Expresso

Por que o Brasil chega atrasado à vacinação de crianças 

Estêvão Bertoni

16 de dezembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h35)

Apesar de aprovação da Anvisa, Ministério da Saúde não garante doses para público de 5 a 11 anos. Imunizantes são diferentes dos usados em adolescentes e adultos  

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FOTO: YARA NARDI/REUTERS – 15.DEZ.2021

Imagem mostra menino de costas, com a blusa erguida, recebendo uma vacina no braço esquerdo de profissional de saúde vestindo um jaleco branco e usando máscara

Garoto de cinco anos é vacinado contra a covid-19 em hospital de Roma, na Itália


Com mais de três meses de atraso em relação a outros países, o Brasil autorizou na quinta-feira (16) a vacinação contra a covid-19 em crianças de 5 a 11 anos. Apesar da decisão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de liberar o imunizante da Pfizer para esse público, o país ainda não tem disponíveis as doses pediátricas, que são diferentes das usadas em adolescentes e adultos. Ainda não há previsão de início da vacinação, que dependerá do Ministério da Saúde.

Durante o anúncio da decisão, a Anvisa rebateu críticas de que tenha demorado para analisar o pedido da farmacêutica americana. A agência afirmou ter concluído sua parte no processo em 21 dias, tempo menor do que o gasto nos Estados Unidos, Canadá e União Europeia. A própria Pfizer demorou cerca de 13 dias para enviar esclarecimentos sobre as dúvidas da agência, segundo seus diretores. Países como Chile e Argentina já vacinam crianças há mais de dois meses.

Neste texto, o Nexo mostra como a discussão sobre a vacinação de crianças vem sendo feita no país, com ameaças de mortes aos servidores da Anvisa e oposição do presidente Jair Bolsonaro, e quais dados corroboram a decisão pela liberação dos imunizantes para esse grupo da população, que soma cerca de 20 milhões de pessoas.

A vacinação de crianças

Ainda em setembro, Cuba foi o primeiro país do mundo a anunciar uma campanha de vacinação para crianças de 2 a 11 anos contra a covid-19, com sua própria vacina, a Soberana 2. No mesmo mês, Chile e El Salvador iniciaram a vacinação de crianças a partir dos 6 anos com doses da Coronavac. Outros países seguiram orientação parecida, como China e Emirados Árabes Unidos.

Em outubro, a Argentina aprovou a vacinação de crianças a partir dos 3 anos com a vacina da Sinopharm, também produzida na China com a mesma tecnologia da Coronavac (que acabou adotada pela Colômbia para crianças de 3 a 11 anos no mesmo mês). No fim de outubro, a FDA (Food and Drug Administration), agência do departamento de saúde dos Estados Unidos, liberou o imunizante da Pfizer para a população de 5 a 11 anos, depois que os testes mostraram uma eficácia de 91%.

Canadá e União Europeia autorizaram a vacinação de crianças em novembro, e países como Austrália, Singapura e Suíça fizeram o mesmo no começo de dezembro.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) se posicionou sobre o tema no final de novembro dizendo que, por serem menos impactados pela covid-19, crianças e adolescentes têm menos urgência em serem vacinados, mas reconheceu que a imunização desse grupo pode reduzir a transmissão do vírus para pessoas mais velhas e contribuir para a manutenção das atividades escolares presenciais. Mesmo assim, a entidade defendeu que a prioridade deveria ser direcionar as vacinas a países mais pobres com baixas coberturas.

“Por uma questão de equidade global, enquanto muitas partes do mundo enfrentam escassez de vacinas, países que atingiram altas coberturas vacinais de suas populações de maior risco devem priorizar a distribuição global de vacinas por meio de Covax Facility antes de vacinar crianças e adolescentes que apresentam menor risco de doenças graves”

Organização Mundial da Saúde

em posicionamento oficial, no final de novembro

A decisão da Anvisa

No Brasil, a Anvisa negou ainda em agosto a autorização para o uso da Coronavac a partir dos 3 anos, alegando insuficiência de dados sobre sua segurança. A vacinação de crianças não entrou nos planos do Ministério da Saúde para 2021, e o presidente Jair Bolsonaro se manifestou contra a ideia em diversas oportunidades.

Em 12 de novembro, a Pfizer protocolou um pedido na agência para ampliar o uso de sua vacina em crianças de 5 a 11 anos, como havia sido autorizado em outubro nos Estados Unidos. Depois de 11 dias, a agência pediu mais informações sobre os ensaios clínicos, que levaram mais 13 dias para serem entregues pela empresa. Outros dez dias de análise foram necessários até que a Anvisa decidisse liberar o uso.

Nesse meio tempo, a agência foi cobrada pela demora em autorizar a vacinação de crianças. Segundo o órgão, o processo foi mais rápido do que na Austrália (54 dias), Canadá (42 dias), União Europeia (39 dias) e Estados Unidos (32 dias). Em todos eles, a autorização ocorreu antes de 10 de dezembro.

Na quarta-feira (15), o Instituto Butantan, que produz a Coronavac no Brasil, entrou com um segundo pedido para que a vacina possa ser aplicada em crianças e jovens de 3 a 17 anos. Para o aval da agência, o laboratório precisa demonstrar segurança e eficácia do imunizante para as faixas etárias por meio de estudos clínicos.

Os dados sobre imunização de crianças

Os estudos com a vacina da Pfizer em crianças contaram com quase 4.000 voluntários. Eles foram divididos em dois grupos que receberam a vacina e um terceiro que recebeu um placebo (substância sem eficácia), para que os resultados pudessem ser comparados.

Nos testes, o imunizante apresentou uma taxa de eficácia de 90%, semelhante à obtida nos ensaios clínicos com adultos. Também houve proteção contra a variante delta — ainda não há dados sobre a ômicron, embora, com adultos, a proteção tenha sido considerada insuficiente e só garantida com uma terceira dose de reforço .

A vacina é a mesma usada em adultos, mas há diferença na quantidade aplicada — ela equivale a apenas um terço do que é administrado em pessoas com 12 anos ou mais. A concentração de RNA mensageiro, que serve como uma receita para as células humanas produzirem uma proteína que ativa o sistema imunológico, induzindo a proteção de anticorpos e células de defesa, também é menor para as crianças.

A vantagem é que as doses pediátricas podem ser mantidas em geladeiras comuns, de 2º C a 8º C, por dez semanas. Cada frasco contém dez doses. Já as vacinas para adolescentes e adultos têm validade de apenas um mês na mesma temperatura, e cada frasco armazena apenas seis doses. O esquema vacinal para crianças também é de duas doses, com intervalo de 21 dias entre elas.

Segundo a Anvisa, 4,9 milhões de crianças haviam recebido ao menos uma dose da vacina da Pfizer nos Estados Unidos até 8 de dezembro. As suspeitas de casos adversos se resumiam a 0,05% das doses administradas. Mais da metade dos eventos reportados foram causados por falhas na aplicação da vacina (como erro na dose ou na idade de quem foi vacinado), sendo considerados, portanto, evitáveis.

Um dos possíveis efeitos adversos citados pelos diretores da agência foi a ocorrência de miocardite (inflamação do músculo cardíaco) e pericardite (inflamação do tecido que envolve o coração) após a vacinação. Os números, porém, apontam que essas inflamações são eventos muito raros que podem ocorrer em apenas 0,007% dos casos em idades superiores, acima dos 16 anos. A Anvisa lembrou ainda que uma pessoa com 16 anos ou mais infectada com a covid-19 tem 37 vezes mais chances de apresentar essas mesmas duas doenças do que alguém que tenha sido vacinado.

A covid em crianças

Durante o comunicado sobre a liberação da vacinação na quinta-feira (16), a Anvisa ressaltou que as crianças estão mais protegidas de casos graves de covid-19 do que os adultos. Pessoas de 5 a 14 anos, por exemplo, representavam, até o fim de outubro, apenas 7% dos casos e 0,1% das mortes pela doença em todo o mundo, segundo a OMS.

Entidades médicas, como a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, a de Infectologia e a de Imunizações, também foram consultadas e puderam se manifestar. Todas foram favoráveis à vacinação de crianças. Representantes dos médicos lembraram que, embora os casos e mortes sejam mais raros, mais de 2.500 crianças e adolescentes até os 19 anos morreram no Brasil por covid-19 desde o início da pandemia, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria.

Especialistas também lembram que o número de crianças vítimas da covid-19 no país é maior do que todas as outras doenças que podem ser evitadas com as vacinas disponibilizadas pelo Programa Nacional de Imunizações, como gripe, sarampo, rubéola e meningite.

Em junho, um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo também mostrou que o Brasil só ficava atrás do Peru em número de mortes de crianças proporcionalmente à sua população.

Quais as barreiras para a vacinação

Apesar da aprovação, ainda não se sabe quando a vacinação de crianças ocorrerá. O cronograma depende do Ministério da Saúde, que até meados de dezembro não havia comprado as doses específicas para esse público. O governo federal assinou um acordo com a Pfizer para receber 100 milhões de doses do imunizante em 2022. Existe a possibilidade de que, desse total, uma parcela seja de vacinas pediátricas, a depender da decisão da pasta. A previsão é que as primeiras doses cheguem ao país em janeiro, mas o governo ainda não anunciou o que irá fazer.

A vacinação de crianças chegou a motivar ao menos duas ameaças de morte aos cinco diretores da Anvisa, no final de outubro, caso a imunização fosse liberada pela agência. Durante o anúncio na quinta-feira (16), o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, comentou o episódio. “O acirramento dessa violência antivacina vai num viés crescente e é importante que falemos enquanto há tempo, antes que ameaças como essas e outras se concretizem”, disse. Os diretores do órgão chegaram a pedir proteção policial, mas o pedido foi negado.

O presidente Jair Bolsonaro, que desde o início se manifesta contra as vacinas como estratégia de combate à pandemia, tem questionado a segurança dos imunizantes para crianças e adolescentes. Em setembro, depois de tratar do assunto numa transmissão ao vivo pela internet ao lado do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a pasta suspendeu a vacinação de jovens de 12 a 17 anos, autorizada pela Anvisa desde junho, também com a vacina da Pfizer.

O ministério recuou cerca de uma semana depois, ainda em setembro. Mas Bolsonaro continuou levantando dúvidas sobre o tema, sem apresentar dados científicos. No final de outubro, ele se encontrou com o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, na reunião da cúpula do G20, em Roma, na Itália, e falou sobre o tema. Depois da conversa, o presidente divulgou nas redes sociais um vídeo editado para dizer que a entidade se opunha à vacinação de crianças — ela não se opõe, apenas pede prioridade à distribuição igualitária entre países.

Na quinta-feira (16), durante transmissão ao vivo pela internet, o presidente comentou a decisão da Anvisa e disse que não tem como interferir na agência, por ela não estar subordinada a ele. Ele leu a relação de possíveis efeitos adversos da vacina e disse que todos os pais também deveriam ler a nota técnica do órgão. Bolsonaro disse ainda que irá discutir com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, se a filha do casal, Laura, de 11 anos, será vacinada, e afirmou que irá divulgar o nome dos técnicos da Anvisa que decidiram pela liberação.

“Eu pedi, extraoficialmente, o nome das pessoas que aprovaram a vacina para crianças a partir de cinco anos. Queremos divulgar o nome dessas pessoas para que todo mundo tome conhecimento quem são essas pessoas e obviamente forme seu juízo”, disse. Mais cedo, ele havia publicado um vídeo com declarações falsas sobre as possíveis reações causadas pelos imunizantes, chamados no material de “porcaria”.

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