A lei britânica que quer deportar imigrantes para Ruanda
João Paulo Charleaux
12 de maio de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h49)Governo de Boris Johnson aprova no Parlamento norma que prevê mandar para o país africano estrangeiros de qualquer nacionalidade que tenham pedido de asilo recusado. ONGs contestam medida na Justiça
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Primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, em visita a Helsinque
O Parlamento britânico aprovou no dia 28 de abril um ato normativo para deportar imigrantes ilegais de qualquer nacionalidade para Ruanda. O governo do país africano, situado a mais de 6.000 km de distância do Reino Unido, aceitou uma oferta equivalente a quase US$ 160 milhões (R$ 820 milhões em 12 de maio) para receber essas pessoas.
A medida segue uma lógica de “controle remoto”, que prevê o processamento de casos de imigrantes em situação irregular longe das fronteiras britânicas. Eventuais recursos e reclamações do deportado são analisados quando a pessoa já está fora do continente. Parlamentares de oposição temem que lacunas do texto permitam a deportação indiscriminada, o que pode afetar direitos, por exemplo, de vítimas de guerras como a da Ucrânia .
Neste texto, o Nexo mostra os dispositivos desse novo ato normativo, as justificativas do governo para sua adoção e as críticas feitas por parte de organizações de direitos humanos.
O texto se chama Nationality and Borders Act 2022 (ato sobre nacionalidade e fronteiras). Ele foi proposto em julho de 2021 pela deputada Priti Patel, do Partido Conservador, mesma legenda do primeiro-ministro Boris Johnson, e foi aprovado em 28 de abril de 2022.
O aspecto que mais chama a atenção é a possibilidade de que imigrantes que tenham tido a entrada recusada no Reino Unido (que inclui Inglaterra, País de Gales, Irlanda do Norte e Escócia) sejam deportados para Ruanda. Há um acordo por meio do qual o governo britânico paga US$ 160 milhões para que os ruandeses participem dessa operação.
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Organizações que se opõem à medida dizem que alguns aspectos normativos da medida são mantidos em segredo pelos dois governos, e podem engendrar violações ao direito internacional, razão pela qual o texto já está sendo contestado na Justiça. Essas organizações dizem que não se sabe exatamente de que maneira Ruanda vai lidar com os imigrantes.
A medida é aplicável ao que o governo britânico classifica como “pedidos de asilo inadmissíveis”. Ou seja: situações nas quais o candidato a asilo não preenche os requisitos mínimos exigidos para o reconhecimento desse status.
A palavra “asilo” é usada na Europa para se referir tanto ao asilo em si quanto ao refúgio, duas categorias legais que, com algumas nuances entre si, englobam, de maneira geral, pessoas que deixam seu país de origem alegando um fundado temor de perseguição por razões políticas, étnicas, religiosas ou outras, ou pela constatação de que, nesse país, há grave e generalizada violação dos direitos humanos.
Quando essa condição é reconhecida, o asilo é dado. Quando não, a entrada da pessoa pode ser rejeitada. Nesse caso, ela pode recorrer da negativa, ficando temporariamente no país enquanto o trâmite segue. Muitas vezes, a pessoa fica como ilegal e vive fugindo da imigração. Outras vezes é detida ou ainda enviada para um terceiro país.
Em todo caso, essa pessoa não pode ser devolvida a seu país de origem, no que se chama regra de non refoulement. O fato de o Reino Unido ter deixado a União Europeia em janeiro de 2020 complicou os trâmites burocráticos para mandar essa pessoa para qualquer país do bloco.
Refugiados e imigrantes são resgatados por ONG no mar Mediterrâneo
A solução proposta por Johnson e os parlamentares conservadores foi criar então um mecanismo de análise remota dos casos de rejeição, usando um país como Ruanda como local de processamento dos casos “inadmissíveis”. Dessa forma, a pessoa rejeitada pode apresentar contra-argumentos e contestações à recusa de admissão, mas o faz fora do território britânico.
Outra nova medida prevista no texto é o cancelamento sem aviso prévio da nacionalidade britânica. A medida não pode, por natureza, ser dirigida contra pessoas que tenham nascido no Reino Unido e não contem com outra nacionalidade, além da britânica, porque o direito internacional proíbe tornar uma pessoa simplesmente apátrida. Mas essa medida pode ser usada contra pessoas que tenham nascido em outro país e possuam dupla nacionalidade.
A justificativa dada pelo governo britânico é a de coibir redes de tráfico internacional de pessoas, que usam as brechas do sistema migratório para fazer dinheiro, empurrando imigrantes pobres e vulneráveis para países como o Reino Unido. Ao desbaratar essas cadeias, o governo Johnson diz que poderá lidar melhor com os pedidos realmente pertinentes.
Grupos de defesa dos direitos humanos, como o Detention Act e a Care4Calais , além do Sindicato dos Servidores Públicos do Reino Unido, estão contestando o ato normativo na Justiça. Eles pedem que o governo esclareça com maior transparência os critérios de deportação, caso a caso, e a condução desse trabalho em conjunto com o governo de Ruanda, que foi escolhido por ter aceitado primeiro a oferta, que também pode ser estendida a outros países no futuro.
Esses grupos consideram que o ato aprovado no Parlamento viola garantias legais estabelecidas pelo direito internacional relativas aos direitos dos imigrantes em geral e dos solicitantes de refúgio e asilo, em particular. Nesta quinta-feira (12), a Detention Act anunciou com destaque em sua página na internet: “Nós estamos levando Priti Patel aos tribunais”, em referência à parlamentar conservadora que assinou a proposição. A ONG está coletando doações para financiar o processo judicial.
Já o Sindicato dos Servidores Públicos, conhecido no Reino Unido pela sigla PCS, tem uma preocupação bastante específica, que foi explicitada pelo advogado da entidade, Paul O’Connor, em declaração ao jornal Financial Times: “Nós não queremos ver nossos membros envolvidos pessoalmente nessas situações, sujeitos ao trauma de fazer algo inaceitável . Nós pensamos que essa lei é desumana e viola o direito internacional”.
O premiê Boris Johnson já admitiu publicamente, ao discursar num evento em Southampton, no mês de abril, que as contestações judiciais à nova lei devem retardar a entrada em vigor da política de deportação para Ruanda. Ainda assim, ele promete seguir adiante e “get it done” (fazer isso), mesma expressão usada em sua campanha para sair da União Europeia.
O novo ato normativo divide os casos em dois grupos. O primeiro é de postulantes ao visto de asilado ou refugiado que entram pelos canais oficiais e apresentam a solicitação às autoridades. O segundo é o de imigrantes que só solicitam asilo uma vez que são interpelados ou detidos pelas autoridades migratórias.
Esse segundo grupo é formado principalmente por imigrantes que tentam chegar pelo mar, sobretudo imigrantes de países africanos e do Oriente Médio, que atravessam o Canal da Mancha, que separa o Reino Unido da França, em pequenos botes ou balsas, na primavera e no verão europeu. Alguns desses imigrantes também fazem um trajeto de entrada pela República da Irlanda (que é parte da União Europeia), que, por um acordo específico, não tem controle migratório com a Irlanda do Norte (que é parte do Reino Unido).
Numa das sessões do Parlamento britânico que tratou do tema, o deputado Stuart McDonald, do Partido Nacional Escocês, interpelou o diretor do departamento responsável pelas análises de pedidos de asilo no Reino Unido, Dan Hobbs, sobre o caso dos imigrantes ucranianos que chegam ao país fugindo da guerra iniciada em 24 de fevereiro, com a invasão russa.
“Vocês estão deixando aberta a possibilidade de que ucranianos que cruzem de Dublin [na República da Irlanda] para Belfast [na Irlanda do Norte] possam acabar em Ruanda”, disse o parlamentar escosses. O Reino Unido tem um esquema especial de vistos para ucranianos. Desde o início do conflito, em 24 de fevereiro, foram emitidas 95 mil autorizações de residência para cidadãos da Ucrânia no país.
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