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Miguel Del Castillo


03 de fevereiro de 2019

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Foto: Carolina Ribeiro

O escritor tradutor e editor Miguel Del Castillo indica 5 fotolivros que propõem um diálogo entre versos e imagens

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Tenho especial fascinação pelo universo dos livros de foto-texto – aquelas publicações em que imagens fotográficas e alguma forma de texto, ficcional ou não, constroem juntas uma narrativa. Dentro desse subgênero do que hoje se convenciona chamar “fotolivro” existe um conjunto específico e muito recorrente na América Latina: os livros que resultam do encontro entre poesia e fotografia. No Brasil, há publicações interessantíssimas desse tipo. Selecionei cinco delas no acervo da Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista; todas podem ser consultadas, mesmo que, por motivos de raridade, não se encontrem ao alcance da mão nas estantes principais da biblioteca, e sim na reserva técnica. O acesso é livre e gratuito.

Rua (Martins, 1961)

Poemas de Guilherme de Almeida; fotografias de Eduardo Ayrosa

A cidade é um tema recorrente tanto para poetas como para fotógrafos. O mesmo vale para esse tipo de livro (é o caso de três dos cinco que compõem esta seleção). No Brasil dos anos 1960, metrópoles como São Paulo começavam a causar estranheza e até repugnância, mesmo nos mais otimistas. Guilherme de Almeida, conhecido por seus versos solares, expressa seu incômodo com a capital paulista neste “Rua”. Em seus “poemas-flashes”, as calçadas, por exemplo, tornam-se “serpentes que há nas ruas”, e, se olharmos para cima, lá está o “topo agressivo dos prédios mais altos”. As fotografias borradas e desoladas do fotoclubista Eduardo Ayrosa exibem uma urbe pouco hospitaleira. Sequenciadas com inteligência, criam uma tensão que vai aumentando até o fim do livro.

Paranoia (Massao Ohno, 1963; ed. fac-similar: IMS, 2000)

Poemas de Roberto Piva; fotografias de Wesley Duke Lee

Na mesma década e numa espécie de premonição dos anos de chumbo que logo se instalariam no país, o então jovem poeta Roberto Piva e o artista e designer Wesley Duke Lee mostram uma São Paulo esmagadora e em convulsão: “Na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida”, diz um verso; perto dali, na praça da República, “pombas crucificadas” são avistadas. Um retrato maldito da cidade que, na forma e nos temas, remete muito à atmosfera beat dos Estados Unidos e à revolução sexual que despontava. Esse escape poético, alucinógeno e sem volta, é corroborado magistralmente pelas fotografias e pelo ritmo delas no livro (o projeto gráfico também é assinado por Duke Lee).

O mergulhador (Atelier da Arte, 1968; ed. fac-similar: Argumento, 2002)

Poemas de Vinicius de Moraes; fotografias de Pedro de Moraes

Projeto de pai e filho, este livro de amor e de tormento foi publicado, de modo elegante e artesanal, no auge da ditadura militar. Pedro de Moraes, fotógrafo, selecionou poemas de seu pai, Vinicius. A seguir, escolheram juntos as fotos que acompanhariam os versos. Abre o livro o longo “O incriado”, poema cheio de inquietações (“Nem plácidas visões restam aos olhos – só o passado surge se a dor surge/ E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida”). Seguem-se poemas de amor, sobretudo, alguns bastante conhecidos, como os sonetos da “fidelidade”, do “amor maior” e do “amor total”, além de um ou outro poema engajado. As imagens exibem, com poucas exceções, rostos femininos, pedaços de corpos, casais entrelaçados. Fragmentadas, são resultado de cortes e ampliações dos negativos – assim como declaradamente fragmentários eram os amores do poetinha.

Quarenta clics em Curitiba (Etecetera, 1976; 2ª ed.: 1990)

Poemas de Paulo Leminski; fotografias de Jack Pires

“Aproximamos fotos e poemas como ideogramas japoneses. Entre foto e poema – a faísca de uma nova poesia. Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam prontos já. E deu certo”. Assim escreve o cultuado poeta Paulo Leminski (que na época tinha apenas um livro publicado) na luva de “Quarenta clics em Curitiba”. O envoltório guarda as lâminas soltas e não numeradas que compõem o livro. Em cada uma, um “clic”, formado por uma foto e um poema curto ou haikai. “1º dia de aula/ na sala de aula/ eu e a sala” é o texto que, nessa chave da contradição, acompanha a imagem de um menino de rua agachado na calçada, com o que parece um livro na mão. As fotos de Jack Pires registram cenas líricas e trágicas do cotidiano na capital paranaense, no melhor estilo fotojornalístico da época. Como os versos de Leminski, conseguem capturar despretensiosamente o instante.

O cão sem plumas (Nova Fronteira, 1984)

Poema de João Cabral de Melo Neto; fotografias de Maureen Bisilliat

Poucos artistas retrataram tão bem a complexidade do Brasil como Maureen Bisilliat. Além de grande fotógrafa, ela é também uma leitora perspicaz e apaixonada. Fez diversos livros em que põe suas fotos em diálogo com a obra de grandes escritores nacionais – esse é o tema, aliás, de pequena exposição no IMS Paulista. Em “O cão sem plumas”, incontornável poema de João Cabral de Melo Neto, Bisilliat associa fotos de um ensaio que fizera para a revista Realidade anos antes, na Paraíba, para uma matéria sobre homens e (principalmente) mulheres que viviam da pesca do caranguejo. As “caranguejeiras” (apelido pelo qual o próprio ensaio ficou conhecido) passavam o dia mergulhadas na lama do rio. O preto e branco das imagens reforça a ideia da triste simbiose entre essas personagens e a lama, e ecoa os versos do pernambucano, que falam de um rio Capibaribe que “Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa,/ da água do copo de água,/ da água de cântaro,/ dos peixes de água,/ da brisa na água./ Sabia dos caranguejos/ de lodo e ferrugem./ Sabia da lama/ como de uma mucosa./ Devia saber dos polvos./ Sabia seguramente/ da mulher febril que habita as ostras”. Uma lama que, aliás, de novas e ainda mais devastadoras maneiras, segue sendo o terrível retrato do descaso social e ambiental em nosso país.

Miguel Del Castillo é escritor, tradutor e editor, autor de “Restinga”. Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM, e atualmente é curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles em São Paulo.

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