Expresso

O retorno da ansiedade nuclear. E seu impacto nos jovens

Cesar Gaglioni

11 de março de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h48)

Guerra entre Rússia e Ucrânia revive temores da década de 1960. Adolescentes e adultos abaixo dos 30 anos são os mais afetados pelo medo

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FOTO: DIGITAL VISION/GETTY IMAGES

Imagem de um teste de bomba nuclear em 1956

Imagem de um teste de bomba nuclear em 1956

A guerra entre Rússia e Ucrânia trouxe de volta um sentimento comum nos anos 1960. O antagonismo atual entre russos e potências ocidentais revive o que se convencionou chamar de ansiedade nuclear, estado de ânimo que marcou parte da população global durante o período mais agudo da Guerra Fria.

Mundialmente, as buscas pelos termos “guerra nuclear + medo” aumentaram 10.000% entre o dia 24 de fevereiro e o dia 8 de março de 2022, segundo dados do Google . No Brasil, o cenário foi o mesmo: um aumento de 10.000% – também registrado nas buscas por “uma guerra nuclear afetaria o Brasil?”. Os mais impactados pelos temores são adolescentes e jovens adultos , de 14 a 30 anos.

Neste texto, o Nexo relembra como a ansiedade nuclear apareceu no século 20, explica essa mecânica em nossos cérebros, fala do seu impacto nos mais jovens e traz algumas recomendações sobre como lidar com ela.

A ameaça atômica

Ameaças atômicas não são corriqueiras. Mas desde que os Estados Unidos lançaram duas bombas nucleares sobre o Japão, na Segunda Guerra Mundial, o pesadelo nuclear tomou forma e passou a ser entendido como último recurso à força, como a “solução definitiva” para impasses intransponíveis entre países.

No auge da Guerra Fria (1947-1991), os Estados Unidos e a antiga União Soviética estiveram perto de concretizar suas ameaças. O episódio mais tenso envolvendo as duas maiores potências nucleares do mundo ocorreu em 1962, quando a União Soviética enviou uma bateria de mísseis para Cuba, ilha recém-tomada por uma revolução que derrubou um governo alinhado aos Estados Unidos. A ação espelhava o que os próprios americanos fizeram anos antes na Turquia, e levou a uma troca de ameaças mútuas que se intensificou ao longo de 13 dias.

No fim, as duas potências recuaram, mas o período conhecido como Crise dos Mísseis de Cuba foi o mais simbólico de um sentimento que passou a se chamar depois de ansiedade nuclear. O termo foi cunhado em 1975 pelo psicólogo americano Michael D. Newcomb, como uma forma de descrever a angústia nascida dos temores de uma guerra atômica.

Mesmo 60 anos depois da Crise dos Mísseis, o Relógio do Dia do Juízo Final editado pelo Boletim dos Cientistas Atômicos desde 1947 segue próximo da meia-noite, horário que simboliza o desastre nuclear. Na contagem mais recente, de janeiro de 2022, os ponteiros marcavam 100 minutos para a meia-noite. Os números, no entanto, datavam de um momento anterior ao início da guerra na Ucrânia.

Às vésperas de invadir o país vizinho, em 19 de fevereiro, o presidente russo, Vladimir Putin, comandou um exercício militar com mísseis de capacidade nuclear. O treinamento foi interpretado como um lembrete aos adversários do poderio da Rússia. Cinco dias depois, ao anunciar a invasão, Putin disse que quem interferisse na ação militar sofreria “consequências nunca antes vistas”. Dali três dias, em 27 de fevereiro, o líder russo determinou que as forças de defesa nuclear do país ficassem em alerta máximo . O Kremlin justificou a medida como resposta a“declarações agressivas” de países da Otan, a aliança militar ocidental.

Não está claro o que significa esse estado de alerta do sistema nuclear russo. Além disso, analistas consideram improvável que Putin lance um ataque atômico contra a Ucrânia. Do outro lado, a Otan afirmou reiteradamente que não enviará tropas para a guerra, mas já reforçou seu efetivo nos países orientais da aliança. O presidente americano, Joe Biden,afirmou nesta sexta-feira (11) que um ataque a um dos membros da Otan significaria a “Terceira Guerra Mundial”, mas descartou a possibilidade de um conflito nuclear em declarações anteriores.

Além da questão bélica, eventos relacionados a usinas ucranianas acenderam alertas de segurança nuclear . Chernobil, palco de um desastre em 1986 e hoje desativada, foi controlada pelos russos e há preocupações com as condições do local , já que ainda existem riscos de vazamento radioativo. Já a usina de Zaporizhzia , a maior da Europa, está sob domínio da Rússia depois que um prédio no seu terreno foi bombardeado e pegou fogo. Em ambos os casos, a Agência Internacional de Energia Atômica afirmou que não há perigo imediato.

A ansiedade nuclear no cérebro

Instintos ancestrais que sobreviveram ao processo de evolução associam incerteza com perigo, apontam numerosos estudos da neurociência. Diante dessa incerteza, o cérebro tem duas opções: lutar ou fugir.

Em situações de guerra, as opções de luta são limitadas para quem está fora do campo de batalha: o sujeito pode protestar publicamente ou acompanhar as notícias incessantemente – o chamado “doomscrolling”. Ambas as alternativas podem gerar um sentimento de impotência.

Lutar, no contexto do noticiário, envolve buscar mais informações a fim de tomar melhores decisões. Quando o indivíduo opta pela luta, acaba diante de um ciclo vicioso: ele vai atrás de mais notícias, que por sua vez trazem mais incertezas, desencadeando as reações do cérebro diante dela e assim sucessivamente. Segundo Paul Salkovskis, professor de psicologia da Universidade Stanford, isso se observou não só no noticiário de guerra atual, mas também durante os períodos mais graves da pandemia de covid-19.

“Estar em contato constante com as notícias pode trazer certo conforto momentâneo, sentimos que estamos informados e isso nos deixa menos ansiosos. Infelizmente, esse efeito desaparece rapidamente”, disse a psiquiatra Jacqueline Bullis, da Associação Americana de Ansiedade e Depressão, no blog da instituição .

“Quanto mais buscamos certezas sobre o que vai acontecer no futuro, mais ansiosos ficamos. Simplesmente porque é impossível ter certeza sobre crises que estão fora do nosso alcance”, afirmou.

O impacto nos jovens

Adolescentes e jovens adultos – em decorrência da própria idade e dos processos de formação de personalidade, cognição e percepção de mundo – são aqueles mais impactados pela ameaça de uma guerra nuclear.

Um estudo do Instituto Nacional de Saúde da Finlândia entrevistou 1.518 adolescentes e jovens adultos do país em 1991 acerca dos temores deles em relação à Guerra do Golfo, quando Irã, Iraque e Israel trocaram ameaças nucleares . Em 2004, os pesquisadores que conduziram o estudo reencontraram os entrevistados e chegaram a uma conclusão: a ansiedade nuclear aumenta o risco de desenvolvimento de problemas de saúde mental.

A experiência do temor nuclear aumentou o risco de desenvolvimento de transtornos mentais em 27,5% das mulheres e em 22,1% dos homens. Os sintomas mais frequentes foram ansiedade, depressão, pensamento neurótico, incapacidade de pensar a longo prazo e danos na autoestima. “A maturação cognitiva explica por que esses medos diminuem da adolescência para a vida adulta, mas o aumento do risco acontece mesmo assim”, concluíram os cientistas finlandeses.

Antes disso, em 1982, quando a Guerra Fria ainda estava acontecendo, a Universidade de Toronto, no Canadá, também realizou um estudo sobre o impacto mental da ansiedade nuclear. A conclusão foi a mesma: jovens e jovens adultos são os mais vulneráveis, e os temores podem aumentar o risco do desenvolvimento de casos de depressão, ansiedade e pensamento neurótico.

Os efeitos não se limitam a pessoas que estão geograficamente mais próximas da guerra. Os mesmos resultados foram encontrados na Colômbia em 1987, quando o psicólogo Rubén Ardila, da Universidade Nacional da Colômbia, entrevistou adolescentes e jovens adultos sobre seus temores acerca da ameaça nuclear.

“Essa investigação indica – pela primeira vez – que adolescentes e jovens do Terceiro Mundo [expressão usada durante a Guerra Fria para se referir a países em desenvolvimento] são psicologicamente afetados pela possibilidade de uma guerra nuclear, e essa influência é profundamente percebida em suas vidas”, afirmou Ardila.

Como lidar com os temores

A Ican, ONG global que luta pelo desarmamento atômico, publicou em seu site uma série de dicas para lidar com os temores causados pela ansiedade nuclear. As recomendações foram escritas por psicólogos e psiquiatras.

Se atenha aos fatos

A primeira dica da Ican é se ater aos fatos. A guerra nuclear não começou. Líderes e instituições no mundo todo estão trabalhando para garantir que ela nunca comece. “Tente lembrar desses dois fatos e tente acabar com a ansiedade”, diz o texto.

Foco na respiração

Quando se sentir ansioso, repare na sua própria respiração. Se ela estiver acelerada, tente acalmá-la. Há aplicativos para celular com exercícios para esse fim. Basta procurar pelos termos “Breathing” ou “Respiração” nas lojas de apps, as opções são variadas.

Entenda seus sentimentos

Aceitar os sentimentos de ansiedade é importante, diz a Ican. Anotá-los de alguma forma é uma ferramenta para conseguir vê-los com mais clareza e conseguir separar quais ansiedades vieram pelo temor nuclear e quais apareceram por outros fatores da sua vida. “Lidar com eles separadamente pode reduzir a ansiedade.”

Autocuidado é tudo

Acima de tudo, a Ican recomenda uma rotina de autocuidado. Refeições equilibradas, exercícios físicos, ar fresco e uma boa noite de sono. “Cuide de si mesmo e das pessoas que você ama.”

Como falar sobre o assunto

A Ican também lista algumas dicas para aqueles que vão falar dos temores nucleares com outras pessoas: entender as percepções pessoais dos outros sobre o que eles entendem por ameaça, deixar que os outros manifestem suas emoções e checar com o interlocutor como ele se sente ao fim da conversa.

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