Trechos

‘Inverno’: uma mulher à procura de suas origens

Veronica Botelho


14 de novembro de 2024

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O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Inverno’, de Veronica Botelho. A obra conta a história de Isabel, que um dia se depara com cartas do pai escondidas por anos por sua avó, uma pessoa branca e racista em cujo seio familiar a protagonista negra nunca se encaixara

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Desde que a tia lhe mostrara as cartas enviadas pelo seu pai, até o momento em que decidira conversar com Madalena, Isabel havia chorado todas as noites. Era como se a chuva coexistisse com as lágrimas que invadiam seu rosto. No trabalho, o esforço para disfarçar a tristeza era em vão; todas as colegas percebiam a dor por detrás dos seus sorrisos forçados. Raquel tentava conversar com ela sobre o tema, mas Isabel sempre mudava de assunto, ou se trancava no quarto com seu diário e seu walkman, onde alternava Legião Urbana, Titãs, Celine Dion, Whitney Houston e a-ha. Provavelmente as únicas pessoas que conheciam o conteúdo daquelas cartas eram o seu pai, Madalena, dona Carmem e, agora, a própria Isabel.

Sua mãe encontrara as cartas no dia em que finalmente decidira se desfazer das coisas da matriarca. Dona Carmem falecera no verão daquele mesmo ano, enquanto dormia. Desde então as filhas jogavam uma para a outra a tarefa de esvaziar a casa, pois a senhora tinha o costume de guardar de tudo, absolutamente tudo, de recortes de jornais e temperos vencidos a papéis de bala e objetos que encontrava pela rua. Acumulava não apenas lixo e desorganização, mas também muita poeira. Com a desculpa de serem alérgicas, nenhuma delas queria assumir a tarefa. Até que um dia Madalena, cansada de ver a casa da matriarca fechada e com receio de que ela ficasse com aparência de abandonada e, aí sim, ninguém mais quisesse entrar nela, decidiu assumir o trabalho. As cartas estavam sob o colchão do quarto de dona Carmem, envolvidas num papel de pão, juntamente com fotos de pessoas que a filha não sabia quem eram.

Madalena se trancou no quarto e só saiu depois de horas, quando acabou de ler a última carta. No total foram vinte e sete, distribuídas ao longo de quinze anos. Ela ficou tão chocada com o que a mãe tivera a audácia de fazer que não teve coragem nem forças para dizer uma só palavra. Sem dar muita explicação sobre o conteúdo das missivas, pediu à irmã que as entregasse a Isabel.

— Ceição, não me pergunte nada, porque não sei o que responder. A única coisa que eu quero lhe dizer é que Renato não nos abandonou. Ele me amou, e muito.

A irmã obedeceu. Sem fazer perguntas e sem comentar nada com ninguém, viajou até Aracaju, pegando a própria filha de surpresa.

— Mãinha, o que a senhora tá fazendo aqui? Aconteceu alguma coisa?

— Sim e não…

— Tá todo mundo bem?

— Sim, mas alguma coisa está prestes a acontecer, só não sei o quê. Cadê Isabel?

— Ela deve tá chegando!

Isabel nunca soubera o nome do pai, mesmo assim bastou ler o remetente em um dos envelopes, e ver a expressão no rosto da tia, para entender o que estava acontecendo. Quando abriu a primeira carta, imediatamente teve certeza do que se tratava.

— Minha filha, diga alguma coisa… Isabel, eu nem consigo imaginar o que está passando pela sua cabeça, mas, pelo amor de Deus, conte o que está sentindo…

— …

— Fala alguma coisa, pelo amor de Deus, não faça como a sua mãe. A coitadinha passou dias sem dizer uma palavra. Todo mundo amuado, sem saber o que Madalena tinha. Ela acordava, ia para o trabalho, cuidava das meninas, da casa e nada mais. Nem quando o teu pai desapareceu ela tinha ficado tão triste. Até que um dia ela me pediu para vir te entregar essas cartas. Eu nem sei o que tem nelas. Foi suficiente saber que foi o Renato que as enviou… Ela ainda não quer conversar sobre isso. Ainda não acredito que mãinha foi capaz de fazer isso com vocês! — Diante da ausência de resposta, Conceição continuou: — Eu sempre soube que Renato era uma boa pessoa… Mas, minha filha, abra o seu coração, perdoe. Jesus nos ensinou o perdão…

— A senhora sempre soube que Renato era boa pessoa? Perdoar? Eu ainda nem sei o que estou sentindo. A última coisa em que eu estou pensando agora é em perdão… Tia Ceição, a senhora percebe que essa foi a primeira vez que falou que eu tenho um pai? Que só agora estou sabendo como ele se chama? Que cresci escutando as piores coisas sobre ele? Que na minha certidão de nascimento só tenho o nome da minha mãe? Aí, do nada, com vinte e três anos, fico sabendo que meu pai na verdade existe, fico sabendo o nome dele e que pelo visto ele nem sequer nos abandonou. Ah, e que a pessoa que mais o insultava escondeu durante anos as cartas que ele enviou. Aliás, a pessoa que também me insultava! Preciso ficar sozinha… Sinto como se meu coração fosse sair do peito e a cabeça se soltar do pescoço. Por favor, me deixe sozinha.

— Tá bom, minha filha. Sinto muito.

— Eu não sabia que a senhora havia conhecido o meu pai…

Diferentemente de sua mãe, Isabel leu as cartas sem pressa. A cada noite, após o trabalho, ela lia uma. Era como se quisesse que toda palavra, toda frase, toda vírgula que o pai escrevera durante aqueles anos fossem assimiladas não apenas pela sua cabeça, mas entrassem em seu corpo, como se isso pudesse apagar todos os insultos que ela escutara e desconstruir a imagem que criara dele. Como se só assim ela pudesse fazer as pazes com uma metade de si, e conseguisse finalmente aceitar a outra.

Inverno
Veronica Botelho
e-galáxia
178 páginas

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