Explicado

Independência do Brasil: uma ruptura a favor do status quo

Isabela Cruz

06 de setembro de 2022(atualizado 30/12/2023 às 13h31)

Há 200 anos, o país se desvinculava de Portugal. Mas a liberdade demorou a acontecer para todos os brasileiros, apesar de muitos terem lutado pela emancipação nacional

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Neste texto:

  • O QUE foi a Independência do Brasil
  • QUANDO surgiram as ideias da Independência
  • POR QUE a Independência foi declarada
  • COMO a independência foi consolidada
  • ONDE houve conflitos
  • QUEM foi apagado desse processo
  • EM ASPAS
  • NA ARTE
  • VÁ AINDA MAIS FUNDO

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FOTO: REPRODUÇÕES PEDRO AMÉRICO (1888), GEORGINA DE ALBUQUERQUE (1922), ANTÔNIO PARREIRAS (1930)/NEXO JORNAL

Composição de pinturas históricos em que aparecem dom Pedro 1º, dona Maria Leopoldina e população baiana, em momentos do processo de Independência nacional

Composição de pinturas históricos em que aparecem dom Pedro 1º, dona Maria Leopoldina e população baiana, em momentos do processo de Independência nacional

O Brasil celebra em 7 de setembro de 2022 os 200 anos de sua Independência, num momento em que o governo federal incentiva um ufanismo patriótico, e grupos políticos resgatam símbolos imperiais.

Para além de desfiles militares, a data é uma oportunidade de o país revisitar o passado, de modo a compreender mais a fundo sua formação e reconhecer os papéis dos diferentes grupos sociais nesse processo.

Dois séculos atrás, um príncipe português declarou o rompimento do Brasil com Portugal. Diante das tendências republicanas de sua região, o Brasil se afirmou como um Império escravocrata. Neste texto, o Nexo explica como isso aconteceu.

O QUE foi a Independência do Brasil

A Independência foi uma sucessão de acontecimentos, decisões e conflitos que possibilitaram ao Brasil, então sob o status de reino unido a Portugal e Algarves, tornar-se uma nação soberana, depois de três séculos como colônia.

As ideias de independência já alimentavam rebeliões em diversas localidades do Brasil desde o século 18, mas as condições para que esse processo ocorresse nacionalmente começaram a se configurar a partir 1808. Nesse ano, a família real dos Bragança, junto com outros milhares de portugueses, instalou no Rio de Janeiro a sede do governo de Portugal, para blindá-lo contra a dominação francesa de Napoleão Bonaparte.

Assim que chegou ao Brasil, o príncipe regente dom João decretou a abertura dos portos, acabando com a exclusividade comercial da metrópole. Essa era uma das bases do sistema colonial. A sede da metrópole colonial passou a ficar dentro da própria colônia, que por sua vez passou a se relacionar diretamente com outros países.

Em 1815, dom João ainda elevou o Brasil ao status de reino unido a Portugal e Algarves (região ao sul do atual território de Portugal, à época considerado um reino separado). A medida era uma forma de garantir a legitimidade do monarca português perante seus pares na Europa, mas também refletia a importância econômica e política do Brasil dentro do império português.

FOTO: REPRODUÇÃO

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Vista exterior da galeria de aclamação de D. João 6º, Jean Baptiste Debret (1850)

Em 1822, uma série de eventos foram consolidando o processo de emancipação do Brasil em relação a Portugal, até a Independência ser proclamada formalmente em 7 de setembro daquele ano, pelo príncipe regente dom Pedro 1º — um ano e meio depois do retorno de seu pai, dom João 6º, para Portugal.

Longe de uma narrativa linear e harmônica, a Independência ainda passou por um processo de consolidação que envolveu não apenas as disputas com Portugal, mas também os conflitos entre brasileiros, que ainda não se viam como nação unificada. A nacionalidade brasileira ainda teria de ser gerada, assim como a unidade de um Estado imperial.

QUANDO surgiram as ideias da Independência

Ideias liberais iluministas chegavam ao Brasil desde o final do século 18, com as notícias da Independência dos Estados Unidos, em 1776, da Revolução Francesa, iniciada em 1789, e da Revolução Haitiana, que ganhou notoriedade internacional em 1791. Filhos da elite brasileira que iam estudar na Universidade de Coimbra, em Portugal, também voltavam ao país com agendas liberais.

Somado a essas ideias, o arrocho fiscal de Portugal em relação ao Brasil alimentava a crise do sistema colonial, impulsionando rebeliões em capitanias que já propunham uma ruptura com a metrópole. Não havia ainda, porém, uma noção de Brasil como nação, de modo que as demandas políticas tinham caráter regional.

Um desses movimentos rebeldes, por exemplo, foi a Inconfidência Mineira em 1789, conduzida por pessoas da elite exploradora de ouro insatisfeitas com o anúncio de que o governo português promoveria uma derrama (cobrança de impostos por meio do confisco de bens).

Influenciados pela Revolução Americana, integrantes da Inconfidência pretendiam fundar uma república liberal em Minas Gerais, mas não propunham o fim da escravidão. A articulação, contudo, acabou descoberta antes de ser posta em prática, e um de seus integrantes foi executado em praça pública. Esse era Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Outra dessas rebeliões foi a Conjuração Baiana em 1798, também chamada de Conjuração dos Alfaiates. Nesse caso, a iniciativa partiu de camadas populares. Além de insatisfeitas com o recrutamento militar, com os baixos salários e com outros problemas sociais, elas agiam inspiradas pela revolução de escravizados no Haiti e pela fase mais radical da Revolução Francesa, que aboliu a escravidão nas colônias da França.

Na Bahia, portanto, se propunha não apenas a criação de uma república baiana, mas também o fim da escravidão. Integrantes da Conjuração também acabaram punidos com a pena capital.

Às portas de 1822

No século 19, a instalação das instituições de governo portuguesas no Rio de Janeiro, que passou a arrecadar os impostos das demais capitanias, fez da cidade uma espécie de nova metrópole para outras regiões brasileiras. Assim, surgiram em outras capitanias (os estados, no modelo federativo atual) movimentos contrários ao próprio Rio.

Pernambuco, que tinha o Seminário de Olinda – primeira instituição de educação superior iluminista do Brasil – e passava por uma crise econômica, foi grande exemplo disso, com revoltas diferentes.

A Insurreição Pernambucana de 1817, por exemplo, chegou a proclamar uma república independente e a instalar um governo provisório, num movimento antilusitano que se espalhou pelo Nordeste e durou dois meses. Alas mais radicais do movimento também defendiam a abolição da escravidão. A repressão por parte da Coroa no Rio de Janeiro foi forte.

A República de Pernambuco

Em 1820, as ideias liberais ganharam novo impulso dentro do império português, com a disseminação de movimentos dessa natureza: a Independência da Grécia, a Libertação da Bélgica e a Revolução de Cádiz, na Espanha.

Em Portugal especificamente, a Revolução Liberal do Porto, iniciada em agosto daquele ano por militares insatisfeitos, contestou o absolutismo e conseguiu convocar as Cortes (espécie de um Parlamento com representantes de todo o império português) para criar uma Constituição portuguesa que limitasse os poderes do monarca.

Impulsionado por lojas maçônicas, o movimento português alcançou províncias brasileiras e inspirou novas reivindicações. O Brasil então mandou representantes para as Cortes portuguesas. Em junho de 1822, antes da proclamação da Independência, dom Pedro aceitou que os brasileiros também tivessem uma Assembleia Constituinte — algo que saiu do papel em maio de 1823.

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Sessão das Cortes de Lisboa, Oscar Pereira da Silva (1922)

POR QUE a Independência foi declarada

Uma conjunção de fatores pressionou as elites no Brasil em 1822 de tal forma que mesmo setores que até então não pretendiam romper com Portugal passaram a admitir a Independência como meio de preservarem seus privilégios.

Nas Cortes em Portugal, os parlamentares lusitanos, embora pretendessem medidas liberais contra o rei dom João, passaram a defender a reimplantação do sistema colonial para o Brasil. Isso incluía o retorno das principais repartições da máquina pública a Lisboa, o fim do sistema de portos abertos no Brasil e a ligação direta das províncias brasileiras com a capital lusitana (sem a intermediação do Rio de Janeiro), de modo a retomarem os lucros decorrentes dessa exclusividade.

As propostas atingiam frontalmente os interesses da elite agrária exportadora brasileira, assim como de comerciantes portugueses instalados no Brasil e interessados na manutenção de um mercado ampliado. Atingiam também os interesses de uma elite urbana que já tinha conquistado cargos e privilégios com a instalação do governo português no Rio e se beneficiado do desenvolvimento socioeconômico que decorreu dessa mudança.

Dentro do Brasil, pressões sociais contra a miséria, contra a exploração da Coroa e contra a escravidão ficavam cada vez mais preocupantes para uma elite que, desde a Revolução do Haiti, se apavorava com a possibilidade de uma sublevação de pessoas escravizadas por aqui também.

Os processos de independência em países vizinhos da América Espanhola indicavam que uma emancipação alimentada por reivindicações republicanas e democráticas poderia ganhar força no Brasil também, colocando em risco o lucrativo sistema escravocrata que movia a economia brasileira.

Nesse cenário, especialmente no Rio, em São Paulo e Minas, a proposta de uma Independência ordeira, sem dar chances para rebeldias populares, uniu elites, ainda que elas não tivessem um projeto claro de desenvolvimento para o país ou de organização do Estado brasileiro. A ruptura passou a ser cada vez mais cogitada como meio, na verdade, para manter as estruturas sociais então vigentes.

A possibilidade de fragmentação do território e de guerra civil, como acontecia nos conflitos dentro dos Vice-Reinos da América Espanhola, também assustava a Coroa portuguesa. Não à toa, o próprio dom João 6º recomendou a medida a seu filho, ao deixar o Brasil.

FOTO: REPRODUÇÃO

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Retrato de Dom Pedro 1 º, Benedito Calixto de Jesus (1902)

A proposta então de dom Pedro foi garantir às elites a contenção das massas e a manutenção da escravidão, algo que também financiaria a nova nação, em troca de apoio a um Império brasileiro unificado.

Conforme esse apoio ia crescendo, o príncipe regente foi tomando em 1822 uma série de medidas que progressivamente afastavam o Brasil do domínio político de Portugal. Entre elas:

  • Janeiro: dom Pedro 1º decidiu que ficaria no Brasil, conforme pedia uma petição com milhares de assinaturas coletadas pelo político José Bonifácio, em vez de atender à exigência das Cortes portuguesas pelo seu retorno. O episódio, ocorrido no dia 9, ficou marcado como “Dia do Fico”.
  • Janeiro: o príncipe regente também nomeou Bonifácio, um brasileiro, para o comando dos ministérios de seu governo. Defensor da monarquia e ao mesmo tempo da extinção gradativa da escravidão, Bonifácio ficou conhecido como o patriarca da Independência.
  • Maio: o governo brasileiro estabeleceu que cabia a dom Pedro mandar cumprir as determinações vindas de Portugal, em resposta à determinação portuguesa de que as ordens do príncipe regente no Brasil poderiam ser revogadas por Lisboa.
  • Agosto: dom Pedro decretou que as tropas enviadas pelos parlamentares portugueses seriam consideradas inimigas.

No início de setembro, ocorreu o estopim para a ruptura. Atuando como regente interina no Rio de Janeiro enquanto seu esposo dom Pedro visitava São Paulo, a princesa Dona Maria Leopoldina recebeu despachos de Lisboa que revogavam decretos do príncipe regente e acusavam seus ministros de traição.

Diante disso, ela e Bonifácio decidiram enviar cartas a dom Pedro para orientá-lo a declarar a Independência o quanto antes.

FOTO: REPRODUÇÃO

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Sessão do conselho de ministros, Georgina Albuquerque (1922)

Avisado, dom Pedro tomou a medida no dia 7 de setembro de 1822, cercado por sua guarda de honra, às margens do rio Ipiranga, durante uma viagem do Rio de Janeiro para São Paulo.

Após 66 anos, o episódio foi pintado por Pedro Américo sob encomenda do imperador dom Pedro 2º, filho de dom Pedro 1º. A obra virou a mais famosa representação do Sete de Setembro, criando no imaginário popular, conforme queria Américo, uma memória heróica da Proclamação.

Segundo os registros históricos, no entanto, o Grito do Ipiranga, um riacho, ocorreu de improviso, às pressas, feito por um príncipe acompanhado de uma guarda reduzida (após ele ter prorrogado sua viagem em Santos para se encontrar com a amante Domitila de Castro, a Marquesa de Santos), montado num burro e passando por uma crise intestinal.

FOTO: REPRODUÇÃO

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Independência ou morte, Pedro Américo (1888)

Independentemente da ausência de heroísmo da cena, ela marca uma entre as diversas outras contradições da história brasileira: a declaração da Independência nacional em relação a Portugal foi feita por um monarca português.

A Independência brasileira foi, portanto, um processo de ruptura formal marcado, na prática, por uma série de continuidades políticas e sociais. Até as cores da realeza ficaram na bandeira do Império brasileiro: verde dos Bragança e amarelo dos Habsburgo.

Bandeira imperial

Bandeira imperial

COMO a independência foi consolidada

A consolidação da independência brasileira exigiu reconhecimento internacional da soberania brasileira, negociações dinásticas com Portugal e também enfrentamentos militares contra as tropas de Lisboa, aliadas aos governos locais em algumas províncias.

Internacionalmente, o reconhecimento da Independência começou por países africanos ligados ao Brasil pelo tráfico negreiro pelo Atlântico, como Benim e Lagos, ainda em 1823. O reconhecimento por parte Angola, principal foco do tráfico para o Brasil, foi buscado com prioridade pelo governo de dom Pedro. No continente americano, o primeiro reconhecimento veio dos Estados Unidos, em maio de 1824.

As negociações com Portugal foram intermediadas pela Inglaterra, que era tanto aliada da Coroa portuguesa quanto o principal parceiro comercial do Brasil. Fechado à época pelo imperador, o Parlamento brasileiro não participou do processo, que acabou marcado por um superdimensionamento da resistência estrangeira em reconhecer a independência brasileira.

Num tratado de Independência com Portugal assinado em agosto de 1825 e ratificado em 1827, dom Pedro, que tinha seus interesses pessoais na preservação do trono português, aceitou:

  • A coroação de dom João 6º, seu pai, como imperador honorário do Brasil.
  • O compromisso do país em não ter qualquer pretensão colonial ou de anexação sobre as colônias africanas do império português, ligadas ao Brasil pelo tráfico negreiro.
  • A obrigação brasileira de “indenizar” Portugal em 2 milhões de libras esterlinas, entre outros motivos, pelas estruturas da Coroa que tinham ficado no Brasil, como a Biblioteca Real e o Palácio da Quinta da Boavista.

Esse montante o Brasil teve de tomar emprestado na própria Inglaterra, que por sua vez era também credora de Portugal. A intermediação dos ingleses, portanto, favoreceu seus próprios interesses e fez do Brasil um país que já nasceu endividado.

Para obter o reconhecimento inglês de sua soberania, o Brasil firmou tratado em 1826 renovando os privilégios do país no território brasileiro, como impostos alfandegários especiais e tribunal exclusivo, e mantendo o relacionamento nacional com os ingleses em bases explicitamente subservientes por mais quase duas décadas.

A Inglaterra também cobrava o Brasil havia anos pelo fim do tráfico negreiro, um compromisso que a Coroa portuguesa já tinha assumido anteriormente, sem cumprir. Ficou estabelecido que até 1830 isso aconteceria. A nova promessa também foi descumprida.

O tráfico foi proibido em 1831, por uma lei de iniciativa brasileira, mas poucos anos depois o contrabando das pessoas escravizadas passou a ser escancarado. Mais de 740 mil pessoas sequestradas de países africanos entraram ilegalmente no Brasil como escravas, com uma complacência do Estado brasileiro que durou até a década de 1850. Após a proibição do tráfico do exterior, a escravidão em si só foi proibida no país em 1888.

ONDE houve conflitos

As guerras também foram realidade, obrigando tanto Portugal quanto Brasil a contratar mercenários estrangeiros. Um dos principais conflitos ocorreu na província Cisplatina (atual Uruguai), onde as tropas portuguesas foram derrotadas em novembro de 1823.

Outro importante cenário de batalha foi a Bahia. Por lá, os conflitos contra os portugueses começaram ainda em junho de 1822, antes do Grito do Ipiranga.

Uma esquadra portuguesa tentou bloquear a entrada de Salvador. A contraofensiva em defesa da Independência se deu por terra e por mar, com uma frota liderada por Cochrane — um aristocrata inglês que foi figura central nas Independências do Chile e do Peru. A derrota lusitana na Bahia ocorreu em 2 de julho daquele ano, data que virou e continua sendo feriado no estado.

No Piauí, os brasileiros perderam a Batalha do Jenipapo para as tropas de Lisboa, em 13 de março de 1823. Ainda assim a resistência oferecida pelas 200 pessoas que morreram no conflito virou motivo de orgulho nacional e está na bandeira do estado.

Bandeira do estado do Piauí

Bandeira do estado do Piauí

Além da resistência de Lisboa, a instituição de uma nação independente centrada no Rio de Janeiro, que acumulava uma série de contestações das demais províncias, tampouco era um consenso no território brasileiro.

Algumas províncias do Nordeste e do Norte, pela localização geográfica e composição populacional, mantinham em 1822 relações mais próximas com Portugal do que com o Rio. Por isso lutaram contra as tropas de dom Pedro 1º, no que acabaram derrotadas. Esse foi o caso, por exemplo, do Grão-Pará e do Maranhão, que teve conflitos até 1825.

QUEM foi apagado desse processo

Protagonizadas por pessoas negras e pobres, as guerras da Independência são frequentemente invisibilizadas por uma historiografia romantizada e palaciana que relata a Independência como um processo suave, conduzido exclusivamente por homens brancos, e acompanhado passivamente pelo povo.

Nos primeiros anos do Brasil soberano, a Independência era comemorada no dia 10 de outubro, data em que dom Pedro 1º foi aclamado Imperador, em 1822 no Rio de Janeiro. A coroação se deu em 1º de dezembro daquele ano, quando ele tinha 24 anos de idade.

FOTO: REPRODUÇÃO

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Aclamação de D. Pedro 2º: no Rio de Janeiro ao dia 7 de abril de 1831, Jean Baptiste Debret (aprox. 1831)

Mas o apagamento das camadas populares da história oficial da Independência logo ocorreu. Ao negociar o reconhecimento de Portugal da Independência brasileira, dom Pedro chega a aceitar que no tratado bilateral, assinado em 1825, constasse que a Independência se deu por “livre vontade” de dom João 6º, que permaneceu imperador honorário do Brasil até a morte.

Desde então, uma série de esforços oficiais para a construção da memória nacional fixaram o 7 de setembro, protagonizado por um príncipe europeu, como o Dia da Independência do Brasil.

A celebração da Independência mudou para o 7 de setembro, em benefício do episódio às margens do Ipiranga, em São Paulo, por iniciativa do próprio imperador, que precisava se aproximar da elite paulista.

Mais tarde, um forte concorrente do 7 de setembro foi o 7 de abril de 1831, quando dom Pedro abdicou do trono em favor de seu filho criança e deixou o país. Já naquela época a data ficou conhecida como Segunda Independência: desta vez um evento de intensa participação das camadas populares que colocou no comando do país um brasileiro, dom Pedro 2º.

Mas foi no 7 de setembro que o Império, já sob dom Pedro 2º, investiu para a construção da identidade nacional. Fizeram parte desse processo a própria encomenda da pintura de seu pai às margens do Ipiranga e a criação do Museu do Ipiranga (Museu Paulista da Universidade do Estado de São Paulo) para abrigar o quadro.

Já no período republicano, integraram esse processo de construção da nacionalidade as grandes celebrações dos 100 e dos 150 anos da Independência.

No Centenário, o projeto do governo federal de Epitácio Pessoa, que inclui uma grande exposição internacional e a criação do Museu Histórico Nacional, chegou a promover alguns esforços de diversificação das perspectivas sobre a ruptura com Portugal. Maria Quitéria, por exemplo, que combateu na Bahia como Soldado Medeiros, ganhou destaque em obras de arte. Esses esforços, no entanto, concorreram com os de instituições paulistas para que o protagonismo fosse o do Ipiranga.

Já na comemoração dos 150 anos da Independência, a ditadura militar apostou numa narrativa heróica e patriótica do processo, usando a efeméride para promover o regime e enaltecer um nacionalismo que abafava quaisquer tipos de divergências. O general Ernesto Médici, que comandava o país, recebeu da ditadura portuguesa salazarista os restos mortais de dom Pedro 1º.

Desde então, a historiografia brasileira produziu uma série de pesquisas que mostraram o papel de pessoas pobres, negros e mulheres na história da emancipação brasileira, para além das figuras históricas já reconhecidas.

A produção acadêmica, no entanto, não foi usada pelo governo Jair Bolsonaro em 2022, que centralizou a celebração dos 200 Anos da Independência ainda exclusivamente na figura de dom Pedro 1º. As redes sociais do presidente chegaram a mostrar comparações entre ele e o monarca português.

Ainda assim, Bolsonaro pouco investiu em eventos do Bicentenário, apesar de ter monarquistas e outros grupos conservadores em sua base eleitoral. Cobrado por apoiadores, o governo criou no final de 2021 uma linha de crédito para produções audiovisuais sobre o tema. Também houve apoio à reforma do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, por meio da Lei Rouanet.

No campo dos eventos culturais, a maior ação do governo, que aposta em desfiles militares para mobilizar sua base eleitoral, foi receber com honras de Estado o coração em formol de dom Pedro 1º.

EM ASPAS

“Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti , que hás de me respeitar, do que para algum aventureiro”

dom João 6º

então rei do Império Português, para seu filho Pedro, ao embarcar do Brasil para Portugal, em abril de 1821, antevendo um acordo dinástico para a Independência

“Viva a Religião, Viva a Constituição, Vivão as Cortes, Viva El-Rei Constitucional, Viva o Príncipe Constitucional, Viva a União de Portugal com o Brasil”

presidente do Senado da Câmara

em gritos da janela do palácio, em razão da permanência do príncipe regente no Brasil, em janeiro de 1822. A fala é exemplificativa de como as rupturas da época eram acompanhadas de uma série de continuidades

“A ideia de patriotismo é acionada por Lima [Barreto] no seu sentido mais agudo. Era direcionada ʽcontra a patriotada barata que havia contaminado os brasileirosʼ, escrevia ele na revista Careta. Seu patriotismo era outro, pois não se conformava com o autoritarismo reinante e a exclusão social. A pátria que queria, assim, muito outra”

Lilia Schwarcz

antropóloga e historiadora, professora da USP, global scholar em Princeton e colunista do Nexo , sobre o que dizia em 1922 o escritor literário e jornalista Lima Barreto

“Nós teríamos muitas coisas para celebrar, assim como coisas ruins para rememorar, mas este governo não fez nada. Só está celebrando a nossa história de golpe de Estado, de intervenções militares, de locupletação e uso da verba pública, de patrimonialismo”

João Daniel Almeida

historiador, professor da PUC-Rio, ao Nexo , sobre as realizações do governo federal para os 200 anos da Independência

“Avançamos bastante nas condições para chegar no Bicentenário e realizar uma discussão profunda, aproveitar o engajamento da cidadania com a efeméride e usar esse momento para fazermos uma discussão profunda dos problemas, dos vícios de origem que interferem no nosso desenvolvimento. Mas tudo isso é negado e substituído por celebrações que são totalmente anódinas do ponto de vista de conteúdo”

George Cabral

historiador, professor da UFPE, ao Nexo , analisando o Bicentenário da Independência

“Eu gostaria de dizer que eu tenho um imenso orgulho da história do Brasil, do nosso país e do nosso povo. Porque o nosso povo fez muitas coisas, apesar de todo esse processo excludente, elitista e racista, ao qual a maioria da população foi submetida. Apesar disso tudo e contra isso tudo, as pessoas sempre se rebelaram, e não só em lutas armadas. Encontraram formas de existência, de afirmação e de criação”

Monica Lima

historiadora, professora da UFRJ, ao Nexo , a respeito dos 200 anos da Independência brasileira

NA ARTE

VÁ AINDA MAIS FUNDO

  • Livro “O sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro”, escrito por Carlos Lima Junior, Lilia Moritz Schwarcz e Lúcia Klück Stumpf (Companhia das Letras, 2022)
  • Podcast “Projeto Querino – Um outro olhar sobre o Brasil”, coordenado por Tiago Rogero (Rádio Novelo, 2022)
  • Podcast “Mulheres na Independência ”, de Antonia Pellegrino e Heloísa Starling (Globoplay, 2022)
  • Livro “Racismo brasileiro: uma história da formação do país”, escrito por Ynaê Lopes dos Santos (Todavia, 2022)
  • Livro “A interiorização da metrópole e outros estudos ”, escrito por Maria Odila Leite Dias (Alameda, 2005)
  • Livro “A construção da ordem: a elite política imperial”, escrito por José Murilo de Carvalho (Campus, 1980)
  • Capítulo “O Brasil no mundo”, escrito por Rubens Ricupero, do volume “Crise Colonial e Independência” da coleção “História do Brasil Nação”, coordenado por Alberto da Costa e Silva (Objetiva e Fundação Mapfre, 2015)
  • Podcast “Ecos do Ipiranga”, produzida pelo Museu Paulista da Universidade de São Paulo (conhecido como Museu do Ipiranga)

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