Por que a fila da vacinação difere de lugar para lugar no Brasil
Estêvão Bertoni
06 de abril de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h03)Doses estão sendo aplicadas em profissionais da segurança em ao menos seis estados antes mesmo da imunização de idosos, que são as maiores vítimas da covid-19 no país
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Policial recebe primeira dose da vacina contra a covid-19 em São Paulo
Em São Paulo, policiais militares e civis, bombeiros, agentes penitenciários e guardas municipais começaram a ser vacinados contra a covid-19 na segunda-feira (5), antes das pessoas de 60 a 67 anos. Em Fortaleza, a Justiça suspendeu a vacinação de profissionais de saúde até que todos os idosos sejam imunizados. Em Manaus, adultos de 45 a 49 anos com doenças como diabetes mellitus, obesidade mórbida ou cardiopatias já podem se vacinar desde terça-feira (6), mesmo com a imunização de indígenas patinando no Amazonas.
A falta de critérios nacionais claros para a vacinação contra o novo coronavírus tem criado um cenário em todo o país em que a ordem de prioridade do Programa Nacional de Imunizações não é respeitada e novos grupos, muitos dos quais incluídos no meio do processo, podem receber a vacina sem que os grupos anteriores tenham alcançado cobertura completa. Segundo especialistas, isso pode atrapalhar a redução de casos graves, o que seria importante em meio ao agravamento da pandemia. Desde março, o país vem batendo recordes seguidos de mortes pela doença.
4.195
novas mortes por covid-19 foram registradas na terça-feira (6), número recorde desde o início da pandemia, segundo o Ministério da Saúde; de acordo com o consórcio de veículos de imprensa, o número ficou em 4.211
Em fevereiro, a indefinição nas prioridades fez o ministro Ricardo Lewandowski , do Supremo Tribunal Federal, determinar que o Ministério da Saúde esclarecesse qual era a preferência entre os grupos. Segundo o ministro, a distribuição das doses não seguia uma “racionalidade” e precisava se basear em “critérios técnico-científicos” para que existisse “clareza” sobre quem seria vacinado primeiro.
Ao todo, o governo federal incluiu no plano operacional de vacinação contra o novo coronavírus 29 grupos entre os prioritários, mas não definiu inicialmente uma ordem entre eles. São, ao todo, 77 milhões de pessoas — a população brasileira é de cerca de 210 milhões de pessoas. Apenas em março uma nota técnica elaborada pelo Ministério da Saúde definiu uma ordem e recomendou a seguinte sequência:
O documento do ministério reconhecia que a priorização de cada grupo poderia “sofrer alterações de acordo com os quantitativos de vacinas entregues pelos produtores”, mas ressaltava a importância de vacinar primeiros os grupos que apresentam “maior risco de exposição, complicações e óbito pela covid-19”. No Brasil, mais de 70% das mortes pela infecção respiratória ocorrem em pessoas com mais de 60 anos.
18,6
é quantidade de vezes em que a taxa de mortalidade entre os maiores de 60 anos por covid-19 no Brasil supera a da população abaixo dessa faixa etária
A nota, porém, é uma orientação e não precisa ser seguida pelos estados e municípios, que têm autonomia para definir critérios próprios a partir das realidades locais. Isso permitiu, por exemplo, que cinco estados e o Distrito Federal começassem na segunda-feira (6) a imunizar forças de segurança antes mesmo de completar a vacinação de idosos e profissionais de saúde.
Em entrevista à TV CNN Brasil, no final de março, a pesquisadora e professora Lígia Bahia, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirmou que a alteração na ordem para priorizar policiais não fazia sentido .
“Pela falta de coordenação do Ministério da Saúde, há uma interpretação livre de estados e municípios, e o Rio incluiu forças de segurança à frente de grupos que são ainda mais prioritários, com condições clínicas mais frágeis. Como se o Rio fosse primeiro vacinar primeiro um policial jovem, e deixar a mãe dele, que tem doença pulmonar crônica obstrutiva, atrás do filho. Não faz sentido em termos epidemiológicos, porque o objetivo da vacinação é diminuir a mortalidade, não é aumentar a popularidade de determinados políticos”
Em março, uma nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne pesquisadores de várias instituições, defendeu que metas de cobertura e a definição das populações-alvo eram “essenciais em qualquer programa nacional de imunização”.
Os pesquisadores criticaram a inclusão indiscriminada de vários grupos na lista de prioridades. “As promessas de bons lugares na fila de vacinação para atender pressões políticas e corporativas terminam por afastar o programa de vacinação dos critérios epidemiológicos e acrescentam demandas a uma oferta notoriamente escassa de vacinas”, escreveram os pesquisadores.
No final de março, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de um projeto que amplia os grupos prioritários para incluir coveiros, garis, taxistas , agentes de segurança pública e privada, entre outros. Se aprovado, o projeto precisa passar também pelo Senado.
Embora tenha experiência em vacinação em massa, graças ao Programa Nacional de Imunizações criado ainda nos anos 1970, o Brasil não tem conseguido imprimir velocidade na vacinação contra a covid-19 por falta de doses. O país conta apenas com as vacinas produzidas pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pelo Instituto Butantan. O cronograma de entregas tem sido revisto permanentemente devido a atrasos. A escassez de doses é apontada como o principal motivo para que a vacinação se concentre nos grupos de maior risco.
9,46%
da população brasileira recebeu ao menos uma dose da vacina contra a covid-19 até terça-feira (6), segundo o consórcio de veículos de imprensa; apenas 2,64% receberam as duas doses
A prioridade dada a grupos como profissionais da área de segurança e da educação deve atrasar mais ainda a vacinação de idosos e pessoas com comorbidades, segundo especialistas.
Em entrevista ao jornal O Globo na terça-feira (6), a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações, defendeu que o plano deveria seguir a ordem definida pelo Ministério da Saúde. “A prioridade neste momento deveria ser completar os idosos e iniciar as comorbidades, pelo menos as prioritárias, como diabetes, obesidade, doenças respiratórias crônicas e câncer, para só depois abrir [a vacinação para outros grupos]”, afirmou.
O grupo de pessoas com comorbidades é o maior entre os prioritários, com quase 17,8 milhões de pessoas. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no sábado (3), a cardiologista Lília Nidro Maia, diretora da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), afirmou que pacientes com diabetes, obesidade e síndrome metabólica deveriam ser priorizados . “Esse tipo de pessoa, com múltiplas comorbidades, deveria passar na frente porque tem mais riscos”, disse.
A obesidade, por exemplo, é um dos principais fatores de risco para os pacientes mais jovens, que têm precisado mais de internações em 2021. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre os obesos que morreram por causa da covid, 46% tinham menos de 60 anos.
Na segunda-feira (5), o Ministério Público do Piauí, por exemplo, entrou com uma ação civil pública contra o estado para garantir prioridade absoluta dos idosos e pacientes com comorbidades na vacinação. O objetivo, segundo os promotores, é evitar que outros grupos passem na frente.
Segundo uma estimativa divulgada em março da Impulso Gov, uma organização não governamental que tem como objetivo ajudar estados e municípios a coletar e a analisar dados dos serviços de saúde, o Brasil conseguiria vacinar todos os profissionais de saúde e os idosos acima dos 60 anos até junho caso os laboratórios da Fiocruz e do Butantan conseguissem entregar metade da produção máxima de vacinas contra a covid-19 previstas em seus cronogramas. Dessa forma, nos meses seguintes, os efeitos da vacinação já poderiam ser sentidos. Com a prioridade a outros grupos, esse impacto deve ser postergado.
Com a lentidão da vacinação, principalmente devido às dificuldades na entrega das doses, a cobertura não deve atingir todos os grupos prioritários antes de setembro , segundo projeções de especialistas consultados pelo jornal O Estado de S. Paulo na segunda-feira (5).
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