Como Queiroga expõe um ministério decorativo da Saúde
Estêvão Bertoni
08 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h10)Quarto nome a ocupar a pasta no governo Bolsonaro mostra na CPI da Covid que decisões na pandemia passam ao largo do órgão que deveria cuidar da área
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O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, chega ao Senado para depor
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, prestou novo depoimento à CPI da Covid no Senado na terça-feira (8), por cerca de oito horas. Ele já havia sido ouvido no início de maio, mas sua fala à época foi considerada evasiva. Em sua segunda convocação, Queiroga reconheceu que o ministério não foi ouvido pelo Planalto em temas como a realização da Copa América e acabou ignorado pelo presidente Jair Bolsonaro em relação às orientações para evitar aglomerações.
A CPI tem como objetivo investigar as ações e omissões do governo federal durante a pandemia do novo coronavírus, tendo em vista que o Brasil é um dos líderes mundiais em casos e mortes por covid-19. Integrantes e ex-integrantes do governo estão sendo ouvidos desde o começo de maio. A cúpula da comissão diz já ter evidências de que Bolsonaro ignorava o Ministério da Saúde e seguia conselhos de um gabinete paralelo para adotar a tese da imunidade de rebanho. A partir disso, o governo atrasou a compra de vacinas e apostou no chamado tratamento precoce, que inclui um rol de medicamentos ineficazes.
Queiroga se manifestou contra o uso da cloroquina, mas não soube explicar por que mantém no ministério funcionários que difundem o medicamento, como a secretária Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”. Ele também contradisse a médica Luana Araújo, cuja contratação pela pasta foi barrada por ela se opor ao remédio. O ministro garantiu ainda a vacinação de todos os brasileiros adultos até o final do ano, embora o ritmo atual dificulte que a meta seja atingida. A seguir, o Nexo destaca os principais pontos de seu depoimento.
Um dos pontos investigados pela CPI é a falta de autonomia do ministro da Saúde. O ex-ministro Nelson Teich, que ficou menos de 30 dias no cargo, afirmou no início de maio que deixou a pasta ao perceber a pressão do governo pela adoção de um protocolo para o uso da cloroquina, medicamento que não funciona contra a covid-19.
Queiroga negou haver interferências externas em suas decisões, mas sugeriu que nem todas as medidas adotadas passam exclusivamente pelo comandante da pasta da Saúde.
“O presidente me deu autonomia para eu conduzir o Ministério da Saúde; isso não significa uma carta branca para fazer tudo que quer, não existe isso. O regime é presidencialista. Até o momento, não houve nenhum ponto que me fizesse sentir desprestigiado à frente do Ministério da Saúde. Se isso acontecer, se eu achar que não posso trabalhar e cumprir a minha missão, eu vou agradecer a Sua Excelência e volto para o meu estado”
Ele foi questionado por que mantém nomes como o de Mayra Pinheiro, que se posiciona a favor do tratamento precoce. Segundo o ministro, a médica é secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde da pasta e, em sua gestão, não trata da adoção de remédios contra a covid-19.
“Ela [Mayra] coordena o Programa Médicos pelo Brasil, que foi uma proposta do presidente da República. Ela já está desde o início da gestão, portanto, é uma memória que nós temos no governo. E eu achei por bem manter a doutora Mayra”, afirmou.
Ao ser questionado pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), se tem atuado para desmilitarizar o ministério, ocupado por funcionários com passagem pelo Exército durante a gestão do general Eduardo Pazuello, Queiroga disse que o tema não é uma prioridade. E disse que vem fazendo “mudanças graduais para adequar a equipe” ao que pensa.
Em suas respostas, Queiroga evidenciou que muitas das decisões do governo relacionadas à pandemia não passam pelo Ministério da Saúde e que muitas das orientações do órgão são ignoradas por Bolsonaro.
Calheiros questionou, por exemplo, qual havia sido a participação do ministério na ação ajuizada pelo presidente no Supremo contra o fechamento do comércio em vários estados. Ele respondeu não ter sido consultado sobre a iniciativa.
Queiroga também afirmou não ter tido qualquer participação na decisão do governo em sediar a Copa América. A realização do evento no país tem sido criticada por especialistas devido à situação dos hospitais, com UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) lotadas nas cidades-sede, por movimentar um grande número de pessoas que trabalham no campeonato e por poder incentivar aglomerações de pessoas em casa ou bares para assistir aos jogos. O ministro disse aos senadores ter apenas avaliados os protocolos de saúde adotados durante o torneio.
Questionado se concordava com as aglomerações provocadas por Bolsonaro, Queiroga afirmou já ter conversado com o presidente sobre o assunto e que, na presença dele, o chefe do Executivo está, na maioria das vezes, com máscara.
“Eu disse que defendo as medidas não farmacológicas de forma reiterada, que o compromisso é individual, o benefício é de todos. Agora, eu sou o ministro da Saúde de um governo presidencialista. Não compete ao ministro da Saúde fazer juízo de valor acerca dos atos do presidente da República”
O senador Humberto Costa (PT-PE) acusou o ministro de tentar se eximir das responsabilidades que o cargo lhe confere em relação às decisões do governo que interferem na pandemia. Ele disse que as posições de Bolsonaro divergem do que é correto para combater o vírus.
“O que acontece com Vossa Excelência é o que aconteceu com os outros [ministros da Saúde de Bolsonaro]. O presidente não o ouve! Vossa Excelência não tem autonomia. Ele [Bolsonaro] faz as coisas da cabeça dele, única e exclusivamente”
No começo de junho, a médica infectologista Luana Araújo, que foi indicada por Queiroga para assumir uma secretaria de combate à pandemia no ministério, mas que teve seu nome barrado antes mesmo da posse, afirmou que a recusa ocorreu porque seu nome não seria aprovado pela Casa Civil. Ela disse ter sido avisada sobre o fato pelo próprio ministro.
O episódio era um novo indicativo de interferência na pasta. Luana havia sido atacada por bolsonaristas por ter exposto nas redes sociais críticas ao tratamento precoce. “O ministro, com toda a hombridade que ele teve ao me chamar, ao fazer o convite, me chamou ao final e disse que lamentava, mas que a minha nomeação não sairia, que meu nome não teria sido aprovado”, disse a médica à CPI.
Em maio, Queiroga disse que Luana tinha condições técnicas para assumir o cargo, mas reiterou que precisaria haver, além da “validação técnica”, uma “validação política”, sugerindo que sua aprovação dependia de uma avaliação política do governo para além do ministério.
À CPI o ministro mudou a versão na tentativa de blindar o governo e afastar os indícios de interferência no órgão. Ele admitiu que a indicação passou pela Casa Civil e pela Secretaria de Governo, mas que não houve objeções. A decisão de barrar seu nome teria sido dele próprio, num “ato discricionário do ministro”.
“O nome da Luana, apesar da qualificação técnica, começou a sofrer muitas resistências, em face dos temas que são tratados aqui, quando há uma divergência muito grande entre a classe médica, isto é patente, divergência de grupo de médicos A e de grupo de médicos B [em relação ao tratamento precoce]. E eu entendi que, naquele momento, a despeito da qualificação que a dra. Luana tem, não seria importante a presença dela para contribuir para a harmonização desse contexto”
Apesar de ter dito que o Ministério da Saúde não foi consultado sobre a realização da Copa América no Brasil, Queiroga defendeu o evento por não ver risco de aumento da circulação do vírus no país. Segundo ele, a pasta fez uma “revisão sistemática da literatura” e não encontrou evidências de que os jogos possam colocar em risco a vida dos jogadores ou dos membros da comissão técnica.
O ministro afirmou que cerca de 650 pessoas estão envolvidas no torneio, incluindo jogadores e comissão técnica. “Não é uma população grande”. O senador Renan Calheiros disse que cerca de 2.000 jornalistas pediram credenciamento para acompanhar as partidas, o que aumentaria ainda mais o fluxo de pessoas circulando. Queiroga rebateu dizendo que a imprensa não precisa se dirigir aos estádios e que jogos já vêm ocorrendo no país em campeonatos como o Brasileiro.
“As pessoas estão vivendo e podem adquirir a covid-19. Aqui a gente está falando sobre a questão em campo, no campo de futebol. Eles [jogadores] vão ficar em bolhas. Eles vão ficar no hotel. Saem [do campo] e vão para o hotel”
Houve também uma mudança de tom do ministro em relação à cloroquina. Em seu primeiro depoimento, Queiroga evitou falar abertamente sobre o assunto. Segundo ele, o tratamento sobre o remédio estava em análise no Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), para a elaboração de um protocolo.
“Eu posso ter que dar um posicionamento acerca desse protocolo, de tal sorte que eu gostaria de manter o meu posicionamento final acerca do mérito do protocolo quando o protocolo for elaborado”, disse, à época.
No depoimento da terça-feira (8), o ministro afirmou que, em seu entendimento, “não há evidência comprovada da eficácia desses medicamentos”. Queiroga deu a entender que considerava o assunto superado.
“Esse tratamento inicial [precoce] vai influir muito pouco no custo dessa pandemia. O que influi aqui é a vacinação da população brasileira. Vacinar a população brasileira, esse é o meu foco. Se eu ficar aqui discutindo a discussão do ano passado, eu não vou em frente”
Questionado por que não anulava a orientação do ministério sobre a dosagem de cloroquina que deveria ser usada em pacientes com covid-19, mesmo com a comprovação de que o remédio não funciona e com a discordância em relação ao seu uso, o ministro afirmou que o documento é apenas um ato administrativo que “perdeu o objeto”. Ele é mantido no site do órgão apenas por fazer “parte do enfrentamento à pandemia”.
Queiroga repetiu a promessa feita por Bolsonaro de vacinar toda a população adulta brasileira até o final de 2020. Ele afirmou que o governo está na “iminência” de assinar um contrato com o laboratório americano Moderna para a compra de 100 milhões de doses que poderiam chegar ainda neste ano.
Segundo ele, o governo também conseguiu antecipar 3 milhões de doses (de um total de 38 milhões) da vacina da Janssen, que é de dose única, e que estavam previstas para o último trimestre do ano. “A chegada está dependendo só de uma autorização do FDA [Food and Drug Administration, agência do Departamento de Saúde americano], porque está vistoriando a planta onde essa vacina é produzida, nos Estados Unidos. Uma vez isso sendo confirmado, nós vamos anunciar”, disse.
“Isso perfaz mais de 600 milhões de doses de vacinas já pactuadas com o Ministério da Saúde, o que permite afirmar para os senhores, com um grau muito forte de segurança, que teremos a nossa população vacinável, ou seja, aqueles acima de 18 anos, vacinados até o final do ano”
O total de brasileiros que poderia ser vacinado até dezembro seria, portanto, de cerca de 160 milhões de pessoas. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que a promessa será difícil de ser cumprida se o atual ritmo de vacinação for mantido.
“Para nós termos um Natal sem covid, precisaríamos chegar a essa meta no final de outubro, início de novembro. Tenho outra preocupação, que é a seguinte: qual a média de vacinação nossa hoje? Parece-me que a média de vacinação está em 500 mil, 600 mil. Para alcançarmos essa meta em outubro ou em novembro, precisaremos aumentar a média de imunização para 2,5 milhões por dia”, afirmou.
Queiroga reconheceu que a meta do governo depende de “que haja doses suficientes”. O cronograma de vacinação do ministério tem sofrido uma série de alterações desde que começou a ser divulgado em durante a gestão de Pazuello. Queiroga admitiu à CPI que o fornecimento de imunizantes em julho e agosto pode ser crítico por conta dos atrasos no fornecimento do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), que é importado da China. A produção da Fiocruz e do Instituto Butantan dependem do insumo.
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