Orgulho LGBTI: afinal, para que servem as paradas?
André Cabette Fábio
22 de junho de 2019(atualizado 28/12/2023 às 12h59)Representantes de cada uma das cinco letras da sigla respondem à pergunta sobre a importância do evento que reúne milhões de pessoas
Parada LGBT de São Paulo, em 2007
A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo é o maior evento do tipo no mundo, reunindo milhões de pessoas nas ruas, promovendo shows e atraindo turistas de todo o Brasil.
A edição de 23 de junho de 2019 foi a 23ª. Ela celebrou os 50 anos de um marco político para o movimento LGBTI e que foi um propulsor das paradas pelo mundo: a Revolta de Stonewall, ocorrida em Nova York, em 1969. A parada paulistana de 2019 tem como slogan “50 anos de Stonewall – Nossas conquistas, nosso orgulho de ser LGBT+”.
O evento ocorre pouco mais de uma semana após o Supremo Tribunal Federal decidir que homofobia e transfobia devem ser enquadradas como crime de racismo no Brasil até que o Congresso legisle sobre o tema.
Pela decisão, racismo deve ser entendido como uma construção histórica que busca justificar situações de desigualdade, dominação política e subjugação social de membros de grupos sociais vulneráveis. A LGBTIfobia se encaixa nessa descrição. O crime de racismo é inafiançável e imprescritível, e a pena vai de um a três anos de detenção e multa.
A criminalização é uma reivindicação histórica do movimento LGBTI. Ela foi criticada pelo presidente Jair Bolsonaro, que ao longo de sua trajetória ganhou visibilidade ao se contrapor a políticas favoráveis a essa população.
O presidente disse acreditar que, com a criminalização da homo e da transfobia, homossexuais poderiam ter mais dificuldade em conseguir emprego. Isso porque o patrão poderia ter receio de ser falsamente acusado de discriminação após uma demissão.
Na década de 1960, o Stonewall Inn era um bar controlado pela máfia em Nova York. Ele servia como uma espécie de refúgio boêmio para marginalizados. Entre eles, trans, lésbicas masculinizadas, homens afeminados, prostitutas e moradores de rua.
No dia 28 de junho de 1969, nove policiais entrararam no local e prenderam funcionários que estavam vendendo álcool sem licença, agrediram clientes e esvaziaram o bar.
Na época, havia leis proibindo o encorajamento a relações homossexuais. Além disso, pessoas que não estivessem utilizando ao menos três peças de roupa de acordo com seu gênero, podiam ser presas.
Ações policiais como aquela em Stonewall eram comuns. Dessa vez, no entanto, pessoas do lado de fora do bar começaram a vaiar e gritar, enquanto os clientes eram conduzidos para o camburão de polícia.
Garrafas e pedras foram atiradas contra os policiais, que se abrigaram dentro do próprio Stonewall, montaram uma barricada e pediram reforços, enquanto cerca de 400 pessoas se revoltavam do lado de fora. A multidão tentou incendiar o bar, mas reforços chegaram e o fogo foi contido. Os revoltosos se dispersaram naquele dia, mas agitações do lado de fora continuaram a ocorrer nos dias seguintes.
A primeira parada do orgulho gay ocorreu um ano depois , em Nova York, no dia 27 de junho de 1970. Ela foi chamada de CSLD (sigla em inglês para Dia da Liberação de Christopher Street), em referência ao nome da rua em que o Stonewall Inn funciona até hoje.
A parada tinha como mote comemorar o aniversário de um ano da Revolta de Stonewall, e reuniu cerca de 2.000 pessoas. Uma parada irmã ocorreu no dia 28 de junho daquele mesmo ano na cidade de Los Angeles. Com o tempo, marchas do tipo começaram a se propagar por outras cidades dos Estados Unidos e do mundo.
Militantes lésbicas, bissexuais, trans, intersexuais, entre outros grupos que participavam, passaram a exigir que suas identidades fossem contempladas explicitamente nos eventos e, no decorrer dos anos, muitos deles passaram a se identificar como LGBT, LGBTI, LGBTQ, LGBTQIA+, entre outras variantes.
Em 1995, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex realizou a sua 17ª conferência no Rio, que terminou com uma pequena marcha na praia de Copacabana.
Em 27 de junho de 1996, um ato na praça Roosevelt, em São Paulo, reuniu cerca de 500 pessoas reivindicando direitos LGBT.
Em um artigo sobre a parada paulistana publicado em 2011 na revista Gênero, ligada à Universidade Federal Fluminense, o pesquisador Ronaldo Trindade destaca que um dos incentivadores da primeira edição foi o jornalista Paulo Giacomini, que convocou homossexuais paulistanos para a parada em um artigo no jornal Folha de S. Paulo. O texto faz referência à Revolta de Stonewall de 1969, e conclama “vamos ferver no orgulho gay?” .
No ano seguinte, grupos políticos que haviam participado do ato julgaram que seria mais conveniente realizar a próxima manifestação na Avenida Paulista.
Ativistas ligados ao Grupo Corsa, ao Caheusp (Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP) e outros pediram autorizações legais junto a órgãos públicos para realizar o ato. Mas a CET (Companhia de Engenharia e Tráfego) não permitiu. Mesmo assim, cinco grupos ocuparam a Avenida Paulista no Dia Internacional do Orgulho Gay, 28 de junho de 1997.
Naquele mesmo ano, uma parada do Orgulho Gay ocorreu no Rio de Janeiro, em Copacabana, dando início à propagação de eventos do tipo em várias partes do país.
Nos anos seguintes, a parada paulistana cresceu, e passou a atrair participantes de outros estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná. Em 1999, foi criada a Associação da Parada do Orgulho GLBT em São Paulo, atualmente nomeada Associação da Parada do Orgulho LGBT, que continua a gerir o evento.
Em um artigo publicado naquele ano na revista Sui Generis e replicado no livro “Devassos no Paraíso”, o escritor e militante LGBTI João Silvério Trevisan relata como a parada de 1999 teve como diferencial o apoio maior e mais explícito de empresas e marcas, além de um público expressivo.
“Numa cultura onde tudo passa pela estatística, reunir 20 mil pessoas é uma façanha respeitável. E aí está o grande sentido político da parada: a afirmação de que existimos, gostem ou não, e somos milhares. Vencemos o nosso pior inimigo, a invisibilidade, e afirmamos nossa existência (…) Políticos conservadores, religiosos fundamentalistas e homófobos em geral, que insultavam gente anônima, agora terão que se defrontar com uma multidão de homossexuais com rosto e identidade”
Assim como ocorreu com outras paradas no mundo, os patrocínios que deram suporte à de São Paulo tanto contribuíram para que o evento ganhasse estrutura e visibilidade, como abriram um novo flanco de críticas, advindas de parte do próprio movimento LGBTI. Esse é um dos principais motivos pelos quais alguns coletivos criaram eventos alternativos.
No dia 20 de junho de 2019 ocorreu em São Paulo a terceira edição da Parada Preta , ligada ao movimento LGBTI negro; em 21 de junho, a segunda edição da Marcha do Orgulho Trans ; e, no dia 22 de junho, a 17ª edição da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo.
ONexo conversou com cinco ativistas que representam cada uma das letras da sigla LGBTI, e fez a mesma pergunta a todos eles: para que servem as paradas? Leia as respostas abaixo.
“Começamos nossas resistência em torno dos nossos afetos. Fervo também é luta”
Começamos nossas resistências quando não podíamos existir nos reunindo nesses lugares de convivência em torno dos nossos afetos, nossas amizades, nossas sociabilidades. Da vergonha nasceu o orgulho dentro da comunidade LGBT. A Revolta da Lâmpada [movimento LGBT baseado em São Paulo] fala de como “fervo também é luta”.
Apesar de a parada ser hoje extremamente despolitizada, comercial, turística, gay, masculina, cis [com representantes que têm o gênero de acordo com o sexo] e branca, ela é importante para pontuar a importância da visibilidade.
Hoje, vemos outras organizações se contraporem, com outras marchas. São diversos eventos que são de diversão, de encontro, que lembram que a gente existe, e que precisamos ter direitos reconhecidos, como todo mundo. São espaços de ação e organização política.
“É para dizer ‘sou digno, tenho orgulho e estou aqui para me mostrar’”
As paradas servem para dar visibilidade à nossa comunidade. Para mostrar que somos cidadãos e cidadãs, estamos em todas as famílias, em todas as casas e em todas as cidades.
A partir de 1995, tivemos algumas manifestações públicas, e hoje temos em torno de 270 paradas, de cidades em que se reúnem 50 pessoas até a maior parada do mundo, que é realizada na cidade de São Paulo.
Conseguimos demonstrar que temos demandas e que não somos apenas uma ou duas pessoas isoladas. É uma forma de dizer “sou digno, tenho orgulho e estou aqui para me mostrar”. Claro que, como em todo evento público, tem alguns exageros. Mas o saldo é 90% positivo. Nós queremos existir, ser felizes e ser cidadãos e cidadãs.
“A parada cumpre um papel enquanto não formulamos outra política”
As paradas servem para expressar uma política de visibilidade, construção de espaço de sociabilidade e afirmação identitária. E exatamente por causa disso há avaliações diferentes do que as paradas fazem concretamente hoje. Existe a importância de a parada servir, pelo menos uma vez ao ano, para as pessoas viverem coisas que não teriam condição de viver plenamente em outros momentos.
É o maior ato político da América Latina. Mas acho que é muito importante entender que a parada está tomada por corporações e empresas, e não constrói uma política de enfrentamento do que vivemos de forma mais global.
Entendo que a LGBTfobia se conecta com processos mais amplos que estamos vivendo. Vivemos um momento político no Brasil que não é colocado em questão. E há uma série de limitações do que a política identitária pode trazer, sem se aprofundar em uma crítica antissistêmica. Mas, apesar das limitações, a parada cumpre um papel relevante, e serve enquanto ainda não formulamos um outro modelo político.
“A resistência LGBT é festiva porque envolve liberdade do exercício do desejo”
A parada LGBT sempre está envolta em uma série de polêmicas. Qual o sentido da existência desse tipo de evento? A primeira camada de análise é: é ato político ou ato de festa? É um ato de festa e é um ato político, não existe essa separação. A trajetória LGBT está imersa em uma resistência mais alegre, festiva, porque ela envolve liberdade de desejo, liberdade de identidade, liberdade de exercício do corpo, do movimento, da vida, da pulsão, do desejo. E também um movimento que se afirmou contra a morte, contra a morte pela violência, pelo HIV/Aids.
A festa é uma forma de celebração, e tem ainda assim a questão do orgulho. A segunda camada é essa: por que ter orgulho de ser LGBT? Ter orgulho de ser LGBT porque a afirmação do orgulho serve como uma contra-afirmação, uma contranarrativa dos estigmas.
A terceira questão que temos enfrentado é que tem muita empresa, a questão do “pink money” [conceito que se refere ao poder aquisitivo da população gay]. De fato, existe uma capitalização das paradas, mas é importante que os movimentos sociais tentem se agregar, porque a parada é um espaço de múltiplas vozes, corpos, formas de pensar.
Ainda hoje, a parada causa escândalo e susto. Mas é um espaço de extrema liberdade, de celebração, de famílias. A parada é hoje talvez um dos atos políticos mais importantes que se anunciam para o futuro, porque vivemos um tempo em que a tristeza e a desesperança têm tomado conta do nosso fazer político. Quando a parada surge como afirmação ativa e festiva da resistência, traz outra conotação e talvez anuncie esperança – é possível não permitir que o poder nos torne tristes.
“A parada pontua: sou assim, me entenda. Vim aqui para ficar”
Temos que lembrar que as paradas nasceram para colocar em destaque o movimento gay, da população “G”, com o objetivo de tornar visíveis questões políticas que normalmente a comunidade estadunidense não conseguia enxergar. Essas demandas eram caladas. No Brasil, desde que as paradas começaram, há uma crítica de que eram políticas e depois se tornaram diversão, com patrocínio gigantesco de empresas, como Skol ou Elma Chips.
A parada deixou de ser um evento de fala política em sentido amplo, e se tornou mais um lugar onde a diferença é vista, pode aparecer. Mas os temas das paradas me parecem ser políticos, e se colocam como tais, com a recepção de questões que não são só LGBT. Ano passado foi o primeiro ano em que a parada colocou a sigla LGBTI [excluída na de 2019, que ficou LGBT]. E neste ano vamos ter uma militante intersexo na parada. Contemplam o “I” que, mesmo sendo uma questão biológica tem vários atravessamentos com a comunidade LGBT.
Temos um presidente racista, sexista, homofóbico, transfóbico. A parada volta como um momento político em que a comunidade se coloca e pontua: sou assim, me entenda. Vim aqui para ficar, estou aqui para ficar e é esse meu lugar.
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