Bruna Kalil Othero
A convite da seção ‘Favoritos’, a escritora e performer Bruna Kalil Othero sugere cinco livros para penetrar na história tragicômica do Brasil
Quando pensamos sobre o passado político do Brasil, temos que lidar com vários eventos e emoções. Por isso talvez seja melhor rir para não chorar: desde 1500, com a violenta invasão europeia, genocídio indígena e mais de 300 anos de escravidão, vivemos uma sucessão de golpes, sempre liderados por homens brancos. Parece ficção, mas não é.
A “independência” foi conduzida por um português e uma austríaca. A república brasileira, na teoria um projeto de liberdade democrática, foi proclamada com um golpe militar. A única presidenta mulher que tivemos foi tirada do poder num circo, planejado num grande acordonacional.
Tudo isso estava na minha cabeça durante os anos em que realizei a pesquisa para “O presidente pornô” , uma mistura de ficção histórica com pornochanchada política, protagonizada por um presidente que reúne características de todos os homens a ocuparem o cargo mais alto da política nacional. Investigando para a escrita do romance, percebi como a nossa história é tragicômica, e resolvi fazer piada da nossa própria desgraça — rindo, pensamos de uma forma mais transgressora. Indico aqui cinco livros que me arrancam lágrimas e gargalhadas ao refletir sobre essa ficção alucinante chamada Brasil.
Hilda Hilst (Biblioteca Azul, 2012)
Hilda Hilst dizia que a verdadeira obscenidade é a política, não o cu. Na sua trilogia pornográfica, composta ainda por “O caderno rosa de Lori Lamby” e “Cartas de um sedutor”, Hilst usa a simbologia erótica para falar — e muito! — da política do Brasil, desde o sistema republicano até a posição do país no grande concerto das nações. Destaco “Contos d’escárnio” porque, além de ser um romance experimental que mistura prosa, poesia e teatro (e por isso mostra todas as faces de HH), contém vários trechos hilários, como este aqui: “Brasil? Brasil? E o que é? E o que tens? É um país do futuro! O oráculo acaba de dizer! Que hão de escorraçar os letrados e o monstro das letras! Temos tudo nas mãos Bolas cricas gingas e tretas! Temos a pica mais dura do planeta! Viva o Brasil!”
Carolina Maria de Jesus (Ática, 2019)
Este clássico é, na minha opinião, incontornável para pensar o Brasil e a suposta democracia no país. Carolina Maria de Jesus, em seus diários que combinam denúncia social com ficção poética, cria uma narradora crítica, irônica e extremamente política, sem papas na língua para descer a lenha nas hipocrisias, racismos e violências excludentes do projeto republicano nacional. O espírito zombeteiro, mordaz e inteligentíssimo de Jesus nos acompanha ao longo das páginas, e destaco aqui as passagens nas quais ela critica e ridiculariza os políticos da época, que só visitavam a favela para ganhar votos e depois nunca mais voltavam. É deste livro uma das epígrafes de “O presidente pornô”, frase que condensa em si toda a teoria política da grande intelectual Carolina Maria de Jesus: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”
Patrícia Galvão (Companhia das Letras, 2022)
O Brasil não é um país: é um setor periférico dentro do vasto mundo da luta de classes. Assim pensa Patrícia Galvão, na contramão absoluta dos romances da década de 1930 e do modernismo como um todo, movimento preocupado em analisar o Brasil como pátria, ideia, linguagem. Em Parque Industrial, caso único na literatura modernista, Galvão recusa o que muitos escritores viam como um “dever”: discutir a identidade nacional . Para Pagu, não só a pátria é uma ideia ilusória como há mais de um Brasil. Este romance, na mesma medida cômico e trágico, é uma aula de como escrever literatura sem amarras formais, por meio de cenas, flashes e fragmentos. Além de tudo isso, ainda é precursor ao apresentar personagens femininas, negras e lésbicas envolvidas na militância política.
José Henrique Bortoluci (Fósforo, 2023)
Quem constrói o Brasil não são os políticos: são os trabalhadores. É a partir dessa premissa aparentemente simples mas radicalmente transgressora que José Henrique Bortoluci escreve a história do seu pai Didi, motorista de caminhão durante 50 anos. Contando a vida deste homem comum, Bortoluci narra o lado B da história brasileira oficial — com cenas na mesma medida tristes, lindas e divertidas. Formalmente falando, este livro é ao mesmo tempo romance, crônica, ensaio, biografia (de um homem e de um país). Seu Didi é o pai de José Henrique, mas é também um personagem de ficção incrível que desafia o estereótipo clássico: homem que viaja para explorar o mundo, suando e sofrendo para ganhar o pão nessa odisseia brasileira , enquanto sua esposa, a costureira Dirce, nossa Penélope decolonial, trabalha, costura e cuida dos filhos na ausência do marido. “O que é meu”, obra maravilhosamente brasileira, tira a poeira da estrada dos nossos olhos e nos relembra as infinitas possibilidades da literatura e da linguagem.
Sebastião Nunes (Altana, 2000)
Quem disse que a História, com H maiúsculo, precisa obedecer a realidade? Esta obra pastiche brinca com a forma dos livros didáticos, simulando entradas sobre fatos históricos, e dialoga com o clássico de mesmo nome de Murilo Mendes, pelo viés da brincadeira, irreverência e sarcasmo. Sebastião Nunes, poeta genial e historiador nas horas vagas, se revolta com as [A1]Histórias do Brasil que “nunca se dignaram a publicar a versão dos oprimidos desde o barco de Cabral” e decide recriar o nosso passado por meio da ficção de humor. O autor tira as máscaras do poder e exibe a baixeza vil dos nossos falsos heróis,expulsando a pontapés os grandes ícones dos seus pedestais. Nós rimos junto com Tião e concluímos que, sim, na literatura é possível fazer tudo — até inventar um país.
Bruna Kalil Othero é e scritora, performer, professora e pesquisadora e mestre em literatura brasileira pela UFMG e doutoranda na Universidade de Indiana (EUA). Nascida em Belo Horizonte, em 1995, publicou os livros de poemas “Poétiquase”, “Anticorpo” e “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas” (2019, premiado pelo Ministério da Cultura), além da coletânea de ficções “Carne” e do recém-lançado “O presidente pornô” , seu romance de estreia.
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