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Emilio Fraia


01 de dezembro de 2018

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Foto: Renato Parada

Emilio Fraia é autor de “Sebastopol”, livro que reúne três histórias distintas, mas que se entrelaçam de alguma forma. Ele indica 5 obras que também embaralham formatos como o conto, a novela e o romance

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Esta é uma lista com uma proposta: começar e terminar um livro no mesmo dia. Todos têm estrutura única, que os aproxima e afasta do que entendemos como romance

Carmen

Prosper Mérimée

Publicada em 1845, esta novela são duas histórias, uma dentro da outra. A que ocupa o miolo do livro (narrada por dom José, um ex-militar de carreira promissora, que desce ao inferno por conta da sua paixão por Carmen) é a que se tornou famosa em filmes, musicais da Broadway, séries de tevê, quadrinhos, comercial de lingerie, canecas, chaveiros, camisetas e na ópera de Bizet. A outra, que serve de moldura à primeira, é narrada por um arqueólogo francês, culto e algo pedante, que erra pela Andaluzia. É na relação entre as duas histórias, entre essas duas vozes, que está o trunfo das 80 páginas estranhas e geniais de “Carmen”. Dom José se deixará levar pelo mundo fascinante e perigoso da cigana e pagará o preço. A uma distância segura, o outro narrador, anônimo, apenas escutará a história e desfrutará, burguesamente, sem se arriscar, das aventuras do outro. Bom momento: quando dom José sugere que Carmen e ele abandonem a Espanha para “viver honestamente no Novo Mundo”. Carmen ri e diz que “não fomos feitos para plantar couves”.

La casa de cartón

Martín Adán

Depois de se encontrarem no balcão do bar Cordano, no centro de Lima, em abril de 1960, Allen Ginsberg dedicou um poema a Martín Adán. Em “Para um velho poeta no Peru”, escreveu: “Enquanto minha sombra visitava Lima/ e seu fantasma estava morrendo em Lima”. Desde 1928, quando publicou “La casa de cartón”, com apenas 28 anos, o fantasma de Adán morre e nasce todos os dias nos malecones da capital peruana. Junto com o argentino Macedonio Fernández, é o mais destemido dos modernistas latino-americanos. “La casa de cartón” é e não é um romance, parece mais um poema em prosa. Sem trama nem desenlace, formado por 39 fragmentos que se relacionam de forma surpreendente, o livro narra as aventuras de um jovem de 15 anos durante suas férias escolares. Destaque para o trecho em que o narrador faz uma lista com as descrições de seus cinco primeiros amores, que começa com “meu primeiro amor tinha 12 anos e as unhas negras” e termina com uma garota “que cheirava a cachorro molhado, roupa íntima e pão quente”, “uma garota suja com quem pequei quase na noite, quase no mar”.

Autobiography of red

Anne Carson

Outro livro estranho, em versos, e que a autora canadense chama de romance. Nele, Carson reconta o mito de Gerião, o gigante vermelho morto por Hércules nos Doze Trabalhos. De olho num modelo clássico (um poema escrito pelo grego Estesícoro no século 5 a.C), ela transforma Gerião num personagem contemporâneo, e o que lemos é a sua autobiografia. Publicado em 1998, o livro acompanha sua infância e adolescência. Gerião é um jovem sensível, que gosta de ler e anda com uma máquina fotográfica a tiracolo. Foi abusado pelo irmão mais velho e é apaixonado por Hércules, que a autora descreve como uma espécie de beatnik alucinado, dirigindo pelas estradas da América do Sul, continente que no livro “brilha feito um abacate”. Entre vulcões, lava e sentimentos profundos, Carson cria uma história de amor como nenhuma outra. Os capítulos finais, passados entre Buenos Aires e Lima, são os mais bonitos.

Cosmos

Witold Gombrowicz

Este livro é um bom presente. Mas só pode ser dado a alguém capaz de entender a solidão cósmica. Afinal, a vida quer dizer algo ou não faz sentido nenhum? “Vou contar-lhes uma outra aventura ainda mais estranha…”, Gombrowicz abre assim sua novela. Os exames escolares se aproximam e, depois de uma briga familiar jamais explicada, o estudante narrador busca abrigo no campo. Junto com um amigo, se hospedam numa pensão. Vagueiam pelos arredores e, de repente, encontram um pássaro enforcado num arame preso a um galho. Quem o enforcou e por quê? Qual teria sido o motivo? As respostas estarão nas manchas que parecem formar constelações no teto do quarto? A aleatoriedade do universo e a juventude são os temas aqui. Juventude, aliás, grande tema do autor polonês. “Sempre tive inclinações a buscar na juventude, na própria ou na alheia, um refúgio frente aos ‘valores’, ou melhor, frente à cultura”, escreveu. Contra a maturidade presunçosa, o “bom gosto” vazio e a retidão orgulhosa de si, “Cosmos” faz uma defesa furiosa e amalucada do imperfeito, do inesperado, do caos e da impossibilidade de entender.

Noturno indiano

Antonio Tabucchi

Em menos de 80 páginas, uma obra-prima. As frases aqui fazem com que seja possível ouvir os silêncios entre elas. Um narrador procura um amigo desaparecido na Índia — e nenhum tema pode ser melhor do que pessoas que desaparecem. Publicado em 1984 e travestido de narrativa de viagem, este livro é sobre uma longa noite insone. Na verdade, são 12 noites, uma para cada capítulo. Conversas desconexas, hotéis e mais hotéis, guias de turismo, ônibus e trens nas madrugadas, o peso dos sonhos. Como numa história de detetive em miniatura, contada elegantemente em voz baixa, o narrador segue pistas, vai de Bombaim a Madras, de Mangalore a Goa. Sobre Tabucchi, Enrique Vila-Matas escreveu: “admiro nele sua imaginação e também sua capacidade para investigar a realidade e terminar chegando a uma realidade paralela, mais profunda, essa realidade que às vezes acompanha a realidade visível”. A impressão é que por trás do texto há um outro, a que não temos acesso.

Emilio Fraia é escritor e editor. É autor de “Sebastopol” (Alfaguara, 2018), entre outros livros.

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