Expresso

Da assistência à educação: a evolução do papel das creches

Bruna Couto e Larissa Rocha

24 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h19)

Elas surgiram no Brasil no século 18 como ‘asilos infantis’, passaram a ganhar mais atenção do poder público entre 1930 e 1940 e viraram um direito constitucional das crianças em 1988

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FOTO: BITENKA/GETTY IMAGES

Criança brinca de amarelinha

Criança brinca de amarelinha

Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.

É comum relacionar as creches a um local onde os filhos ficam para que os pais possam ir trabalhar. Foi essa demanda que motivou a criação desses espaços, num modelo que perdurou por décadas até absorver novos objetivos, relacionados ao desenvolvimento social, cultural e educativo das crianças.

Apesar da evolução do conceito a respeito do papel das creches e das garantias legais que colocam o atendimento das crianças como um dever do Estado , o deficit de vagas brasileiro se impõe como um dos principais problemas a serem superados na área.

Neste texto, o Nexo resgata a origem das creches no Brasil, mostra como uma nova concepção de educação foi construída para crianças de 0 a 3 anos e expõe os problemas relacionados ao tema.

A origem das creches no Brasil

No Brasil, as creches surgiram no começo do século 18, por iniciativas assistenciais-filantrópicas. Chamadas inicialmente de “asilos infantis”, o desenho estrutural das creches acompanhou momentos históricos, como o período colonial e a industrialização, sem atenção específica estatal até a história recente.

Antes mesmo do surgimento dos asilos infantis, em meados de 1730, havia as Casas de Roda, uma espécie de depósito onde ficavam as chamadas “crianças não-desejadas”, frutos da união entre escravizadas e seus senhores. A entrada do local era construída em formato de roda, numa estrutura que impedia a identificação de quem deixava a criança no local.

Já no contexto da industrialização, no século 19, trabalhadores de grandes indústrias começaram a protestar por melhores condições de trabalho. Os empresários então ofereceram alguns benefícios. Um deles era um lugar para que os filhos dos trabalhadores pudessem ficar durante o horário de trabalho: as creches.

Nessa conjuntura, as creches também ganharam notoriedade sanitária, já que os índices de mortalidade infantil eram altos. Nas creches, as crianças estariam em segurança, livres do perigo de contágio por doenças.

Apesar da importância adquirida ao longo de sua história, apenas no governo de Getúlio Vargas (1930-1945), e mais especificamente no período no Estado Novo (1937-1945), é que as creches brasileiras ganharam atenção do Estado.

Até então, grandes líderes religiosos da Igreja Católica e de outros aparelhos sociais bancavam as creches, que não tinham caráter pedagógico. O lugar era marcado apenas pelo viés assistencialista, e visto sob a ótica de um anexo social aos problemas apresentados pela falta de atenção com a primeira infância brasileira.

A construção da nova concepção

Em 1988, a Constituição Federal avançou na discussão ao estabelecer que é dever do Estado prestar assistência gratuita aos filhos e dependentes dos cidadãos brasileiros, com idades entre 0 e 6 anos, em creches e pré-escolas.

Quase dez anos depois, em 1996, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) definiu o ensino infantil (que une creches e pré-escolas) como primeira etapa da educação básica. Conforme o documento, é obrigação das gestões municipais oferecer educação infantil em creches e pré-escolas, com recursos garantidos pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.

Cuidar das creches, portanto, é um papel dos municípios. Ele é exercido a partir de várias modalidades. Há as creches de administração direta (apenas com o poder público), há as conveniada (instituições parceiras que recebem do governo por aluno atendido) e há ainda as creches de administração indireta (em prédios públicos, geridos por entidades). Em todos esses casos o atendimento é gratuito. Há, por fim, as creches totalmente particulares.

O MEC (Ministério da Educação) estabelece critérios que precisam ser seguidos na educação infantil. Um documento de 2009 traz esses critérios. Segundo eles, os espaços devem ter:

  • Atividades lúdicas
  • Atenção individual
  • Ambiente seguro
  • Higiene e saúde
  • Alimentação sadia

As diretrizes centrais que auxiliam a administração das creches são basicamente retiradas da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e dos Planos Municipais de Educação Básica, elaborados a partir do Plano Nacional de Educação.

Luciana Lisboa, gestora de uma creche localizada em Campina Grande, no interior da Paraíba, relata que as crianças precisam de creches cujos programas e profissionais envolvidos em seu funcionamento equilibrem os direitos de cuidar e educar. Segundo ela, todas as ações realizadas no ambiente das creches devem ser pedagógicas.

“Quando você chega em uma unidade educacional para a primeira infância, o próprio acolhimento inicial é pedagógico. Tudo é pensado para cuidar e educar as crianças. Os banhos, as refeições, os momentos de brincadeiras. Temos uma intencionalidade clara de oferecer às crianças uma rede de cuidado através da educação”, disse a gestora.

As equipes precisam ser compostas por professores, para acompanhamento pedagógico; assistentes sociais, que dão encaminhamento junto aos Conselhos Tutelares caso situações de violência sejam constatadas; psicólogos, que ajudam as crianças a lidarem com questões sociais; e gestores, que estimulam a continuidade das atividades propostas.

“Existe toda uma perspectiva teórica metodológica de aprendizado, então para isso é preciso que tenhamos um professor com habilidade específica e que saiba realmente dar um direcionamento pedagógico às ações. Quando a gente entra na unidade a gente percebe que, quando ela tem uma rotina estruturada, é possível cuidar e educar num mesmo ambiente, considerando toda complexidade da criança e fazendo cumprir seu direito às creches”, afirmou.

Ainda de acordo com a gestora, o modelo pedagógico é apreciado e bem recebido pelos pais, mas a motivação principal de buscas por vagas em creches públicas diz respeito à necessidade de acolhimento infantil uma lacuna entre o teor pedagógico e assistencialista, fortalecida ao longo da história pela falta de atenção necessária, prevista nos meios legais.

Os dados sobre as creches no Brasil

O censo escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), principal documento de coleta de informações sobre a educação básica brasileira, ajuda a retratar o cenário das creches no Brasil. O mais recente levantamento, com dados de 2019, apresenta estimativas calculadas a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A cobertura escolar de crianças na faixa etária adequada à frequência em creches era de apenas 35,6% em todo o Brasil, segundo o levantamento. O percentual é inferior ao estipulado pelo PNE (Plano Nacional de Educação), que prevê que 50% das crianças de 0 a 3 anos estejam matriculadas regularmente em creches públicas e privadas.

A pesquisa também mostrou que entre os anos de 2015 e 2019, as matrículas em creches aumentaram cerca de 19%. Em 2020, na atualização dos dados, foi registrado um pequeno recuo nos matriculados por causa da pandemia da covid-19.

5 milhões

era o deficit de vagas em creches no Brasil em 2018, segundo o INC (Índice de Necessidade de Creche) indicador da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que promove ações e estudos sobre a primeira infância

Parte das crianças precisa de creche porque suas mães ou cuidadoras são as únicas mantenedoras financeiras ativas, ou seja, precisam de um lugar para deixar os filhos a fim de trabalhar.

70,9 mil

é o número de creches em funcionamento no Brasil

Como as creches públicas são financiadas

Os municípios destinam dinheiro para as creches, mas muitos precisam de ajuda federal. Um dos principais programas nacionais de financiamento público para a abertura de espaços na educação infantil é oProinfância (Programa Nacional de Reestruturação e Aparelhagem da Rede Escolar Pública de Educação Infantil), cujo orçamento é repassado aos municípios para a construção, reforma e aquisição de creches e pré-escolas.

Esse programa federal, do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), tem sofrido sucessivas reduções de verba. Em 2020, foram pagos cerca de R$ 155 milhões, menos da metade do gasto registrado em 2019, quando foram pagos R$ 325,6 milhões.

A ausência de investimentos também dificulta a contratação de profissionais com qualificação adequada, como professores para cada turma, e auxiliares pedagógicos, cuja presença em creches depende do quão articulados são os Planos Municipais de Ensino.

Isso ocorre porque, de acordo com os pesquisadores ouvidos pelo Nexo , as diretrizes financeiras para o funcionamento e o atendimento de creches mudam a depender do governo.

Elaine Florencio, doutoranda em Educação pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), afirma que, apesar das expectativas do PNE relacionadas ao funcionamento desses ambientes, não existem políticas públicas que garantam uma coordenação de crescimento de vagas uniforme das creches brasileiras.

“Não há um política nesse sentido de funcionamento que dê conta das creches no Brasil, embora exista o Plano Nacional de Educação que vale até 2024 e que traz a obrigatoriedade do aumento no orçamento em 50% para pré-escolas e creches, essa questão ainda fica restrita aos municípios”, afirmou.

Ainda de acordo com a especialista, a falta de investimentos federais para ajudar os municípios é a principal causa dessa discrepância.

“Ao longo dos dez anos [2007 e 2017] anos em que o programa Proinfância esteve realmente em funcionamento, com a assinatura dos contratos pelos municípios, que não tinham recursos financeiros para aumentar a demanda de vagas, e quando também considerou as adequações a realidade dos municípios, o programa assegurou a qualidade pensada para as crianças dentro de todos seus conceitos específicos” disse Florencia.

Em 2021, o governo federal tentou vincular ao Auxílio Brasil, programa social que substituiu o Bolsa Família, a um voucher dado às famílias para que elas pagassem pelas creches. A ideia acabou caindo no Congresso e sendo assim mantido o modelo de repasses federais às prefeituras.

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