O que é neoliberalismo. E quais as disputas em torno do termo
Marcelo Roubicek
29 de outubro de 2019(atualizado 28/12/2023 às 12h31)Manifestações no Chile e eleições na Argentina trazem o conceito de volta ao centro do debate público. O ‘Nexo’ conversou com especialistas para entender o significado político e econômico da palavra
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Manifestante carrega bandeira do Chile em protesto em Santiago
Neste outubro de 2019, Chile e Argentina passam por uma ebulição política. No país andino, a população está nas ruas em protestos contra o governo do presidente Sebastián Piñera. Houve mortes e as manifestações por melhorias de transporte, saúde e aposentadorias só cresceram. Já os vizinhos argentinos foram às urnas escolher um novo presidente, com derrota para o atual mandatário Mauricio Macri.
Tanto Piñera como Macri foram eleitos adotando um um discurso liberalizante na economia. E em ambos os casos, a população se manifestou, nas ruas e nas urnas, contra essas políticas. Nem mesmo o abandono de medidas liberais após sinais de resistência da população impediu que Piñera e Macri sofressem duras derrotas. Nesse contexto, o termo ‘neoliberalismo’ voltou à tona. A definição do conceito não é simples, mas seu uso na América Latina já dura três décadas.
O conceito de neoliberalismo é amplo e complexo – sua definição passa longe de ser consensual.
Em artigo publicado em 2016 , três economistas do FMI (Fundo Monetário Internacional) identificaram dois aspectos como a base do que poderia ser definido como neoliberalismo: governos que adotam medidas para tentar aumentar a concorrência e reduzir o papel do Estado . A elevação do nível de concorrência seria atingida pela desregulamentação e abertura dos mercados. Já para reduzir a participação do Estado, os principais focos seriam as privatizações e limitações dos gastos do governo, evitando deficits fiscais e buscando manter níveis baixos de endividamento público.
Mas há quem veja o neoliberalismo como algo mais amplo, que pode ser entendido como uma filosofia que ultrapassa o espectro econômico. A cientista política Wendy Brown, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, acredita que o conceito vai além do significado da participação do governo na economia, valendo hoje como a imposição de uma lógica de mercado sobre todas as esferas da vida. Isso significaria que a chamada “razão neoliberal” estaria transformando o significado político das ações cotidianas em um significado econômico, impondo uma lógica de “empreendedorização” de todos os aspectos da vida.
Também há acadêmicos que defendem que o termo seja abandonado. O pesquisador Bill Dunn, da Universidade de Sydney, na Austrália, afirma que o conceito de neoliberalismo é tão amplo que se torna vago . Segundo Dunn, o significado político do termo é mínimo e pouco aceito na sociedade, compondo apenas o vocabulário de uma parcela da esquerda, mas sem estabelecer diálogo real com outras partes do debate público.
O termo neoliberalismo surgiu nos anos 1930 , na Áustria , tendo como principal defensor o economista Friedrich Hayek. Hayek dizia que o papel do Estado deveria ser de suprir as condições para que o mercado operasse livremente. Mas o conceito ganhou corpo e passou a ocupar o centro do debate político a partir do final dos anos 1970.
O neoliberalismo é associado à ascensão política de dois importantes personagens da segunda metade do século 20: a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013), que governou o Reino Unido entre 1979 e 1990, e o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan (1911-2004), que esteve na Casa Branca entre 1981 e 1989.
Margaret Thatcher e Ronald Reagan durante encontro do G7, em 1988
Thatcher e Reagan assumiram o poder em momentos de turbulência econômica. O mundo ainda sofria com os efeitos do choque do petróleo de 1979 , e tanto Reino Unido como EUA enfrentavam a estagflação – uma situação em que a inflação estava mais alta do que o normal e o crescimento econômico, mais baixo. Os dois governantes adotaram, então, uma agenda de redução do papel do Estado, cortando impostos e desregulamentando o mercado.
Na mesma época, o Chile também iniciava a implantação de políticas neoliberais, sob o governo militar do ditador Augusto Pinochet. No cenário da política chilena, destacaram-se jovens economistas apelidados de “Chicago Boys” (em referência à escola de Chicago ), que seguiam as ideias do economista Milton Friedman. O próprio Friedman chegou a dizer em 1982 que o Chile passava, à época, por um “milagre econômico”.
A chamada agenda neoliberal passou a ser disseminada ao resto do mundo a partir dos governos de Thatcher e Reagan. Em 1989, o britânico John Williamson criou o termo “ Consenso de Washington ”, que se referia ao conjunto de medidas econômicas sugeridas a países em desenvolvimento por órgãos financeiros internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial. Os princípios que regiam essas orientações eram de controle de gastos, abertura de mercados e adoção de políticas favoráveis ao capitalismo de livre mercado.
As ideias do Consenso de Washington, associadas ao neoliberalismo, foram adotadas em diversos países da América Latina. O Chile manteve o compromisso com essa agenda, que ganhou espaço no Brasil durante os mandatos dos presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Esses governos foram marcados por privatizações e ajustes fiscais. Na Argentina, o presidente Carlos Menem (1989-1999) também adotou ideias de diminuição do Estado e incentivo ao setor privado.
Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem se abraçam em reunião em Brasília em 1999
É possível ilustrar a ascensão do conceito de neoliberalismo no mundo e principalmente na América Latina a partir do número de vezes em que a palavra foi utilizada de meados do século 20 para cá. O gráfico abaixo leva em conta menções ao termo “neoliberal” em publicações que estão na base de dados do Google Books, plataforma que reúne íntegras de obras literárias de ficção e não ficção.
Nos anos 2000, houve um movimento de aumento da participação do Estado nas economias latino-americanas. Mas, desde meados da década de 2010, as ideias ligadas ao liberalismo econômico voltaram a ganhar força política na região. No Brasil, a agenda de redução do Estado passou a ocupar o centro do debate a partir de 2015, firmando-se ainda mais no governo de Jair Bolsonaro . Na Argentina, Macri chegou à Casa Rosada em 2015 com um discurso de liberalização do mercado . No Chile, Sebastián Piñera também foi eleito em 2017 com a promessa de implantação de políticas liberais .
ONexo conversou com dois especialistas sobre o uso do termo neoliberalismo e o sentido de utilizar o conceito para avaliar o cenário político atual.
Vinícius Müller Acho que há uma duplicidade. Ele indica uma tendência que nós vivemos em alguns países nos anos 1980, e que a partir daí se espalhou para outros lugares, de uma revisão das políticas que foram adotadas fundamentalmente depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. Essas políticas [pós-guerra] valorizavam a intervenção do Estado na economia, entendendo que o mercado promovia algumas distorções que seriam minimizadas ou superadas por essa intervenção do Estado. Mas essas políticas também tinham problemas, que apareceram ao longo dos anos 1970. Trata-se de esgotamento fiscal, inflação e incapacidade do Estado de, a partir da intervenção, dar conta de seus compromissos fundamentais.
Quando a crítica a essas políticas foi feita nos anos 1980, ela apontou para uma retomada daquilo que seria o essencial do liberalismo: diminuição do Estado na economia, uma crença maior de que o mercado se regularia e a ideia de que a participação do Estado geraria mais ineficiência do que ganho para a sociedade. Isso foi associado fortemente às políticas de Pinochet no Chile – e por isso a polêmica agora, com a revisão dessas políticas –, de Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher na Inglaterra.
O sucesso dos EUA e da Inglaterra foi entendido como sendo não só a retomada do liberalismo ante o modelo adotado depois da Segunda Guerra Mundial, mas como a ascensão americana na sua vitória na Guerra Fria [contra a comunista União Soviética], que transformaria esse modelo neoliberal em uma espécie de receita para os países que vinham enfrentando dificuldades.
A questão é que, por um lado, isso apontava para uma modernização da economia, principalmente a partir dos critérios liberais. Por outro lado, era visto como o desmonte de estruturas sociais que eram garantidas pelo Estado e que supostamente equilibrariam as falhas de mercado. Trata-se de leis trabalhistas sendo flexibilizadas, abertura de mercado, redução da proteção a determinados setores e diminuição de políticas sociais. Portanto, um lado importante da sociedade entende essa proposta liberal como sendo, na verdade, uma proposta de desmonte da estrutura de proteção social. Então o termo neoliberalismo acabou sendo entendido nessa dubiedade.
Pedro Fassoni Arruda O termo neoliberalismo é uma forma de resgatar os princípios do liberalismo clássico, sobretudo o liberalismo econômico. É a defesa de alguns valores identificados com as forças do mercado: abertura comercial, privatizações de empresas, flexibilização trabalhista, economia de mercado e desregulamentação financeira. O neoliberalismo busca diminuir as funções do Estado. Aí entram a defesa do Estado mínimo e a mão invisível do mercado, contra o excesso de intervenção.
Essas ideias acabam ganhando força com a crise do Estado social europeu, em meados dos anos 1970. Na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, com a eleição de Thatcher no Reino Unido e Reagan nos EUA, essas medidas ganham força e são adotadas com mais radicalidade. Depois, na década de 1990, atinge também países latino-americanos como Brasil, Argentina, Peru e Bolívia – no Chile, já vinham sendo adotadas desde o golpe que levou Pinochet ao poder em 1973.
A ideia de neoliberalismo é mais ligada à economia, mas alguns autores, como Mises ou o próprio Hayek, a transformaram num sistema moral. Eles acreditam e identificam a liberdade econômica com a liberdade política, e entendem que quanto mais liberdade há para os agentes econômicos, maior será também a liberdade em sua esfera de ação individual. Alguns dos filósofos que defendem o liberalismo também têm uma visão de crítica ao que consideram como o paternalismo do Estado.
Vinícius Müller Acho que não. Acho que é um discurso mais datado, até porque já tem 30 anos. Nestes 30 anos, o que vimos, muito mais do que uma adoção irrestrita de uma receita neoliberal, foi uma adaptação às condições econômicas, históricas e sociais dos países. Mesmo que tenhamos um norte mais liberal – e que, portanto, poderia ser considerado como sendo neoliberalismo –, isso foi tão adaptado, relativizado e reestruturado a partir de cada país, que é difícil falar de maneira genérica em neoliberalismo.
Acho que nos anos 1990 o neoliberalismo era, de um lado, uma euforia um pouco exagerada para aqueles que o defendiam. Já o grupo que era contrário, geralmente associado à esquerda política e ideológica, também exagerava na sua crítica ao identificar que ele seria o imperialismo americano ou coisa parecida. Acho que os dois estavam enganados. Hoje, há um entendimento um pouco mais moderado sobre o que seria esse neoliberalismo.
Há um reconhecimento de que ele gerou riqueza maior, acesso mais amplo e avanço tecnológico. O problema é que isso veio acompanhado de crises, porque esse mercado global e mais liberal oscila, de modo que em momentos ele gera crises sérias, como a crise de 2008. Ele também promove alguma dificuldade relacionada à questão da desigualdade. E isso parece ser um ponto importante no debate sobre o neoliberalismo hoje em dia.
Pedro Fassoni Arruda Sim, faz. É uma expressão que tem bastante força explicativa. É uma expressão que vem sendo utilizada por pesquisadores sérios na história, na economia, na sociologia, na ciência política, para designar justamente uma determinada visão de mundo, alinhada com a ortodoxia monetária e algumas escolas do pensamento como a de Chicago, de Milton Friedman , como a escola de Viena, com Hayek, e outras também.
É uma expressão que tem, sim, bastante força explicativa, embora muitos daqueles que são considerados como neoliberais não costumam se reivindicar enquanto tal.
Em relação à diferença para hoje, basicamente, o conjunto de medidas neoliberais é o mesmo. As receitas defendidas são as mesmas: a privatização de empresas, diminuição do tamanho do Estado, com cortes de impostos e cortes de investimentos em saúde e educação.
ColaborouGabrielMaia com o gráfico
ESTAVA ERRADO:A versão original deste texto afirmava que Carlos Menem havia presidido a Argentina entre 1989 e 1989. Na verdade, ele exerceu mandato entre 1989 e 1999. O texto foi corrigido às 14h02 de 8 de novembro de 2019.
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