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‘Fascismo à brasileira’: atuação e legado dos camisas-verdes

Pedro Doria


04 de setembro de 2020

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O ‘Nexo’ publica trecho de livro que recupera a história da Ação Integralista Brasileira, maior movimento fascista fora da Europa na década de 1930. Liderados por Plínio Salgado e inspirados por Mussolini, os encamisados chegaram a contar com 1 milhão de adeptos — mas não sem oposição. A passagem abaixo narra conflitos que marcaram os desfiles e marchas dos integralistas

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Não haviam adotado ainda o passo de ganso nazista, mas marchavam organizados os integralistas brasileiros. Naquela tarde de domingo, o 7 de outubro de 1934, o tempo estava claro no centro paulistano. Aniversário de dois anos da AIB. Planejavam um evento histórico, que causasse impacto, demonstrasse força. Em linha, vindos desde a esquina da avenida Paulista pela Brigadeiro Luís Antônio, na qual haviam feito a sede em uma casa antiga, desceram rumo ao centro até a rua Riachuelo, a algumas centenas de metros da Catedral Metropolitana. O prédio da Sé velha já não mais existia, o eclético neogótico da atual ainda era uma obra em construção. Uma igreja marcando o centro geográfico da capital. Eram tantos, mais de 10 mil, que o desfile de homens com camisas verdes e calças negras, ocupando a Brigadeiro de um lado ao outro, se estendia por dois quilômetros. À frente, a banda que tocava marchas, duas tropas de choque — a carioca e a paulista — e as legiões da milícia. O plano era entrar na Praça da Sé pelas vias laterais, onde as ruas Direita e 15 de Novembro se encontram, para que desfilassem aos olhos do público por toda a extensão da praça até se posicionarem em frente às escadarias da catedral.

Àquela altura, milhares de mulheres também com camisas verdes, porém saias brancas, assim como crianças vestindo o mesmo verde e branco, já haviam encontrado assento nos degraus. Umas, mais entusiasmadas, punham-se de pé à espera dos homens e do espetáculo. Passava pouco das 15h quando as tropas em marcha surpreenderam na mudança de trajeto e entraram pelo meio da praça, via rua Benjamin Constant, com os tambores rufando ao máximo. O público que estava aglomerado ali, surpreendido, se apertou contra as calçadas ou escoou pelas outras ruas laterais, para dar passagem. Vinham os tambores batendo em ritmo militar, então dois porta-estandartes, um com a bandeira brasileira e o outro com a do sigma, todos impecavelmente uniformizados. Além do sigma ao braço, traziam todos as insígnias de seus níveis hierárquicos. Alguns bordavam ainda bandeiras para indicar a língua estrangeira que falavam. Muitos a italiana, alguns a alemã, pelo menos uma bandeira da Rússia imperial, ainda que dezessete anos após a queda do czar. Quando entraram e a multidão se afastou lhes dando espaço, alguns dos homens uniformizados jogaram contra o chão e as paredes bombas de efeito moral, que faziam muito barulho e não mais que isso, de forma a ampliar o efeito do surgimento. Nunca o Brasil havia testemunhado uma marcha como aquela. Só que eles que chegavam à praça ainda não sabiam, mas seu inferno estava para começar.

Foram dias de preparativo. Não é que existisse uma cartilha fascista, um manual a seguir, mas na Itália, Mussolini improvisou um método de conquista do poder, na Alemanha, Adolf Hitler fez parecido, e era apenas natural que no Brasil a Ação Integralista agisse de maneira similar. Os encamisados italianos de preto e os alemães de cáqui tomaram as ruas. Tornaram-se figuras frequentes, sempre em blocos compactos. Encamisados — termo com o qual muitos apelidavam os fascistas no tempo. Pois marcharam, os encamisados, disciplinadamente sobre as ruas. E, em cada marcha, uma série de mensagens eram passadas. Número. Disciplina. Determinação. Entraram, os milicianos de Mussolini e Hitler, mais de uma vez em confronto com comunistas, socialistas ou anarquistas. Ocupar espaço com gente nos espaços públicos, gente em quantidade, uniformizada, com estandartes, bandeiras e insígnias, tudo só passava a mensagem de que eram fortes e, talvez, inevitáveis. Tão organizados que, no caos, talvez fossem uma solução possível. Se nos primeiros dois anos se construiu a AIB, agora ela já tinha tamanho e podia e devia se revelar. O movimento fascista brasileiro era conhecido por quem lia jornais, gente de verde pelas ruas das grandes cidades era vista aqui e ali. Produto de jornalistas e escritores, tinha toda uma imprensa própria. Códigos, uniformes, hierarquia rigidamente distribuída. Mas uma demonstração de número e potência, isso ainda não havia acontecido.

Seus planos, porém, não eram secretos. Comunistas, socialistas e anarquistas conheciam igualmente a fórmula. E, para os dois grupos, São Paulo era a chave. Com exceção do Rio de Janeiro, a capital federal, nenhuma outra cidade do país tinha uma classe média tão grande. E nem o Rio se comparava no número de operários. Era, portanto, o público que ambos buscavam seduzir politicamente. “Estávamos conscientes de que o ganho das ruas seria o alicerce para a escalada ao poder pelos camisas-verdes”, lembrou anos mais tarde Eduardo Maffei, na época um estudante de medicina que viera criança da Espanha para o Brasil e liderava a Vanguarda Estudantil, ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCB). “Aquele desfile a caminho da Praça da Sé tinha o travor de uma nova Marcha sobre Roma.” Travor, palavra para amargor. Ou horror. “Vamos continuar nossas concentrações e desfiles”, afirmou naquele momento Plínio Salgado. “Nenhum soldado integralista deixará o seu posto em nossas fileiras devido às ameaças de qualquer natureza.”

O clima nos dias anteriores ao desfile era de tensão. No dia 3, a quarta-feira daquela semana que terminava, uma marcha integralista em Bauru, no interior do estado, havia terminado em morte. Eram oitenta encamisados passando em revista pela rua Batista de Carvalho, onde se concentrava o comércio da cidade, marchando até o clube onde Plínio falaria. Então, de uma rua transversal vieram tiros. Caía a tarde, e a penumbra do anoitecer tornava difícil enxergar de onde vinha o ataque. Na véspera, um grupo comunista havia tentado interromper um comício fascista. “O chefe comunista saltou na mesa e quis me tomar o microfone”, lembrou um militante. “Eu dei uma gravata nele e lhe pus um revólver [calibre] 32 nas costas e falei mais de uma hora com ele preso no 32.” O fracasso na tentativa de impedir o comício fez com que a esquerda radical tentasse uma tocaia para barrar o do dia seguinte, que contaria com a presença de Plínio. Disparados os tiros, quatro homens caíram feridos no centro de Bauru. Um quinto, Nicola Rosica, foi morto. Era funcionário da Estrada de Ferro Noroeste, que ligava a cidade ao Mato Grosso. Plínio não falou naquela quarta-feira. Mas falou na sexta, em São Paulo, capital, perante as centenas de integralistas uniformizados que acompanharam o enterro do trabalhador. À beira do caixão, coberto com as bandeiras do Brasil e da AIB, o líder declarou que Rosica era o primeiro mártir da causa. Nos anos seguintes, várias escolas no país seriam fundadas com seu nome.

Pedro Doria é fundador da startup canalmeio.com.br. Knight Fellow pela Universidade de Stanford, foi editor-chefe de digitais do Estado de S. Paulo e editor-executivo do Globo, jornais para os quais escreve colunas. É também colunista da CBN. Jornalista especializado em política e tecnologia, escreve livros de história do Brasil.

Capa do livro "Fascismo à brasileira" com a ilustração de um camisa-verde

Fascismo à brasileira

Pedro Doria

Planeta

280 páginas