Expresso

Como é o gasto dos brasileiros com transporte

Jaine Araújo e Luana Silva

09 de janeiro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h36)

Despesa com locomoção cresce no orçamento familiar e agora perde só para habitação. Mudança acontece em período de aumento da informalidade no mercado de trabalho e variação nos custos com ônibus e gasolina

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FOTO: MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL – 24.05.2018

Avenida movimentada em Brasília

Avenida movimentada em Brasília

Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab 99+Nexo de Jornalismo Digital, com o tema “A cidade como pauta: desafios e soluções de mobilidade urbana”, realizado na redação do Nexo, em outubro de 2019.

Os gastos com transporte ultrapassaram os com alimentação nas famílias brasileiras em 2018, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esta é a primeira vez que isso ocorre desde que a pesquisa começou a ser feita, em 2002. Os lares brasileiros destinam em média 18,1% de seus gastos a despesas de transporte, enquanto 17,5% são usados na alimentação.

Assim, o transporte passou a ser a segunda maior fonte de gasto das famílias brasileiras, perdendo apenas para os custos da habitação, que representam 36,6% do orçamento familiar. As despesas de transporte mais significativas são referentes à aquisição de veículos, gasolina, manutenção e acessórios.

Como os gastos mudaram ao longo do tempo

Analisando os valores da POF 2018, é possível perceber que as famílias com rendimentos mensais equivalentes à faixa mais baixa, entre nenhum e dois salários mínimos (R$ 1.908,00), gastam mais com gasolina, aquisição de veículos e transporte urbano, nessa ordem. Na pesquisa anterior, realizada em 2009, as famílias com renda de até dois salários mínimos (na época, R$ 830,00) tinham o transporte urbano como item que concentrava a maior parte dos gastos, seguido pela aquisição de veículo e gasolina.

Os tipos de gasto com transporte variam de acordo com a classe social das famílias. Os resultados da POF 2018 mostram que as famílias com renda mensal mais alta, acima de vinte e cinco salários mínimos (R$23.850,00), gastam mais com aquisição de veículos, viagens esporádicas e gasolina, nessa ordem. Na pesquisa de 2009, para as famílias com renda mensal superior a vinte e cinco salários mínimos (R$10.375, na época), aquisição de veículos, gasolina e viagens esporádicas foram os itens com maior impacto, respectivamente.

Enquanto a aquisição de veículo e gasolina figuram como custos relevantes para ambas as faixas de renda, os gastos com viagens esporádicas se mostram significativos apenas nas famílias de alta renda. Já para as famílias com rendimentos de até dois salários mínimos, eles estão entre as menores despesas.

A POF de 2018 foi realizada entre julho de 2017 e julho de 2018. Englobando área rural e urbana de todo o território nacional, a pesquisa tem como principal objetivo levantar informações sobre a composição orçamentária doméstica, além de permitir maior entendimento sobre as condições de vida da população.

A pesquisa é feita por amostragem, ou seja, por meio da aplicação de formulários em domicílios selecionados. A partir das informações coletadas nesses domicílios, são utilizadas metodologias estatísticas para ampliar os resultados a toda a população.

O crescimento na aquisição de automóveis no Brasil

O número de pessoas com carro próprio no Brasil aumentou nas últimas décadas. Em 2004, o país tinha um carro para 7,4 habitantes, segundo dados de registros do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) levantados pelo G1 . Em 2014, essa proporção era de um carro por 4,4 habitantes.

O aumento na aquisição de veículos no período foi possibilitado por políticas de incentivo à aquisição de automóveis, como redução de impostos e acesso ao crédito. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ) , a participação do crédito no PIB saltou de 28,3% em 2003 para 53,48% em 2012.

A necessidade de se locomover é só uma parte dessa história. O carro próprio é símbolo de valores como felicidade e poder, como lembra a professora de turismo e hotelaria Tatiana de Freitas Luchezi. A união de necessidade, status e acesso ao crédito tornou o carro mais presente no dia a dia dos brasileiros, mesmo entre os de baixa renda.

O peso de manter um automóvel, no entanto, varia de acordo com a classe social e com períodos de maior ou menor valorização do salário mínimo ─ como a fase que o Brasil vem atravessando desde 2016, quando a trajetória de valorização do salário mínimo foi interrompida por conta da crise. Nesse mesmo ano, a aquisição de veículos novos teve uma queda de 20,1%.

Os setores de alimentação, vestuário e lazer têm uma ampla variedade de preços. Esse fator permite à população buscar opções mais baratas ou cortar gastos com alguns produtos ou serviços, como aponta um levantamento feito pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em parceria com o Banco Central.

Já os gastos com transporte são mais engessados, sem uma variação de preços que possibilite reduzir custos. Por isso, despesas com aquisição e manutenção de carros têm maior peso para quem ganha menos, principalmente em períodos de crise.

A evolução dos custos com gasolina e transporte público

Os combustíveis, principalmente a gasolina e o transporte coletivo, são gastos de locomoção significativos no orçamento dos brasileiros, segundo a POF. Grandes manifestações de anos recentes, como a greve dos caminhoneiros em 2018 e os movimentos contra aumento nas tarifas de ônibus, refletem em parte a importância desses gastos.

Embora tenham crescido nas últimas décadas, os preços das passagens de ônibus não estão no maior nível da história, quando levada em conta a inflação, segundo dados de cinco capitais. Desde 2013, no entanto, quando o aumento nas tarifas foi estacionado em consequência de protestos, houve crescimento acima da inflação em algumas capitais, como São Paulo , João Pessoa e Porto Alegre .

Quanto aos combustíveis, dados da ANP (Agência Nacional de Petróleo) apontam que os preços médios da gasolina e etanol, corrigidos pela inflação, sofreram queda entre 2001 e 2017, mas voltaram a apresentar leve aumento desde então.

O aumento da informalidade no mercado de trabalho

Em 2019, a quantidade de trabalhadores informais no Brasil bateu recorde, atingindo o maior número desde 2012, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Em 2019 , 41,4% dos brasileiros ocupados está em um trabalho informal.

Além de afetar a estabilidade financeira e o rendimento médio das pessoas, a informalidade torna a responsabilidade de arcar com os custos de locomoção exclusividade dos trabalhadores, que não têm acesso a vale-transporte.

Uma visão sobre o aumento dos gastos com transporte

Ao Nexo , Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, pesquisador do Ipea e especialista em transporte urbano pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica,na sigla em inglês), falou sobre as possíveis causas e implicações do aumento de gastos com transporte na renda dos brasileiros.

Em 2018, o gasto com transporte pelos brasileiros superou o gasto com alimentação. Como você avalia esse aumento e quais os possíveis motivos dele?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho Em geral, sobretudo nos últimos dez anos, o gasto com transporte privado aumentou muito, principalmente com aquisição de veículos, gasolina e outros custos relacionados ao transporte individual. Com relação às famílias mais pobres, existe o fenômeno do encarecimento do transporte público, que também vem ocorrendo nos últimos dez anos. A tarifa do transporte público teve aumentos acima da inflação e isso gerou impacto sobre a renda das famílias. Somando isso à tendência de queda de renda das famílias observada de 2014 para cá, os gastos com transporte aumentam porque ele é o instrumento que as pessoas utilizam para sobreviverem, irem para o emprego, procurarem serviços de saúde, etc. Como a renda está caindo e o gasto com transporte é quase obrigatório, o aumento é inevitável.

O brasileiro está gastando mais com transporte porque o preço do transporte aumentou ou porque ele deixou de gastar com outras coisas?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho O custo do transporte vem subindo mais do que a inflação. Além disso, quando a renda cai, as pessoas vão deixando de consumir uma série de produtos e o peso dos gastos com transporte acaba se consolidando. Então é um pouco das duas coisas. O que os resultados da POF 2018 mostram é que as famílias estão deixando de comprar outros bens de serviço, e isso resulta no aumento da participação dos gastos com transporte, ao mesmo tempo em que ocorre a diminuição de outros custos.

Existe alguma relação da informalidade trabalhista com o aumento desse gasto?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho Sem dúvida. Essa é uma relação direta, porque no mercado formal, pelo menos o transporte para ir ao trabalho é garantido, já que os trabalhadores recebem o vale-transporte antecipadamente no início do mês. O problema é que cerca de metade dos trabalhadores, principalmente os de baixa renda, estão na informalidade, situação em que não se tem benefício nenhum, trabalha-se um dia para conseguir o dinheiro e pagar o transporte.

Qual a implicação do aumento de gastos com transportes para as famílias?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho Quanto mais aumentam a renda, mais as classes altas gastam com transporte privado, mas esse é um gasto voltado muitas vezes a uma questão de luxo. Entretanto, no caso do uso do transporte pelas famílias mais carentes, os gastos chegam a até 20% [da renda]. Então, é uma situação muito delicada porque o transporte não é um serviço-fim, mas um instrumento utilizado para alcançar bem-estar ou um determinado objetivo, seja emprego, seja educação, seja saúde. Tanto que quando aumenta a informalidade e o desemprego, há pessoas que deixam de usar o transporte e passam a dormir nas ruas ou só voltam para casa aos finais de semana, justamente por causa dos custos. Assim, não é interessante o transporte ter um espaço maior do que esses serviços, e essa situação está ocorrendo bastante, principalmente com a alimentação. Por ser um instrumento utilizado para se obter bens e serviços que possibilitem qualidade de vida e satisfação para as pessoas, o transporte poderia ser bastante restrito no impacto da renda, deixando margem para as pessoas consumirem os bens finais.

As políticas de acesso ao crédito e redução de impostos que ocorreram nas últimas décadas ajudaram a aumentar o gasto com aquisição de automóveis?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho Sem dúvidas. Do início do século para cá, houve um boom do transporte individual por meio de políticas para atrair as principais fabricantes de automóveis do ano. Do século passado até agora, a capacidade de produção de veículos mais que duplicou. A partir do momento que se atrai fabricantes e triplica a capacidade de produção de veículos, é preciso “desovar” esses veículos. A partir disso, houve políticas de subsídios, redução de carga tributária e estímulo ao acesso a crédito, fator muito importante. Antigamente, praticamente não tinha crédito para compra de veículo individual, tanto que as pessoas compravam muito por meio de consórcios. As condições de crédito hoje mudaram bastante, teve toda uma política pública na venda de veículos privados, tanto de automóveis quanto de motocicletas. Até mesmo a população de baixa renda teve acesso a esses bens de consumo. Isso aumentou o endividamento das famílias porque as pessoas compravam a crédito com o prazo muito longo. E quando aumenta o endividamento, reduz a capacidade de compra dasfamílias.

Quais alternativas você enxerga para reduzir custos e minimizar essa situação?

Carlos Henrique Ribeiro Carvalho Acerca do transporte individual, algumas formas de gastar menos são: maiores investimentos em transporte público para que as pessoas passem a utilizá-lo com mais frequência; diminuição do preço da gasolina; e a reversão de impostos sobre combustíveis em investimentos no transporte público.

Edição Letícia Arcoverde

Colaborou Lucas Gomes com os gráficos

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