascido porque a família não tinha muito dinheiro e a mãe já estava cansada. A personagem conclui que as crianças só deveriam nascer quando a mãe delas quer que elas nasçam. Ou seja, um livro infantil brasileiro, escrito nos anos 1970, falando abertamente sobre o direito de escolha da mulher em continuar ou não uma gravidez.

A casa do meu avô

Carlos Lacerda (Nova Fronteira, 2005)

Vai ser muito avô para pouco texto, mas me acompanhem: na casa do meu avô havia “A casa do meu avô”, único título da biblioteca que desprezei por ter ouvido a história dos moradores de rua jogados no rio Guandu a mando de Lacerda. Meu avô morreu, eu herdei os livros e doei a obra, em versão especialíssima em capa dura e fotos coloridas. Então me chegou nem sei como uma modesta edição encardida, com páginas mais soltas que as cartas de um baralho. Foi uma surpresa. O ex-governador da Guanabara foi muitas coisas, entre elas um excelente escritor. A riqueza de detalhes deste livro de memórias é extraordinária: é possível ver, cheirar, sentir e ouvir com o autor, caminhar com ele pela casa do avô distante. A leiturame faz pensar se não teria sido melhor para o Brasil e para o próprio Lacerda se, em vez de competir na política, ele tivesse competido com Rubem Braga pelo título de grande cronista brasileiro.

O coronel e o lobisomem

José Cândido de Carvalho (Companhia das Letras, 2014)

Não é fácil para um escritor elaborar um estilo e mantê-lo vivo durante toda a extensão de um romance. José Cândido de Carvalho consegue, com sentenças lapidadas por um fino humor. É um livro hilário e elegante, sobre um coronel em Campos dos Goytacazes às voltas com um lobisomem. José Cândido consegue melhorar as frases sem ser pedante ou cafona. Por exemplo, em vez de o protagonista dizer “comi muito e fiz a sesta”, ele diz “comi por sete bocas e dormi meu depois-do-almoço na sombra das cajazeiras.” Em tempos modernos, marcados pela linguagem simples e abreviada das redes sociais, isso nutre.

Martha Batalha nasceu em Recife e foi criada no Rio de Janeiro. Trabalhou como repórter nos principais jornais cariocas e fundou a editora Desiderata. Mudou-se para Nova York e trabalhou no mercado editorial americano. Seu primeiro romance, A vida invisível de Eurídice Gusmão, foi adaptado para o cinema, representou o Brasil no Oscar e foi premiado em Cannes. Martha é colunista do jornal O Globo, e foi finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo e semifinalista do Oceanos e do Dublin Literary Award. Seus livros foram publicados em mais de dezoito países. Vive entre o Rio e Santa Mônica, na Califórnia.

*Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos do Nexo, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo. Por favor, considere também assinar o Nexo.