Fabiano Calixto
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A convite da seção ‘Favoritos’, o poeta e editor Fabiano Calixto indica cinco livros de poesia que iluminam tempos sombrios
Ao ser convidado para a seção “Favoritos”, pensei em cinco livros que são, a meu ver, muito importantes para pensar a arte da poesia na contemporaneidade. Cinco livros (quatro brasileiros e um estrangeiro) que, múltiplos em suas poéticas, constroem uma poesia contrabeletrista, que, refletindo sobre os tempos terríveis que correm, buscam não apenas entendê-los em sua absurda complexidade, mas também enfrentá-los.
A poesia, em nosso tempo, passa por uma transformação (e por uma crise que faz parte dessa transformação). Como não está apartada do mundo, a melhor poesia hoje é não a que foge da realidade em busca de um “abrigo poético belo e asséptico”, mas a que mete as mãos cirúrgicas para revirar as tripas do abominável zeitgeist.
São muitos os poetas em atividade que estão construindo uma grande obra. Nem sempre são fáceis de encontrar no tsunami de lançamentos de tudos e todos, mas eles estão por aí. É só abrir os caminhos e ver com olhos livres.
Aqui, nesta escolha, cinco livros que, passando pelo coração, iluminam nossa passagem por estes tempos de trevas.
Duda Machado (Círculo de Poemas, 2021)
Reunião da poesia de um dos poetas mais estimulantes da contemporaneidade. Duda Machado inicia sua trajetória como tropicalista nos anos de 1960, e ali, no instante do olho do furacão, cria alguns dos momentos luminosos da contracultura nacional. Com o passar dos anos, passa a cultivar uma poesia de linguagem mais densa, mais sofisticada, de grande força intelectual e lírica. “Poesia 1969-2021” reúne os livros “Zil” (1977), “Um outro” (1990), “Margem de uma onda” (1997) e “Adivinhação da leveza” (2011), além de letras de música e poemas esparsos. Ou seja, é uma visão tudo-total da instigante e decisiva obra de Duda. Essencial.
“o sol/ o que é /do sol / e ao sol/ se espalha/ não vale/ para mim/ e minha amiga/ (a sós, / sob o lençol)/ mais que/ migalha”.
Antônio Moura (Arribaçã, 2024)
O poeta paraense Antônio Moura cultiva uma poesia pensante, de alta voltagem e amplo percurso lírico, e após lançar, também em 2024, “Entre os astros e o desastre – Poesia reunida (1996-2018)”, pela Corsário-Satã, coloca em circulação o ótimo “Caos, cosmo”, seu mais recente livro de poesia. O trabalho de Moura é de paciência e artesanato, reflexão e tempo, corpo e letra. Nunca descansa de sua exigente proposta escrita. Como poeta que trabalha a forma de maneira muito criativa, tudo em sua poesia é pensando nos detalhes – seu ritmo, suas rimas, sua sintaxe etc. Seus temas variam e buscam refletir sobre o mundo em convulsão com uma poética que trabalha cuidadosamente cada aspecto de sua difícil estrutura.
“Os cães do inferno / que farejavam o rastro / de Robert Johnson / ao som do blues do Mississipi, / “a música do diabo”, / também rondam aqui / em nosso encalço, / pele de cordeiro / rosnando aos tambores, / eriçando os pelos / ao cheiro dos terreiros”.
Marília Garcia (Companhia das Letras, 2023)
A poesia de Marília Garcia trabalha com a ampla inquietude do experimental. Nuvem de letras e memória, seus versos conseguem captar instantes de um mundo que, em convulsão, ainda permite em suas brechas espaços para que a luminosidade do pensamento possa adentrar.
Mapas, cidades, bairros, ruas em cruzamento com afetos percorrendo uma memória escrita (cartografia e experiência de uma ausência) que se alastra como uma serpente de mil formas pelo corpo do livro em versos que podem a qualquer momento desestabilizar o leitor incauto. E, ao mesmo tempo, ampliar sua percepção sobre as aventuras da linguagem poética em nosso tempo e suas múltiplas perspectivas.
“por que você não escreve com/ emoção?/ alguém pergunta/ e eu amarro a pergunta/ na ponta desse poema/ deixo tombar até o fundo/ do mar”.
Ricardo Aleixo (Todavia, 2018)
Mel do melhor da poesia brasileira contemporânea, a obra do mineiro Ricardo Aleixo tem uma boa amostra nesta ótima antologia chamada “Pesado demais para a ventania: Antologia poética”. Nela, o leitor interessado por poesia de sabor forte encontra uma escrita sempre inquieta e inquietante, que busca, ao mesmo tempo em que trabalha com múltiplas possibilidades formais, refletir sobre o mundo contemporâneo, sobre suas políticas de morte e racismo como fundamento.
Lírica feroz, essencial para todo leitor que ama grande poesia, a vasta produção de Aleixo é um dos pilares do pensamento poético em nossos dias. Livraço.
“Ogum sonha / algum / plano de paz / que antes / violentasse / todas as correntes / noções / de paz”.
Ezra Pound (trad. Dirceu Villa, Syrinx, 2024)
Lançamento importante para fazer movimentar o pensamento de poesia em nosso tempo aqui no Brasil, “Hugh Selwyn Mauberley”, obra de 1920 do estadunidense Ezra Pound (um dos grandes poetas do século 20), na exímia tradução do também poeta Dirceu Villa traz um outro olhar para o clássico poema traduzido primeiramente no Brasil em 1983, por Augusto de Campos.
“Hugh Selwyn Mauberley” é um poema espesso em termos formais, seus versos irônicos funcionam como marretas que abrem frestas para suas atividades de exploração das mais vastas instâncias de criação poética (poucos entendiam tanto do assunto). Um poema que trata do mundo das letras e o disseca, colocando questões que são importantes ainda hoje, mais de 100 anos depois da publicação original.
“Morreu ali uma miríade,/ E dos melhores, entre eles,/ Por esta cadela velha e desdentada,/ Por uma civilização falha,/ Charme, sorrindo em bons lábios,/ Olhos ágeis sob a pálpebra da terra,/ Por umas dúzias de cotos de estátuas,/ Por uns milhares de livros rotos.”
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É poeta, editor e professor. Doutor em letras pela Universidade de São Paulo. Publicou os seguintes livros de poesia: “Algum” (edição do autor, 1998), “Fábrica” (Alpharrabio Edições, 2000), “Música possível” (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), “A canção do vendedor de pipocas” (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), “Nominata morfina” (Corsário-Satã, 2014) e “Fliperama” (Corsário-Satã, 2020). “O pito do pango & Outros poemas”, seu próximo livro, será lançado ainda este ano. Dirige, ao lado de Natália Agra, a editora Corsário-Satã.
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