Trechos

‘Estrada para lugar nenhum’: o futuro dos transportes em xeque

Paris Marx


11 de outubro de 2024

O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Estrada para lugar nenhum’, de Paris Marx. Na obra, o autor problematiza as visões utópicas de empresários do Vale do Silício acerca de veículos elétricos e autônomos e serviços de carros por aplicativos

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Em 2006, dois documentários ambientais pioneiros foram lançados para o público geral. O primeiro, Uma verdade inconveniente, partiu de uma série de slides sobre a urgência no enfrentamento da crise climática apresentados pelo ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore ao redor do mundo, e foi transformado em longa-metragem. O filme teve impacto no público, foi exibido em escolas de todo o mundo e chegou a ganhar um Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem. Mas, como o trabalho do próprio Gore realizado nos anos 1990, o filme trazia uma mensagem particular: apresentava a internet como uma ferramenta para o aprimoramento do poder do indivíduo. Os cidadãos poderiam escrever para deputados e senadores e exigir mudanças, mas também estava ao alcance de cada um deles trocar as lâmpadas que usavam, comprar veículos híbridos, começar a reciclar ou mesmo a compostar resíduos. A narrativa parecia empoderadora, entretanto, ao concentrar tanta atenção nas ações particulares, ajudou a transferir a responsabilidade pelas mudanças climáticas dos governos e corporações para os consumidores individuais. Ainda que o enfrentamento da crise climática exija a mudança de sistemas que a maioria das pessoas não tem o poder de alterar, por um longo tempo foi essa a mensagem ambiental dominante.

Um segundo documentário, Quem matou o carro elétrico?, usou uma narrativa similar, mas com enfoque nos veículos elétricos. Trata-se de um filme sobre o EV1 da General Motors, o primeiro carro elétrico produzido em massa por uma das principais montadoras dos Estados Unidos. No começo dos anos 1990, a Califórnia determinou que os fabricantes de automóveis teriam que oferecer opções elétricas caso quisessem continuar a vender carros, caminhonetes e caminhões no Estado Dourado, e o EV1 foi o carro de maior destaque a surgir dessa regulamentação. Assim que as montadoras conseguiram revogar a exigência, no entanto, sua produção foi interrompida pela GM, que passou a destruir os veículos conforme os contratos de leasing foram vencendo. Isso provocou a ira dos ambientalistas liberais.

Quem matou o carro elétrico? divulga com ainda mais intensidade a ideia de que decisões pessoais de consumo – nesse caso, a compra de um carro elétrico – eram essenciais não apenas para o enfrentamento das mudanças climáticas, mas, dada a Guerra do Iraque que então se desenrolava, também para pôr fim a operações internacionais de combate realizadas pelos Estados Unidos para garantir suprimentos de petróleo. Como artefato do ambientalismo liberal, o filme contém depoimentos de celebridades que contam o quanto adoram seus carros elétricos, e seu diretor desconsidera todo e qualquer questionamento quanto à validade das credenciais ambientais dos veículos elétricos, que caracteriza como estratégia de propaganda da indústria automobilística ou da petrolífera. Alguns dos argumentos rejeitados pelo filme realmente são falsos, como no caso de estudos da indústria segundo os quais os veículos elétricos produzem mais emissões do que os movidos a gasolina. A verdade é que, mesmo que a eletricidade que alimenta os veículos elétricos seja produzida por fontes fósseis como o carvão ou o gás natural, eles ainda tendem a ser responsáveis por menos emissões de gases do efeito estufa ao longo de sua vida útil. Mas o filme também se recusa a aceitar críticas formuladas por grupos preocupados com a justiça ambiental no sentido de que os principais benefícios da transição para o veículo elétrico seriam colhidos exclusivamente por indivíduos de maior poder econômico. Um especialista entrevistado para o filme afirma que “o ar não sabe quais são as fronteiras entre a cidade de Brentwood e o sul de Los Angeles” – a primeira, uma vizinhança predominantemente branca e mais rica em comparação com as pessoas racializadas e de menor renda que vivem no segundo.

O documentário ilustra como a política climática do final dos anos 1990 e da primeira década dos anos 2000 – que consistia em um ambientalismo voltado para a ação individual e a escolha dos consumidores – se alinhava com o carro elétrico como uma das principais soluções para a crise climática enquanto ignorava como esses veículos continuariam a produzir uma pegada ambiental significativa quando comparados ao deslocamento a pé e ao uso de bicicletas ou do transporte público. Se há alguma dúvida quanto à posição política do filme, basta olhar para a sua continuação de 2011.

Enquanto Quem matou o carro elétrico? é sem dúvida um filme ambientalista, A vingança do carro elétrico mal menciona os benefícios ambientais que decorreriam de seu uso; esse é, acima de tudo, um filme sobre carros. O diretor segue quatro homens com visões diferentes para a automobilidade elétrica: o CEO da Tesla, Elon Musk, como figura de proa de uma empolgante indústria de tecnologia em ascensão, ao lado de seu concorrente, o vice-presidente e veterano da General Motors Bob Lutz; Carlos Ghosn, a contraparte europeia e asiática de ambos na Renault-Nissan; e Greg Abbott, que tentava lançar na Califórnia uma empresa independente de conversão para veículos elétricos. O sonho de Abbott de abrir uma oficina é destruído ao final do filme, em uma demonstração de como, no fim das contas, a transição para os veículos elétricos será uma luta entre agentes corporativos – e o diretor mostra uma nítida preferência por essa rota. O documentário serviu como um dos artefatos culturais que ajudaram a construir o mito de Elon Musk. Nele, Musk é comparado ao inventor da corrente elétrica alternada, Nikola Tesla, e ao super-herói da Marvel Tony Stark (que se veste como Homem de Ferro), e o filme argumenta que o futuro da indústria automotiva (e do carro elétrico) depende de indivíduos, e não do governo.

Já no sexto minuto do filme, Thomas Friedman, colunista do New York Times, aparece na tela para dizer: “Eu não acredito que esse seja um problema a ser resolvido por órgãos reguladores e burocratas. Essa é uma questão que terá de ser solucionada por engenheiros, inovadores e empreendedores”. Mas a declaração de Friedman não se sustenta. Décadas de financiamento em pesquisas públicas têm sido essenciais para o desenvolvimento de fontes alternativas de energia, e, historicamente, os reguladores desempenharam um papel importante ao obrigar as empresas automotivas a tornar os veículos mais seguros e eficientes no consumo de combustíveis. Os subsídios do governo também são parte fundamental da mudança para veículos elétricos que está em curso: eles incentivam as companhias a produzi-los e os consumidores a comprá-los.

Além desses documentários, as narrativas sobre os veículos elétricos que têm sido divulgadas nas últimas décadas deixam de lado um contexto importante: os carros só parecem limpos e verdes porque o enquadramento de suas declarações ambientais se limita às emissões de escapamentos, enquanto ignora os danos que perpassam toda a cadeia de suprimentos e a natureza insustentável dos empreendimentos carro-orientados. O argumento de André Gorz de que o automóvel é um produto de luxo cujos danos principais aparecem com sua democratização não se aplica apenas aos veículos de combustão interna; esse também é o caso dos veículos elétricos.

Com efeito, Kirsch afirmou que o enfoque crítico nos motores de combustão interna perde de vista o panorama do automóvel: 

“não existe algo como uma tecnologia automotiva ambientalmente favorável […] As ameaças sociais, financeiras e ambientais com que hoje deparamos como resultado de nossa dependência do petróleo refinado não são culpa da tecnologia de combustão interna per se, mas da expansão maciça do sistema de transporte por automóveis.

Em outras palavras, o problema da automobilidade não está apenas no combustível que a faz funcionar, mas em como as empresas e os governos foram bem-sucedidos na reorientação da vida ao redor do automóvel e, em muitos casos, na destruição de alternativas mais eficientes. Tivesse o sistema de transporte evoluído da mesma forma desde os anos 1920, mas usando baterias no lugar de motores de combustão interna, os veículos de passageiros ainda seriam uma fonte de danos ambientais e sociais significativos, em parte por serem tão ineficientes no uso do espaço urbano e de recursos preciosos.

A verdade é que, seja ele produzido pela Tesla, pela General Motors ou por qualquer outra empresa, o veículo elétrico não combaterá os problemas fundamentais de um sistema de transporte construído ao redor dos automóveis. Da mesma forma como a infraestrutura de combustíveis fósseis que se espalhou pelo globo foi reconhecida como uma ameaça ao clima e à própria vida humana, sobretudo a das pessoas que vivem perto dos locais de extração e refino, a indústria da mineração começou uma expansão significativa para sustentar a produção em massa de veículos elétricos, e, a menos que combatamos a importância dada aos veículos de passageiros em nosso sistema de transporte e priorizemos formas mais eficientes de mobilidade, tanto em termos de uso de recursos como da forma de operação, também ela criará sofrimento em massa e danos ambientais.

Estrada para lugar nenhum

Paris Marx
Trad. Humberto do Amaral
Ubu
320 páginas

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