A prisão na CPI do suspeito de pedir propina na vacina
Fernanda Boldrin
08 de julho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h13)Acusado de mentir, ex-diretor da Saúde Roberto Dias foi detido, e liberado após pagar fiança. Foi a 1ª vez que a comissão tomou tal atitude, apesar de outros depoentes terem faltado com a verdade
Roberto Ferreira Dias, ex-diretor do departamento de Logística do Ministério da Saúde, após sessão da CPI da Covid no Senado
O ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias depôs à CPI da Covid na quarta-feira (7) e saiu preso da sessão. Foi a primeira vez que a comissão deu voz de prisão a alguém por mentir, apesar de vários outros depoentes já terem faltado com a verdade antes . A ordem foi dada pelo presidente do colegiado, senador Omar Aziz (PSD-AM). Dias ficou detido por cinco horas e saiu após ao pagar fiança de R$ 1.100 .
Dias é citado em dois casos que levantaram suspeitas nas negociações de imunizantes contra a covid-19 conduzidas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Ele foi acusado por um PM que faz bico vendendo vacinas de ter pedido propina em uma dessas negociações. Antes de ser preso, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde negou ilegalidades em seu depoimento.
Neste texto, o Nexo explica as principais suspeitas que pesam sobre Dias, mostra o que ele disse sobre elas, indica quais novas suspeitas foram levantadas por seu depoimento e relata como a oitiva culminou em sua prisão.
Integrante da direção do Ministério da Saúde desde 2019, Roberto Ferreira Dias ganhou destaque no noticiário nacional depois que foi acusado de ter cobrado propina para negociar a compra de vacinas. Ele foi oficialmente exonerado da pasta em 30 de junho, após o caso vir à tona.
A acusação de pedido de propina foi feita pelo cabo da Polícia Militar Luiz Paulo Dominguetti, que queria vender 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca ao governo em nome da empresa americana Davati. Em depoimento à CPI em 1º de julho, Dominguetti disse que esteve com Roberto Dias num jantar em Brasília em 25 de fevereiro e afirmou que, na ocasião, Dias cobrou propina para que as tratativas seguissem.
Dias negou à CPI ter pedido propina, mas confirmou que o jantar aconteceu. Ele disse, porém, que foi ao restaurante para “um chope casual com um amigo”, o servidor público José Ricardo Santana. O encontro com Dominguetti, segundo seu depoimento, teria ocorrido “incidentalmente”.
“Eu estava na minha agenda com este amigo quando, na sequência, se dirige à mesa o coronel Blanco, acompanhado desse senhor que naquele momento se apresentou como Dominguetti”, afirmou Dias à CPI. O coronel citado é Marcelo Blanco da Costa, ex-assessor do departamento de Dias no Ministério e exonerado do posto em janeiro de 2021. Dominguetti disse à CPI que, quando chegou ao restaurante, Blanco já estava lá .
Na ocasião, segundo Dias, os quatro “falaram de futebol”, e Dominguetti “introduziu o assunto de vacina”. Dias negou ter negociado a aquisição de imunizantes fora do ambiente de trabalho e afirmou que, quando o assunto surgiu, disse a Dominguetti que marcasse uma agenda oficial no Ministério da Saúde.
A agenda foi marcada para o dia seguinte, dia 26 de fevereiro. Dias justificou a agilidade afirmando que, no jantar, Dominguetti teria dito que iria embora já naquela data. Segundo Dias, o objetivo da reunião era que Dominguetti apresentasse documentos indicando que ele representava a AstraZeneca. Mas, como os documentos não foram apresentados, o negócio não avançou. Dias disse que, depois do dia 26, “nunca mais” viu Dominguetti.
A versão de um encontro “incidental”, porém, foi questionada pelos senadores, bem como a agilidade com que foi marcado o encontro. Ainda durante a sessão, a CNN Brasil revelou áudios nos quais Dominguetti conversa com terceiros e cita o nome de Dias ao falar sobre as negociações. Os áudios são anteriores ao jantar em Brasília, e indicam que as tratativas já estavam em andamento.
A versão de Dias sobre o jantar foi citada pelo presidente da comissão, Omar Aziz, ao determinar a prisão do depoente por mentir à comissão.“Tem coisa que não dá para admitir. Os áudios que nós temos do Dominguetti são claros”, disse Aziz.
Durante o depoimento, ao ser questionado sobre os contatos com a Davati, Dias negou em diversas oportunidades que tenha feito “negociação” com a empresa. Ele afirmou que estava apenas checando “a evidência das doses”.
Ele também negou que tenha atuado na negociação de outras vacinas. Questionado sobre se seu departamento chegou a examinar os preços praticados internacionalmente na venda da vacina indiana Covaxin, por exemplo, ele disse que, “no âmbito de vacinas covid-19, não cabia ao departamento essa tarefa”. Mas Dias se contradisse ao confirmar, entre outros pontos, que recebeu emails da empresa que ofereceu a vacina indiana.
Suas negativas de que tivesse negociado vacinas se deram porque, segundo ele próprio, a negociação de vacinas contra a covid-19 foi centralizada na Secretaria Executiva do Ministério – que, na época do contato com a Davati e da assinatura do contrato da Covaxin, estava sob o comando do coronel Élcio Franco, que foi exonerado do cargo em março de 2021 e, em abril, foi nomeado assessor na Casa Civil.
Os senadores, porém, apontaram que o que ele fez nas tratativas com a Davati, por exemplo, foi negociar. “Se não negociava, por que marcou agenda para tratar da aquisição de vacinas junto à Davati?”, questionou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). “É contraditório”.
Se por um lado os senadores avaliaram que Dias foi além do que ele mesmo disse que lhe cabia ao tratar das vacinas, por outro, os parlamentares também avaliaram que o direcionamento de responsabilidades para Elcio Franco implicou o ex-secretário executivo da Saúde em suspeitas, já que as negociações teriam sido centralizadas nele.
Os senadores falaram em convocar o militar novamente a depor. Franco prestou depoimento à comissão em 9 de junho, quando as suspeitas envolvendo o caso Davati e o caso Covaxin não tinham vindo à tona. “O secretário executivo saiu hoje muito complicado”, disse o senador Humberto Costa (PT-PE). “Nós temos que investigar isso, ele tem que voltar aqui”.
O senador Randolfe Rodrigues questionou Dias sobre exonerações que ocorreram no departamento comandado por ele, o que também levou ao nome de Franco. Isso porque Dias afirmou que, após o Ministério da Saúde passar para o comando do general Eduardo Pazuello, houve exonerações em seu departamento. Ele disse acreditar que elas partiram da Secretaria Executiva – então comandada por Elcio Franco. Um dos novos coordenadores nomeados foi Alex Lial Marinho, que foi citado no depoimento dos irmãos Miranda como um dos membros do Ministério que fizeram pressão para agilizar a compra da vacina Covaxin.
O senador Eduardo Braga (MDB-AM) disse que os fatos indicam uma interferência na diretoria de Dias e apontam para uma disputa interna no Ministério. “Me parece que houve uma disputa em torno desse departamento em que as compras acontecem, e que houve uma concentração na Secretaria Executiva”, afirmou.
A avaliação da cúpula da CPI , conforme o Blog de Valdo Cruz no portal G1, é de que havia uma disputa entre grupos de uma ala militar do Ministério – integrada por Elcio Franco – e integrantes da pasta indicados por políticos – caso de Dias.
Os senadores lembraram que Dias já havia sido alvo de uma tentativa de exoneração do Ministério em outubro de 2020. Conforme notas de bastidor do jornal O Globo, a investida contou com aval de Elcio Franco . Mas a exoneração acabou vetada pelo governo após pressões políticas envolvendo o nome do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Os senadores também investigam se relações políticas podem ter influenciado a atuação de Dias nos negócios das vacinas. Segundo notas da imprensa, sua indicação para o departamento de Logística do Ministério teve aval do deputado Ricardo Barros (PP-PR), atual líder do governo na Câmara.
Segundo depoimentoà CPI do deputado federal Luis Claudio Miranda (DEM-DF) e seu irmão Luis Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, Barros foi citado pelo presidente Jair Bolsonaro como tendo ligação com “rolos” envolvendo a aquisição da vacina Covaxin, vacina mais cara entre as adquiridas pelo governo e cuja negociação gerou suspeita de favorecimento.
À comissão, Dias negou ter contado com indicação de Barros para o cargo que ocupou no Ministério. Ele disse que tem relação com o parlamentar, mas que sua indicação partiu do ex-deputado federal Abelardo Lupion (DEM-PR). Os senadores questionaram como que Dias permaneceu na pasta mesmo após uma sucessão de gestões, ao que ele não forneceu explicações. Essa é uma das lacunas citadas como contradições em seu auto de prisão.
O depoimento dos irmãos Miranda à CPI também implicou diretamente Dias nas suspeitas sobre a aquisição da Covaxin. Isso porque ele foi citado como um dos membros do Ministério da Saúde que fez pressão para agilizar a importação do imunizante. Aos senadores, Roberto Dias negou ter exercido pressão nesse sentido.
Depois de horas de depoimento, Roberto Dias recebeu voz de prisão do presidente da CPI da Covid, Omar Aziz. “Eu já dei todas as chances. Ele vai ser recolhido agora pela Polícia do Senado. Ele está mentindo desde de manhã”, disse Aziz.
Questionado sobre que pontos motivaram a determinação, Aziz disse que foram “vários”. Ele fez menção à declaração de Dias de que ele “não tinha conhecimento que ia se encontrar com Dominguetti”, e citou também a iniciativa de “marcar uma audiência relâmpago”. Os senadores fizeram também referência aos áudios divulgados pela CNN Brasil que mostraram citações ao nome de Dias antes do jantar.
Essa é a primeira vez que Aziz toma uma medida do tipo na comissão. Em ocasiões anteriores, senadores chegaram a pedir a prisão dos depoentes, mas ele vetou. Foi o caso do depoimento de Fabio Wajngarten, ex-chefe da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) do governo do presidente Jair Bolsonaro. Protagonista de uma das oitivas mais quentes da comissão, Wajngarten foi alvo de pedido de prisão diversas vezes por mentir aos senadores. Mas, na ocasião, Aziz disse que não levaria a prisão a cabo.
A decisão de Aziz foi contestada por parte dos senadores do grupo majoritário que argumentaram que, como outros depoentes já haviam mentido à CPI e não haviam saído presos, o mesmo deveria valer para Dias. Outra parte do grupo defendeu a prisão. O senador Marcos Rogério (DEM-RO), governista, classificou a medida como “abuso de autoridade”. Mas ninguém demoveu Aziz da determinação.
“Tenho sido desrespeitado como presidente da CPI, ouvindo historinhas. As pessoas se preparam. Não aceito que a CPI vire chacota . Temos 527 mil mortos, e os caras brincando de negociar vacina. […] Ele está preso por mentir ”
A prisão de testemunhas que dão falso testemunho é uma prerrogativa das comissões parlamentares de inquérito. Mas a prisão de Dias levantou questionamentos no meio jurídico. Especialistas ouvidos pelo jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, questionaram a prisão sob o argumento de que, apesar de estar presente como testemunha, Dias respondeu sobre questões em relação às quais era diretamente envolvido – na prática, ele estaria ali como investigado, condição na qual o depoente não precisa assinar compromisso de dizer a verdade. Esses especialistas ressaltaram que ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo.
O auto de prisão de Dias cita 12 contradições cometidas por ele em seu depoimento à comissão. As menções envolvem desde a negociação com Dominguetti até suas falas de que desconhecia o motivo das tentativas de exonerá-lo. Durante o depoimento, senadores disseram que ele tentou “blindar o andar de cima”. Dias ficou detido nas dependências da Polícia Legislativa, no Senado, e foi liberado após cinco horas mediante o pagamento de fiança.
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