Lilian Sais
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A convite da seção 'Favoritos', a escritora Lilian Sais indica cinco livros que falam sobre a perda e o luto escritos por autoras latino-americanas
É claro que a morte e o luto sempre foram temas caros à literatura — como dizem alguns, viver, no fim das contas, é elaborar os lutos. Penso na pertinência desse tema especialmente agora, quando completamos 5 anos do início da pandemia de covid-19 (que apenas no Brasil matou mais de 715 mil pessoas) e vemos guerras e genocídios em curso.
Livros ótimos de autores como Joan Didion, Annie Ernaux e Roland Barthes são frequentes nas listas de indicações de livros sobre o luto, mas me propus os seguintes critérios para esta lista: que as obras fossem todas escritas por mulheres, latino-americanas, que tenham sido publicadas no Brasil recentemente e nas quais a abordagem do luto é, de alguma forma, expandida ou permeie outro assunto.
Deixo aqui um viva às escritoras que vêm cada vez mais tensionando as regras estabelecidas pelo cânone e bagunçando as gavetas dos gêneros literários, produzindo livros inclassificáveis e excelentes.
Piedad Bonnett (trad. Elisa Menezes, DBA, 2024)
Esse belíssimo relato autobiográfico da colombiana Piedad Bonnett, que é uma das maiores poetas da América Latina, trata da morte do seu filho, Daniel, que era neurodivergente, diagnosticado com esquizofrenia, e tirou a própria vida. A linguagem objetiva do livro não esconde a carga poética de Bonnett, em especial pelas cenas e pelas imagens que ela mobiliza ao longo da narrativa. Uma aula de como trabalhar a emoção sem cair no piegas.
Além da dor pelo suicídio do filho e de toda a burocracia e as formalidades envolvidas nos assuntos de morte, o livro traz à tona o tema da “loucura” e da necessidade de identificar e de dar nome às doenças psiquiátricas que carregamos para poder lidar com elas.
María Negroni (trad. Paloma Vidal, Poente, 2023)
Um livro híbrido, portanto de difícil classificação. Gosto muito disso. É um romance autobiográfico que, ao mesmo tempo em que é uma carta à mãe da poeta argentina, é também um ensaio sobre a sua formação como leitora e sobre a sua escrita, no qual lemos trechos como: “A literatura é uma forma elegante de rancor. / (Que frase escandalosa!)”.
A relação da autora com a mãe, retratada no livro como uma figura narcisista e negligente, é bastante complexa. Identifico o luto em dois aspectos: primeiro, essa necessidade de acerto de contas com uma pessoa já morta; segundo, as emoções típicas de quem tem que se ver sozinha com uma perda e com as feridas cultivadas ao longo de uma relação complicada.
Aproveito para indicar também o único outro livro de Negroni que saiu no Brasil: a coletânea de ensaios “A arte do erro”, publicada pela editora 100/cabeças em tradução de Ayelén Medail e Diogo Cardoso.
Sylvia Molloy (trad. Paloma Vidal, 34, 2022)
Quando Sylvia Molloy se sentava para escrever, ela não estava para brincadeira. Foi assim até seus últimos dois livros, publicados no Brasil em um volume fininho da coleção Fábula: “Desarticulações, seguido de Vária imaginação”.
“Desarticulações” foi publicado originalmente em 2010, na Argentina, e é mais um livro de difícil classificação, composto por textos curtos de geralmente dois ou três parágrafos. Na edição brasileira, esses textos vêm justapostos, um logo após o outro. Através dessa escrita fragmentária, vemos o corpo lírico de Molloy sofrer o luto por sua grande parceira, cúmplice de vida (uma amiga? Um amor? Uma amante?) que segue viva, mas que já não está de fato “presente”, porque sofre de uma doença que lhe tira a memória.
Diante desse luto, o causado por perder alguém que ainda vive, Molloy embaralha memória e invenção, fatos e ficção. Ela chega a explicitar isso em um dos trechos do livro, no qual diz: “Não há testemunhas de uma parte da minha vida, essa que sua memória levou com ela. Essa perda, que poderia me angustiar, curiosamente me liberta: não há ninguém para me corrigir se eu decidir inventar.”
Julia Wähmann (Mapa Lab, 2024)
Este é um livro sobre o luto coletivo da pandemia, mas não só, porque mescla as anotações de diário com uma reflexão sobre a própria escrita diarística, revisitando desde Virginia Woolf até o avô da autora, um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial.
Dessa aglomeração de escritos de uma época em que os dias estavam suspensos, sem data e horário registrados, surge um livro poderoso sobre o grande e o banal, a tristeza e a alegria e tudo que há de vida na morte e de morte na vida.
Cristina Rivera Garza (trad. Silvia Massimini Felix, Autêntica, 2022)
Neste livro vencedor do Pulitzer, a pesquisadora, poeta e romancista Cristina Rivera Garza retorna ao México para investigar as circunstâncias do assassinato de sua irmã, cometido em 1990 pelo ex-namorado dela. À época, não havia ainda uma discussão aprofundada sobre o feminicídio.
É diante da falta de esperança de justiça, portanto, que essa família tem que enfrentar a dor do luto causado pela perda precoce e violenta de uma de suas filhas — Liliana tinha 20 anos de idade quando foi morta. Diários, cartas e depoimentos delineiam quem ela era e nos guiam por um percurso duro, porém necessário, que mostra, entre outras coisas, as alegações da defesa. “Crime passional”, ato realizado sob “violenta emoção” e “legítima defesa da honra” são atenuantes jurídicos manipulados que colocam a vida das mulheres em risco constante, uma vez que a maior parte dos feminicídios ocorrem justamente pelas mãos de namorados e maridos das vítimas.
Foi preciso que passassem 30 anos para que a dor sentida pela família Rivera Garza pudesse ser elaborada verbalmente, para encontrar palavras que dessem conta de nomear esse luto. Um luto particular, sim, mas também coletivo, já que infelizmente segue impactando famílias no mundo todo.
Lilian Sais é poeta e romancista. Tem bacharelado em letras e mestrado e doutorado na área de letras clássicas, pela Universidade de São Paulo. Venceu o 6º Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria poesia, com o livro “Motivos para cavar a terra” (Cepe Editora, 2022). Publicou, entre outros, o romance “O funeral da baleia” (Ed. Patuá, 2021, livro contemplado pelo ProAC 2020 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria “melhor romance de estreia”) e “O livro do figo” (Edições Macondo, 2023, livro contemplado pelo ProAC 2022 e semifinalista do Prêmio Oceanos de 2024). Sua publicação mais recente é a plaquete “Palavra nenhuma” (Círculo de Poemas, 2024). Acaba de lançar seu segundo romance, “A cabeça boa” (DBA Literatura).
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