A inércia do governo diante do novo avanço da pandemia
Estêvão Bertoni
25 de novembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h56)Ministério Público pede investigação sobre desperdício de testes, enquanto relatórios da Câmara dos Deputados apontam baixa execução do orçamento de combate à covid-19 no país
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O presidente Jair Bolsonaro, em visita ao Rio de Janeiro
O Brasil ultrapassou na terça-feira (24) a marca de 170 mil mortes pelo novo coronavírus em meio a sinais de um novo avanço da pandemia no país. Os dados têm mostrado uma alta no número de casos de covid-19 e de internações em hospitais.
O Imperial College, de Londres, divulgou na terça-feira (24) que a taxa de transmissão do coronavírus no Brasil é de 1,30, a maior desde maio. Ela indica que cada 100 doentes contaminam outras 130 pessoas, que por sua vez transmitem o vírus para outras 169, e assim por diante.
Na quarta-feira (25), a média móvel de mortes no últimos sete dias era de 491 . Já a média de casos confirmados da doença chegou a 30.350, a maior desde 20 de setembro. Em oito meses de pandemia, o Brasil já registrou mais de 6 milhões de casos da doença.
54%
foi a alta na média móvel dos últimos sete dias na quarta-feira (25), em comparação com a média de 14 dias atrás
Mesmo com esse cenário, o Ministério da Saúde não considera que seja o momento de endurecer restrições e reforçar a testagem. Segundo relatos de autoridades feitas ao jornal O Estado de S. Paulo em 19 de novembro, a pasta só pensa em agir quando houver alta consistente no número de mortes.
Desde que os sinais de repique da doença começaram a aparecer, integrantes do governo têm negado publicamente os riscos de um novo surto e se manifestado contra medidas de isolamento. Além disso, relatórios mostram que o governo deixou de gastar em ações para reduzir o impacto da pandemia.Abaixo, o Nexo mostra como o governo Bolsonaro vem reagindo ao recrudescimento da pandemia no país.
Relatórios elaborados pela consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados apontam para ao menos dez ações do governo federal que não foram amplamente realizadas para minimizar o impacto da pandemia no país mesmo com a abertura de créditos extraordinários a partir de abril. Essas ações previam, entre outras coisas, a contratação de médicos e a reestruturação de hospitais.
Os créditos extraordinários se devem à aprovação pelo Congresso do chamado orçamento de guerra, que permite a flexibilização das regras fiscais durante o estado de calamidade pública decretado por causa da crise sanitária. Sua vigência vai até 31 de dezembro.
O Ministério da Saúde, por exemplo, poderia contratar temporariamente 5.000 médicos para atuar em regiões mais afetadas pela covid-19. Mas a pasta só gastou 4,6% dos R$ 338 milhões autorizados para a ação. Em nota ao jornal Folha de S.Paulo, o ministério alegou que as contratações de profissionais foram feitas a partir de demandas de estados e municípios. O órgão não detalhou essas contratações.
Por meio de uma medida provisória, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, ligada ao Ministério da Educação, também tinha disponível desde abril R$ 70 milhões para reestruturar hospitais universitários e abrir novos leitos. O dinheiro poderia ser usado ainda na compra de equipamentos médicos. Até novembro, porém, apenas R$ 17,1 milhões foram gastos, o equivalente a 24% do total. A empresa também afirmou seguir as demandas dos hospitais e disse que processos de compras ainda tramitam.
O governo Bolsonaro também investiu menos do que o previsto na compra de testes e materiais hospitalares para presídios — apenas R$ 2.400 foram gastos de R$ 17,2 milhões destinados à ação. Até o final de novembro, pelo menos 121 presos e 89 agentes penitenciários morreram por covid-19. O Departamento Penitenciário Nacional, responsável pela compra, disse que os equipamentos foram adquiridos a partir da abertura de crédito por meio de medida provisória anterior.
Também não foram construídas cisternas para ampliar o acesso à água nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Segundo o Ministério da Cidadania, a iniciativa, na verdade, visava destinar recursos a escolas do Norte, mas isso tampouco foi feito devido à falta de projetos, convênios e licitações.
Os relatórios ainda apontam gastos insuficientes em ações do Ministério do Turismo, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e das Relações Exteriores.
Ainda em agosto, o Tribunal de Contas da Uniãohavia dado 60 dias para o governo federal apresentar, por meio da Casa Civil, um plano detalhado de vacinação da população brasileira contra o novo coronavírus. As informações deveriam ter sido entregues no final de novembro, mas o governo recorreu dizendo que a iniciativa cabia ao Ministério da Saúde. O recurso ainda está em análise.
Segundo o Ministério da Saúde, uma primeira versão do plano deve ser apresentada no dia 30 de novembro. O documento deve propor a distribuição das vacinas em todo o país, de forma simultânea, com a possibilidade de priorizar áreas mais afetadas, além dos grupos de risco e profissionais de saúde. Uma versão final deve ser entregue posteriormente.
Partidos de oposição já haviam recorrido ao Supremo Tribunal Federal para que o governo Bolsonaro fosse obrigado a apresentar em 30 dias um plano de vacinação. Ao menos quatro ações sobre o tema tramitam na corte. Elas foram motivadas pelas falas do presidente contrárias à obrigatoriedade da vacinação e pela decisão de Bolsonaro de cancelar um acordo que havia sido fechado pelo Ministério da Saúde para adquirir o imunizante do laboratório chinês Sinovac que será produzido pelo Instituto Butantan, ligado ao governo do estado de São Paulo.
Na terça-feira (24), o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou seu voto se dizendo favorável à iniciativa.
“Diante da possibilidade concreta de que as diversas vacinas, em breve, completarão com sucesso os respectivos ciclos de testes, mostrando-se eficientes e seguras (…) constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”
O tema será enviado ao plenário virtual para que os demais ministros decidam sobre ele. O julgamento está marcado para 4 de dezembro.
No domingo (22), o jornal O Estado de S. Paulo revelou que 7,1 milhões de testes PCR (considerados padrão-ouro) deixaram de ser enviados ao sistema público de saúde e estão estocados num depósito do Ministério da Saúde em Guarulhos, na Grande São Paulo. Cerca de 6,8 milhões, o que corresponde a 96% do total, estão próximos do vencimento entre dezembro e janeiro. Caso o material se perca, o prejuízo pode chegar a R$ 290 milhões.
O Ministério Público pediu para que o Tribunal de Contas da União investigue o caso. O subprocurador-geral Lucas Furtado criticou o governo federal em seu pedido. “Como era de se esperar, a causa dessa inércia e desse desperdício não é segredo para ninguém. Trata-se da inépcia do governo federal, sobretudo do Ministério da Saúde — cujo ministro não é da área —, no que diz respeito ao planejamento e logística de distribuição para a rede pública de saúde, bem como das medidas necessárias para a aplicação dos testes”, disse.
O ministério culpou os estados e municípios pela situação dizendo que só repassa os testes a pedido dos entes federativos. Secretários estaduais e municipais de Saúde, porém, acusam a pasta de ter enviado os testes incompletos, com número reduzido de reagentes, tubos e cotonetes de coletar amostras. Os exames PCR são feitos a partir da coleta de secreções do nariz e da garganta dos pacientes.
A testagem seguida do isolamento de pessoas doentes e rastreio de contatos para que eles sejam colocados em quarentenas é considerada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) uma das melhores estratégias no combate à pandemia, tendo em vista a ausência de remédios e vacinas contra o vírus.
O Brasil, porém, nunca aplicou amplamente a medida e testa muito pouco. A quantidade de testes perto do vencimento é inclusive superior aos 5 milhões de exames PCR realizados pelo SUS durante toda a pandemia. E a testagem vem caindo no país. Em São Paulo, por exemplo, o número de testes do tipo foi de 853 mil em julho para 603 mil em outubro, uma queda de cerca de 30% . Em novembro, a redução deve ser maior ainda. O governo paulista diz que apenas casos sintomáticos são testados na rede pública e que a demanda “varia conforme o cenário epidemiológico”.
Com oito meses de pandemia, o governo continua se manifestando contrário às medidas consagradas no combate à doença. Na terça-feira (24), durante um evento, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que o distanciamento social perdeu a efetividade e que o custo-benefício da medida é menor do que no início da pandemia.
“Nós olhamos a efetividade dos distanciamentos sociais [nos países] e tem sido cada vez menor. Não porque o distanciamento é uma prática ruim, mas não tem sido tão efetivo, principalmente entre os mais jovens, em de fato limitar a mobilidade. Passou muito tempo e os jovens têm menos paciência para aderir às regras”, disse.
Sua fala contraria as orientações de epidemiologistas e entidades de saúde que consideram o isolamento e o distanciamento social ainda necessários. Também desconsidera que desde junho as regras começaram a ser flexibilizadas no Brasil quando a maioria dos estados ainda estavam com os casos em alta.
Atividades não essenciais como bares, restaurantes e salões de belezas voltaram a funcionar no período. Embora os números de casos e mortes tenham caído, o país estabilizou num patamar considerado alto, ao contrário do que aconteceu com outros países que conseguiram controlar a transmissão num primeiro momento. Enquanto o avanço recente levanta discussões sobre uma segunda onda da covid-19 no Brasil, alguns especialistas dizem que o país sequer saiu da primeira.
Na segunda semana de novembro, quando foi questionado sobre a possibilidade de uma alta da doença, opresidente Jair Bolsonaro descreveu o risco de um novo surto como “conversinha” e reclamou da atenção dedicada à preocupação com a doença. “Tem que deixar de ser um país de maricas, pô”, disse.
Assim como no início da crise sanitária, a linha do governo tem sido se posicionar contra medidas restritivas. Em 18 de novembro, o perfil do Ministério da Saúde no Twitter havia respondido corretamente a uma seguidora que, na ausência de remédios para prevenir ou tratar a covid-19, “a nossa maior ação contra o vírus é o isolamento social”.
A mensagem foi apagada no mesmo dia, e a pasta alegou que havia passado “informações equivocadas”. Em seguida, disse que “as pessoas que estão fora do grupo de risco e as crianças devem continuar suas atividades normais, com os cuidados recomendados pelos protocolos”.
Além disso, integrantes do governo federal vêm negando que o país possa enfrentar um novo surto de casos. Em 17 de novembro, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, disse ser “baixíssima ” a probabilidade de o Brasil ser atingido por uma segunda onda da pandemia. Na segunda-feira (23), o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a covid-19 “cedeu ”.
“Alguns dizem agora: ‘não, mas está voltando, [está havendo uma] segunda onda’. Espera aí. Nós tínhamos 1.300 mortes por dia, 1.200, 1.000, 900, 700, 500, 300. E agora parece que está havendo um repique. Mas vamos observar. São ciclos”, afirmou durante um evento.
No dia da sua fala, a média móvel de mortes no Brasil nos sete dias anteriores havia sido de 484, uma variação de 43% em comparação com a média de 14 dias antes, o que indicava tendência de alta.
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