Trechos

‘Democracia para quem?’: palestras sobre o nosso tempo

Angela Davis


19 de janeiro de 2024

Temas

Compartilhe

O ‘Nexo’ publica uma palestra de Angela Davis transcrita no livro ‘Democracia para quem?’, que reúne apresentações dela e de Patricia Hill Collins e Silvia Federici, também sociólogas e ativistas

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

A democracia é muito complicada, e vai além do processo eleitoral que nos permite escolher representantes políticos. Além disso, historicamente, temos sempre presenciado democracias profundamente falhas. São democracias que estiveram ativamente engajadas com a exclusão, que têm coexistido com a escravidão, com a colonização e com o genocídio indígena. São democracias que coexistiram e foram moldadas pela supremacia branca. Enfim, são democracias que tratam os povos indígenas como invisíveis.

Mas o que estou dizendo? Tudo isso não contradiz completamente o significado de democracia, não anula sua noção básica? Quem já ouviu falar em uma democracia baseada na exclusão do próprio povo que deveria ser protegido por ela? Uma democracia de supremacia branca?

O ponto a que pretendo chegar é que seria um grave erro presumir simplesmente que precisamos voltar a um período anterior à atual presidência [de Donald Trump], nos Estados Unidos da América, e do Brasil [Jair Bolsonaro]. O presidente daquele país quer voltar a um passado anterior às leis dos direitos civis, anterior à consciência sobre o assédio sexual e a violência e anterior à nossa consciência sobre os direitos dos imigrantes. Ele quer desconhecer nossas vitórias de justiça social.

O presidente daqui parece se identificar com ditaduras militares e Estado policial. Eles querem voltar a um passado no qual os direitos dos negros, dos indígenas e das mulheres simplesmente não eram respeitados. Quero sugerir que seria um grande absurdo presumirmos que a democracia almejada reside no passado.

Aqui no Brasil, podemos apontar o momento da ascensão do Partido dos Trabalhadores, que representou novas possibilidades e novos futuros, mas essas esperanças foram dizimadas pelo impacto do capitalismo global. Essa tendência conservadora de olhar para o passado atrás de respostas é especialmente problemática nos Estados Unidos. Há aqueles que imaginam um hipotético governo de Hillary Clinton. Eu gostaria que ela tivesse sido eleita, mas é errada a suposição de que teríamos evitado a atual crise da democracia somente com a eleição dela. 

A eleição de Hillary Clinton não teria resolvido as profundas desigualdades econômicas, a violência racista do Estado, a misoginia estrutural e toda uma gama de injustiças raciais. Existe uma instituição na qual todas essas desigualdades e injustiças estão profundamente arraigadas. 

Venho trabalhando em presídios a maior parte da minha vida. E, portanto, gostaria de falar por um momento sobre a democracia e o presídio. Essa relação está ligada às estruturas do policiamento. As pessoas mais sujeitas à prisão são aquelas provenientes de comunidades pobres, alvos do racismo estrutural e da violência contra as mulheres.

Aqui no Brasil, existem estudiosos e ativistas que examinam e criticam o crescente papel da instituição prisional. Entre eles, há protestos crescentes contra o retorno da tortura em cadeias e presídios. Soube que mulheres foram torturadas na Bahia e, em presídios masculinos, os prisioneiros são forçados a tirar suas roupas. Isso me lembra a rebelião de Attica e o massacre de seus prisioneiros [entre 9 e 12 de setembro de 1971]. Talvez vocês tenham visto as imagens de centenas de prisioneiros nus [o saldo foi de 43 mortos – 32 presos e 11 carcereiros – e mais de 80 feridos].

Isso me leva a refletir sobre a relação entre prisão e democracia. A instituição prisional foi o maior presente da democracia dos Estados Unidos para o mundo. O projeto desse país de firmar a prisão como modelo dominante de punição estava ligado à metamorfose pós-revolucionária [1776] do governo e da sociedade durante o final dos anos 1700 e início dos anos 1800. A ascensão da penitenciária era vista, simultaneamente, como uma evidência dramática de democratização. E, ao mesmo tempo, como sintoma não reconhecido da desigualdade racial, de gênero e de classe enraizada nas entranhas da estrutura da nova democracia.

A prisão como punição significava que a negação da liberdade propiciava a prova negativa da emergência da liberdade como padrão social. A negação da liberdade era, por assim dizer, a exceção que provava a regra. É curioso que, durante aquele período, havia quem argumentasse que crimes menores, e não infrações mais graves, deveriam fornecer a justificativa para negar às pessoas sua liberdade. Mas havia radicais que clamavam pela abolição de todos os tipos de punição. Se essa perspectiva tivesse prevalecido nos Estados Unidos, talvez a invenção da penitenciária não tivesse ocorrido. Isso poderia ter mudado o mundo de diversas maneiras. Desde o início, os argumentos pela abolição desse tipo de punição foram quase sempre sobrepostos por chamados à reforma prisional. Assim, a prisão tem se armado como uma instituição permanente e hegemônica na democracia estadunidense. 

A pergunta que quero fazer é se uma análise mais profunda da relação entre prisão e democracia poderia estabelecer um ponto de vista mais produtivo para argumentarmos contra a hegemonia prisional e a favor da abolição das prisões. Isso inclui o Brasil.

A articulação das instituições carcerárias com ideologias neoliberais democráticas, voltadas contra a ameaça do terror, recapitula a história dos princípios da democracia dos Estados Unidos, que executavam o projeto de estender direitos e liberdades a alguns enquanto os negavam a outros, em especial a pessoas negras escravizadas ou sujeitas à escravização. Quero concluir esta conferência sobre a democracia em colapso dizendo: o aprisionamento está tão ancorado filosoficamente nas concepções liberais da democracia, inada e infectada pela exclusão racial, que não somos mais capazes de pensar num mundo sem ele, muito menos em extinguir essa instituição sem reconceituar a democracia.

Isso requer que prestemos muita atenção às interdependências entre racismo e capitalismo, que são responsáveis pela instituição peculiar da democracia estadunidense. E, claro, a escravidão sempre foi referida como a “instituição peculiar”. Alguns de vocês, que estudaram isso, devem estar cientes, mas prero achar que a instituição peculiar era a democracia.

Capa do livro "Democracia para quem?" de Angela Davis

Democracia Para Quem?: Ensaios de resistência

Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici
Trad. Vcomunicações
Boitempo Editorial
128 páginas
Lançamento em 16 de janeiro

Comprar*

*Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos do Nexo, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo. Por favor, considere também assinar o Nexo.