Durante a manifestação, Lucas “Legume” Monteiro e Nina Cappello apareceram no Roda Viva, o programa de entrevistas em que um punhado de jornalistas literalmente cerca os convidados, fazendo-lhes perguntas. Os dois se saíram incrivelmente bem. Pode ter ajudado a gerar simpatia o fato de uma das entrevistadoras ser Giuliana Vallone, que exibia um olho preto gigante causado pela violência policial na quinta-feira. Mas os dois sobretudo impressionaram a bancada com seu profundo conhecimento da política de transportes no Brasil. Tinham feito a lição de casa e os jornalistas notaram. “Sabe, jornalistas são preguiçosos”, Lucas “Legume” Monteiro brincou comigo mais tarde, “qualquer preparo já pega eles de surpresa”. Respondi que eu formularia o problema de maneira um pouco diferente – que estamos submetidos à dinâmica econômica contemporânea do setor, que nos insta a produzir imediatamente conteúdo capaz de gerar muito engajamento, com recursos cada vez mais parcos –, mas que entendia sua posição. O crucial é que a dupla permaneceu inflexível e disciplinada no programa, plenamente comprometida com a redução do preço da passagem de ônibus como foco dos protestos. As pessoas podem ter levado outras demandas para as ruas, disseram, mas a única coisa que as unia era o apoio à causa inicial – a causa real.
Lá fora, porém, os participantes, repórteres, cidadãos e políticos viram a exibição de um leque incrivelmente amplo de demandas. Nos cartazes que as pessoas traziam, nas coisas que gritavam ou nos comentários feitos aos jornalistas, a mensagem não era exatamente clara.
Rolando o feed do Twitter na manhã de terça-feira, vi o mesmo conjunto divergente de interpretações, a mesma dinâmica de que se queixavam os participantes na praça Tahrir. Eu conhecia muitos jornalistas brasileiros pessoalmente, e conhecia muito bem a pequena comunidade de correspondentes estrangeiros. Percebi que nossas explicações sobre o que acontecera refletiam nossos próprios vieses e ideologias. Por exemplo, eu tendia a enfatizar que esses eram protestos sobre a insuficiência de serviços públicos, e que as queixas acerca de hospitais, escolas e atendimento à saúde, bem como a questão da segurança pública, eram variações sobre o tema inicial. Outro correspondente, um comentarista sério e experiente da Bloomberg, mais de direita, tendia a ver as pessoas rejeitando um Estado corrupto. Esse se tornara um argumento favorito dos conservadores desde que o Partido dos Trabalhadores começara a controlar o governo. E ele estava certo: algumas pessoas tinham levado faixas denunciando o PT ou chamando Lula de ladrão. Também se podiam encontrar imagens de cidadãos denunciando a esotérica PEC 37, uma proposta de emenda constitucional que lida com a questão técnico-jurídica a respeito de qual agência governamental investiga quais crimes. Era um bicho-papão favorito das publicações direitistas brasileiras, que, para ser franco, eu raramente lia. Dom Phillips, para nosso pequeno blog na Folha, gravara entrevistas em vídeo com uma grande variedade de pessoas, cobrindo o espectro das razões (por vezes contraditórias) pelas quais se manifestaram na segunda-feira. Muitos manifestantes agora rejeitavam explicitamente a mensagem oferecida pelo próprio MPL. “Não é pelos vinte centavos”, declarou um famoso slogan.
A TV Globo registrou e reproduziu imagens patrióticas, o “novo” estilo verde e amarelo de protesto que me surpreendera na noite de segunda-feira. E por todas as razões imagináveis, era muito mais provável a Globo veicular fotos de belas mulheres brancas com os rostos pintados de verde e amarelo do que de punks franzinos. Quem estava dizendo a verdade aqui? Ninguém, e todos nós. Estávamos lidando com uma erupção contestatória fundamentalmente ilegível e tentando torná-la legível. Tratava-se de um protesto de massas horizontalmente estruturado, digitalmente coordenado e desprovido de líderes. Concretamente, havia tantas razões para participar da revolta quanto participantes. Provavelmente mais.
Nós da mídia estávamos, bem, mediando a explosão, por meio de nossos próprios conjuntos de aparatos conceituais, experiências, vieses inconscientes e fontes que por acaso encontrássemos. Tais fontes eram elas próprias determinadas por todos os elementos anteriores. Por sorte ou acaso, Federico Freitas, o músico vegano que ainda em 1996 fundara a Verdurada (o evento punk do qual tanto o MPL quanto o Movimento Sem Terra tinham participado ao longo dos anos) me seguia no Twitter, e me colocou em contato com Daniel Guimarães, um membro do MPL famoso na cena ativista por fundar a banda punk Guerra de Classes e por seu papel na chamada Revolta da Catraca em Florianópolis, na década anterior. Então, durante a maior parte de junho eu tinha como fonte alguém que vinha do movimento original. Isso deve ter me deixado mais propenso a remontar os acontecimentos às intenções originais daquela organização. Seria essa análise mais verdadeira do que todas as outras análises possíveis? Não faço ideia. Aquilo já tinha virado uma revolta nacional, e todas as minhas experiências se deram em São Paulo. Em 17 de junho, manifestantes se dirigiram ao Congresso nacional e dançaram na marquise da construção; a Polícia Militar não conseguiu, ou não quis, detê-los. Talvez isso tenha mudado o futuro do país mais que qualquer coisa que tenha ocorrido no meu bairro. E então, à medida que comentaristas cada vez mais distantes começaram a se pronunciar, o quadro foi sendo pintado com pinceladas cada vez mais largas. ABC News usou aquela frase previsível, “Primavera Brasileira”, por mais que não fizesse muito sentido comparar uma sucessão de manifestações realizadas no inverno em uma democracia governada por uma presidente progressista e popular com os levantes que derrubaram ditadores no Norte da África. Profundamente antimilitarista, o MPL certamente não estava trabalhando no sentido de atingir algo semelhante à solução egípcia.
As organizações que discordavam explicitamente da orientação esquerdista/anarquista do Movimento Passe Livre encontraram uma oportunidade nos protestos. Uma delas tinha raízes internacionais. O Brasil abrigava um pequeno, mas dedicado, grupo de instituições radicais de livre mercado, com frequência ligadas ao movimento libertário global baseado nos Estados Unidos. Estudantes Pela Liberdade era a versão brasileira do Students for Liberty, o think tank pró-livre mercado fundado pela Atlas Network e pelo Cato Institute, ambos sediados em Washington. O fundador Fábio Ostermann aprendera uma ou dois coisinhas de seus camaradas pró-capitalistas estadunidenses nos seminários sobre livre mercado realizados em 2008 no Cato Institute e na Foundation for Economic Education [Fundação para a Educação Econômica], e como um “Koch Summer Fellow” em um programa pago pelos bilionários irmãos Koch. A acadêmica brasileira Camila Rocha, que rastreou a ascensão dos think tanks pró-livre mercado no país, chama a Atlas Network de uma espécie de “Comintern neoliberal”, comparando a imensa ONG pró-negócios com a Internacional Comunista, pois financia e coordena organizações que promovem sua ideologia bastante distinta por todo o mundo. Embora a Estudantes Pela Liberdade e organizações associadas no Brasil (como o Instituto Mises e o Instituto Millenium) promovam pensadores assumidamente “neoliberais”, elas costumam evitar essa palavra (e suas conotações negativas na América do Sul). Preferem a palavra liberal, que em português não tem nenhuma das conotações de centro-esquerda que possui nos Estados Unidos. Significa liberdade, em um sentido muito diferente do que o compreende o MPL. Significa “livres mercados”.
A Estudantes Pela Liberdade recebeu financiamento da Students for Liberty nos Estados Unidos, que usou para bancar uma pequena equipe no Brasil. Isso também significava que a organização não podia participar diretamente de manifestações políticas no Brasil – isso seria ilegal. Mas viram uma possibilidade nas inesperadas manifestações de massa. Ostermann me disse que queriam criar uma “vanguarda liberal” dentro do movimento de protesto. Então entrou em contato com um amigo com a ideia de reaproveitar um de seus outros slogans para o presente momento. Criaram o Movimento Brasil Livre (MBL) e usaram a nova página no Facebook para chamar pessoas para protestar – “mas pela(s) causa(s) certa(s)” – em 18 de junho.
“MBL” soa quase idêntico a “MPL”. Isso foi intencional. A fundação do MBL foi uma tentativa de entrar na briga e redefinir o significado dos protestos, disse Ostermann. “Queríamos que MBL soasse similar a MPL como forma de contestação. Porque não queríamos transporte livre, queríamos o Brasil livre, e tínhamos uma série de propostas – como a remoção dos benefícios fiscais e subsídios, a abertura de mercados, e mais concorrência.”
O prefeito Haddad estava de volta à cidade e sofrendo intensa pressão. O MPL agora estava disposto a topar uma reunião na Prefeitura. Em 18 de junho, eles explicaram sua posição e receberam o apoio de boa parte do Conselho da Cidade. Sete outras cidades brasileiras abaixaram os preços do transporte naquele dia. Haddad, porém, não queria diminuir o preço da passagem de ônibus. Ele entendia por que o país tinha explodido em resposta à violência policial, que era ela mesma vingança pelo policial ferido na semana anterior, mas isso não tinha nada a ver com a política de transportes. Ceder na tarifa não ia parar a coisa. “Se eu ceder, tudo que restará como alvo é você”, lembra-se de ter dito à presidente Dilma. “É melhor eu ficar na frente e aguentar as bordoadas.” Mayara estava na reunião. Estava cansada, distraída e nervosa. Sentia que Haddad fora sempre tão arrogante em relação a eles, tão desdenhoso. Mas conseguiu transmitir ao conselho o discurso político padrão do MPL. Só mais tarde percebeu que havia misturado alguns detalhes; jamais gostara de falar em público. De qualquer forma, a cidade não ia ceder. O Movimento Passe Livre permaneceu comprometido com a vitória nas ruas. Mais tarde, na terça-feira, 18 de junho, houve mais protestos pelo país. Em São Paulo, começaram no centro, perto da grandiosa Catedral da Sé, a mais importante igreja católica da cidade.
Estava claro, agora, que os manifestantes não tinham de fato derrotado a polícia. Os policiais haviam simplesmente permanecido à margem. Exceto por algumas pequenas intervenções em defesa do Palácio dos Bandeirantes na noite anterior, haviam escolhido não se envolver. Na terça-feira, com as ruas para si mesmos, alguns manifestantes começaram a quebrar vitrines de lojas no centro, e outro grupo investiu contra a própria Prefeitura. Tentaram invadir o gabinete de trabalho de Haddad e começaram a depredar o máximo possível da estrutura. Os funcionários no interior pediram reforço para a polícia. Ninguém veio. Mayara estava na rua, nas proximidades, e uma mulher mais velha correu até ela; deve tê-la reconhecido de alguma aparição na mídia. “Estão destruindo a Prefeitura! Você precisa fazer alguma coisa. Manda eles pararem!” Mayara fez uma pausa para pensar – realmente não era uma boa ideia invadir e destroçar assim aquelas instituições públicas, e ameaçar os funcionários em seu interior. Será que ela deveria ir lá e dizer algo? Não era exatamente o papel que gostasse de desempenhar (figura de autoridade da manifestação, jamais; figura de oposição à ação direta, seria a primeira vez). Continuou a considerar suas opções, até que algo interrompeu sua concentração. Bem perto dela, um grupo de manifestantes cercou uma van de jornalismo da TV Record e a incendiou.
A década da revolução perdida: A onda de manifestações que incendiaram o mundo
Vincent Bevins
Trad. Carlos Eduardo Matos
Boitempo
344 páginas