Expresso

Como Bolsonaro emula o ‘tio do zap’ com teorias conspiratórias

Isabela Cruz

17 de agosto de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h18)

Servidor do TCU diz à CPI da Covid que ficou ‘indignado’ quando presidente espalhou documento extraoficial. Caso se soma a outros que ganham dimensão por se tratar da maior autoridade política do país

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FOTO: REPRODUÇÃO/FACEBOOK

Bolsonaro, deitado, mexe no celular. Ele carrega arma na cintura

O presidente Jair Bolsonaro ao celular

Um documento extraoficial que se apresentava como uma produção do Tribunal de Contas da União foi citado pelo presidente Jair Bolsonaro no início de junho de 2021 como suposta prova de que estados e municípios estariam inflando o número de casos de covid-19 no Brasil. O tribunal desmentiu a publicação, e o próprio auditor que produziu o texto, Alexandre Figueiredo Costa e Silva Marques, reconheceu na terça-feira (17) à CPI da Covid que entendeu não haver indícios de fraude nos dados que coletou.

As ameaças à democracia e o negacionismo de Bolsonaro têm consequências para os ambientes institucional e social , assim como para o combate à pandemia que já matou mais de 570 mil pessoas no país. E muitas dessas ameaças são feitas no mais puro estilo de “tio do zap”. Não apenas metaforicamente, mas literalmente: o presidente comenta e repassa teorias da conspiração pelo aplicativo de mensagens, seja para propagar teses irreais como a supernotificação de casos de covid, seja para apoiar atos de rua dando vazão a ideias descoladas da realidade, como a necessidade de um “contragolpe” para livrar o Brasil de ameaças “da esquerda e de um aparato internacional de interesses escusos”.

Neste texto, o Nexo retoma os momentos em que Bolsonaro repassou informações recebidas pelas redes sociais, sem qualquer checagem de fonte ou de fatos, expõe as consequências desse comportamento e mostra como isso se enquadra nas legislações sobre crimes comuns e de responsabilidade, segundo a CPI e outras instituições de controle.

A contagem das mortes via WhatsApp

Autor de um documento que usa dados do Portal da Transparência do Registro Civil para comparar o volume anual de mortes no Brasil dentro de uma série histórica, Marques afirmou à CPI que encaminhou via WhatsApp no dia 6 de junho um documento no formato “word” para o seu pai, o coronel reformado do Exército Ricardo Silva Marques, que repassou no mesmo dia o arquivo para Bolsonaro, seu amigo. O coronel se formou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, na mesma turma do presidente, e em 2019 foi nomeado para um cargo de gerência executiva na Petrobras.

No dia seguinte ao encaminhamento, Bolsonaro afirmou a apoiadores que tinha uma informação em “primeira mão” de um “tal de Tribunal de Contas da União”. Segundo ele, um relatório do TCU mostrava que “em torno de 50% dos óbitos por covid ano passado não foram por covid”. Repetindo uma narrativa comum em mensagens que circulam nas redes digitais bolsonaristas, o presidente também sugeriu que a informação, apesar de pública, estaria sendo boicotada pela “imprensa”.

“Esse relatório saiu há alguns dias. Lógico que a imprensa não vai divulgar. Eu tenho três jornalistas que eu converso, não vou falar o nome deles, que são pessoas sérias, né. E já passei para eles. E devo divulgar hoje à tarde. E como é do Tribunal de Contas da União, ninguém queira me criticar por causa disso”

Jair Bolsonaro

presidente, a apoiadores na frente do Palácio da Alvorada, no dia 7 de junho de 2021

Logo após a fala de Bolsonaro, um documento com o título “Tribunal de Contas da União” passou a circular nas redes sociais. O portal R7 chegou a publicar uma reportagem com o mesmo texto em que afirmava que o documento tinha sido conseguido com fontes do Palácio do Planalto .

Mas o TCU publicou nota para afirmar que nunca produziu relatório que demonstrasse a referida supernotificação da covid no país. No dia 8 de junho, Bolsonaro disse então que se referia a um acórdão em que o tribunal apontava que a vinculação dos repasses federais a estados e municípios ao número de casos de covid-19 nesses lugares (como determina a legislação federal sancionada por Bolsonaro ) poderia levar ao risco de uma supernotificação. Dois documentos com um alerta do tipo de fato foram produzidos pelo TCU em 2020, mas esse risco nunca se confirmou na prática.

À CPI Figueiredo afirmou que ficou “indignado” quando viu que seu texto estava em circulação, e negou que tivesse produzido o material para compartilhá-lo com o presidente. O servidor afirmou que fez a apuração com a finalidade de monitorar os repasses do governo federal. Disse também que as informações foram levadas à sua coordenadora no TCU, que, junto com ele, considerou não haver indícios de irregularidades para iniciar uma investigação sobre o assunto, já que uma fraude nos registros exigiria o conluio de equipes médicas e governos por todo o país.

Para a senadora Simone Tebet (MDB-MS), a divulgação do relatório ilegítimo que o presidente recebeu por WhatsApp poderia caracterizar quebra de decoro e, portanto, um crime de responsabilidade de Bolsonaro. Os crimes de responsabilidade são punidos com impeachment, um processo que depende de disposição política do Congresso, algo longe de acontecer atualmente.

Além disso, se ficar comprovado que foi Bolsonaro quem acrescentou no documento o título que o atribuía ao Tribunal de Contas, ficaria caracterizado, segundo senadores da CPI, o crime de falsidade de documento, punível com prisão que pode chegar a seis anos, mais multa. Um processo criminal, porém, dependeria de Augusto Aras, procurador-geral da República que tem atuado de forma alinhada ao Palácio do Planalto.

A ideia de que houve uma supernotificação de casos, porém, serve a Bolsonaro porque questiona a credibilidade das informações das gestões estaduais, muitas delas opositoras do presidente, e porque diminui a gravidade da pandemia no país e, portanto, o mau desempenho do governo federal em enfrentar a crise sanitária. Nesse sentido, o governo, via CGU (Controladoria-Geral da União), move a máquina pública para produzir apurações sobre o assunto, enquanto os cientistas estimam haver, na verdade, uma subnotificação de casos, assim como ocorreu em diversos outros países.

Além da manipulação da opinião pública em relação ao desempenho do governo federal na pandemia, esse tipo de narrativa já foi usado por parlamentares bolsonaristas, incentivados pelo presidente, para fundamentar a invasão de hospitais para a inspeção da ocupação dos leitos. No próprio dia 8 de junho, Bolsonaro afirmou também haver “indícios fortíssimos” da irregularidade e citou como provas “vídeos do WhatsApp”.

As teorias da internet sobre fraude eleitoral

Bolsonaro também passou um ano e meio afirmando que tinha provas de que as eleições de 2018 foram fraudadas. Depois passou a dizer que as de 2014 também tiveram resultado adulterado. Após ser cobrado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sobre essas supostas provas, o presidente anunciou que revelaria o material numa live, no final de julho de 2021.

Na live, porém, Bolsonaro nada mais fez do que apresentar, com a ajuda de um coronel da reserva que assessora a Casa Civil (apresentado inicialmente como “especialista”), uma série de vídeos compilados da internet , com teses já desmontadas por agências de checagem de fatos e pela própria Justiça Eleitoral.

Um dos vídeos, por exemplo, de um astrólogo que diz fazer acupuntura em árvores, mostrava que resultados parciais da apuração das eleições de 2014 apresentariam um padrão por longo tempo, o que estatisticamente seria improvável. Mas os resultados computados no vídeo, conforme já demonstraram as checagens amplamente divulgadas, estavam errados , e o padrão alegado jamais existiu.

Cientistas políticos veem no comportamento de Bolsonaro uma estratégia para minar a credibilidade das eleições , uma estratégia comum entre líderes autocráticos pelo mundo. Nos Estados Unidos, entre o final de 2020 e o início de 2021, o então presidente Donald Trump adotou atitude semelhante e acabou por estimular a conflagração política. Numa invasão do Congresso americano por eleitores trumpistas, cinco pessoas acabaram mortas.

No Brasil, Bolsonaro virou alvo do inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, e de um inquérito administrativo do Tribunal Superior Eleitoral, por conta de sua insistência na propagação de informações falsas sobre a segurança das eleições.

No inquérito criminal, as chances de um processo são baixas, pois dependem de Aras. Sob pressão, o procurador-geral informou ao Supremo na segunda-feira (16) que iniciou apurações preliminares , um procedimento interno do Ministério Público, para analisar a necessidade de um inquérito formal contra Bolsonaro. Em relação ao inquérito administrativo do TSE, um processo pode ser aberto por iniciativa de um partido político, sem depender do Ministério Público. O caso pode resultar, no limite, na proibição de que Bolsonaro participe das próximas eleições.

Analistas políticos afirmam que, se a situação perdurar até 2022, quando o presidente pretende disputar a reeleição, as ameaças de Bolsonaro à democracia podem resultar em violência social . Nos EUA, no início de 2021, eleitores radicalizados invadiram o Congresso americano após um discurso de Donald Trump, que havia perdido as eleições para Joe Biden, mas não aceitava o resultado, alegando fraude nas urnas sem apresentar provas.

Os resultados do ‘tratamento precoce’

Bolsonaro também compartilha com frequência vídeos que circulam nas redes sociais como tentativa de provar a eficácia de um “tratamento precoce” para a covid, algo que, segundo sociedades médicas e organismos como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), não existe até o momento. O presidente já chegou a afirmar que é do interesse de farmacêuticas “desacreditar a cloroquina” para venderem remédios mais caros. A CPI investiga, porém, as relações do governo com laboratórios que multiplicaram suas vendas dos medicamentos defendidos por Bolsonaro durante a pandemia.

Num dos vídeos compartilhados por Bolsonaro, por exemplo, o prefeito da cidade catarinense de Chapecó, João Rodrigues (PSD), aparece nos corredores de um hospital e diz que o número de mortes diárias em Chapecó “saiu de 18 para duas ou 3”, sem citar o período em que a queda dos óbitos teria acontecido. “Aqui em Chapecó, nós usamos todos os protocolos. O protocolo do tratamento precoce também foi adotado. Atenção, prefeitos governadores, não tenham medo. Abram suas portas para o tratamento de seus pacientes com tudo aquilo que é possível”, afirmou Rodrigues.

Os boletins publicados pela Secretaria de Saúde de Chapecó, porém, mostram que, na verdade, houve um forte agravamento da pandemia na cidade em 2021. Nos três primeiros meses do ano, segundo os dados oficiais, morreram 409 pessoas por covid-19 no município, quantidade quase quatro vezes maior do que o total de mortes pela doença de março a dezembro de 2020.

Para integrantes da CPI, Bolsonaro agiu como “curandeiro” ao propagandear um falso tratamento precoce durante a crise sanitária e, assim, agravou a pandemia no país. Pelo Código Penal, o crime de curandeirismo é punível com detenção de 6 meses a 2 anos. Já pelo crime de pandemia a prisão pode chegar a 30 anos. Mais uma vez, qualquer avanço nesse aspecto criminal depende de Aras.

Segundo especialistas em saúde pública da USP, tal atitude sobre o “tratamento precoce”, somada a inúmeras medidas do governo contra o isolamento social e outras medidas de contenção do vírus, demostram que Bolsonaro levou a cabo uma “estratégia institucional” para espalhar a covid-19 no Brasil, com o objetivo de atingir uma pretensa imunidade de rebanho da população. Nessa visão, o governo adotou um cálculo que deu mais pesoaos impactos econômicos imediatos de uma paralisação do que à vida dos brasileiros.

Em depoimento à CPI, o epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal defendeu que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas até junho de 2021, se o governo federal tivesse agido diferente e atuado como atuou a média dos governos estrangeiros.

A análise político-jurídica de ‘contragolpe’

No sábado (14), Bolsonaro compartilhou com ministros, apoiadores e amigos no WhatsApp um texto sobre a necessidade de uma ruptura institucional promovida pelo presidente, com o apoio das Forças Armadas, segundo revelou o jornalista Guilherme Amado, do site Metrópoles.

O texto enviado pelo presidente é assinado por um grupo de Facebook chamado “Ativistas direitas volver” e repete a narrativa conspiratória usada em 1964 para fundamentar o golpe militar que ocorreu naquele ano: uma suposta ameaça de um golpe do “poder Judiciário, esquerda e todo um aparato, inclusive internacional, de interesses escusos” justificaria um dito “contragolpe que terão que implementar em breve”.

“Hoje, fazer um contragolpe é muito mais difícil e delicado do que naquela época, além do grave aparelhamento acima relatado, temos uma constituição comunista que tirou em grande parte os poderes do Presidente da República” é a análise do texto. A mensagem propõe uma manifestação bolsonarista em 7 de setembro “absurdamente gigante” para “comprovar e apoiar inclusive intencionalmente” que o presidente e as Forças Armadas têm o apoio para a ruptura.

Nesta terça-feira (17), 31 subprocuradores apresentaram uma representação ao procurador-geral pedindo uma investigação contra Bolsonaro, em razão da mensagem compartilhada. Para os membros da Procuradoria-Geral da República, se confirmada, a atitude de Bolsonaro pode configurar os crimes de incitação ao crime, punível com detenção, de 3 a 6 meses ou multa, e de tentativa de mudança, com emprego de violência ou grave ameaça, do regime vigente, punível com reclusão de até 15 anos . Mais uma vez, tudo depende de Aras para avançar.

O discurso radicalizado aparece não apenas no WhatsApp do presidente. Fez parte dos posts do presidente do PTB, Roberto Jefferson, que acabou preso preventivamente na sexta-feira (13) no âmbito do inquérito das milícias bolsonaristas do Supremo. E continua presente em discursos como o do cantor sertanejo Sérgio Reis, que num áudio que circula na internet promete ameaçar o Senado a fim de que todos os ministros do Supremo sejam cassados.

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