A Faculdade de Direito da USP e a política nacional em 3 atos
Cesar Gaglioni
10 de agosto de 2022(atualizado 13/12/2023 às 11h07)Instituição que formou parte da elite brasileira esteve envolvida em momentos-chave do país desde a Primeira República
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A faculdade de Direito da USP, em São Paulo
A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo vai abrigar uma solenidade em prol da democracia na quinta-feira (11). No evento, será lida uma carta em defesa do sistema eleitoral brasileiro, alvo de ataques sistemáticos do presidente Jair Bolsonaro – que não é citado nominalmente. O documento reuniu mais de 900 mil assinaturas, incluindo de setores do empresariado.
O encontro ecoa um manifesto similar em repúdio à ditadura militar realizado na instituição em 1977. Fundada no século 19, a faculdade formou diversos membros da elite política e econômica do país (dos quais 12 exerceram o mandato de presidente da República). Nessa condição, foi palco de articulações ao longo de momentos-chave da política nacional.
Neste texto, o Nexo relembra a relação da faculdade e do cenário político brasileiro em três momentos.
A Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo de São Francisco, centro da capital paulista, foi fundada em 1827 por meio de um decreto assinado por dom Pedro 1º , à época imperador do Brasil. É, ao lado da Faculdade de Direito de Recife, a mais antiga instituição de ensino jurídico do país.
Em 1889, caiu a monarquia e foi instituída a República. Durante a maior parte do primeiro período republicano, que vigorou até 1930, o controle politico do país esteve nas mãos das elites de São Paulo e Minas Gerais, principais produtores agrícolas do país.
A formação dos herdeiros dessas elites ocorria no Largo de São Francisco. Sete presidentes do período conhecido como Primeira República foram formados pela Faculdade de Direito.
Em 1930, Getúlio Vargas, político consagrado do Rio Grande do Sul, deu um golpe de Estado ao lado das Forças Armadas alegando fraudes eleitorais e impediu a posse de Júlio Prestes, presidente eleito para suceder Washington Luís.
A partir daí, a São Francisco (como também é conhecida a faculdade) passou a exercer um papel de oposição ao governo Vargas, que perdurou até 1945 em sua primeira fase.
Anúncio de jornal sobre a Revolução de 1932
Dois anos depois do golpe de Vargas, políticos e militares de São Paulo formaram um movimento armado para derrubar o governo federal, afirmando que o país precisava de uma nova Constituição. Esse movimento ficou conhecido como Revolução Constitucionalista de 1932.
O movimento começou em 9 de julho de 1932 – data que é feriado estadual em São Paulo. Um dia depois de seu início, a São Francisco virou um posto de alistamento militar, formando o Batalhão Universitário.
Entre os líderes do movimento estava Waldemar Martins Ferreira, formado na faculdade e Secretário de Justiça de São Paulo na época. Os constitucionalistas entregaram as armas em outubro daquele ano, derrotados por Vargas.
Nos anos 1930, saíram das fileiras da São Francisco também muitos dos fundadores do integralismo , movimento nacionalista inspirado no fascismo italiano que teve como uma de suas principais referências Miguel Reale , que viria a se tornar um dos mais importantes professores da faculdade. Nessa mesma década, em 1934, é criadaa Universidade de São Paulo e a Faculdade de Direito passa a fazer parte dela.
No momento do golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura que durou até 1985, a USP era comandada pelo reitor Luís Antônio da Gama e Silva, ex-aluno e ex-professor da São Francisco. Ele viria a ser ministro da Justiça e signatário do Ato Institucional nº 5, que suprimiu liberdades civis no país.
Apoiador da ditadura, Gama e Silva colocou a Polícia Militar de São Paulo dentro dos campus da USP para perseguir e reprimir alunos e professores que eram considerados “subversivos”. Por integrar a universidade, o mesmo aconteceu na faculdade de direito.
“A forma violenta pela qual foram realizadas prisões de professores e alunos, a invasão e a depredação da Faculdade de Filosofia configuravam claramente a intenção de intimidar antes de investigar e não sofreram o mais leve reparo por parte do reitor”, diz o livro “O controle ideológico na USP (1964-1978)” , publicado pela Associação dos Docentes da USP em 1978 e reeditado em 2004.
Gama e Silva formou uma comissão para investigar os “subversivos” – opositores do regime – e fomentou a política do “dedo duro”, que dava prestígio interno aos denunciantes das “atividades suspeitas.” Apoiando a ditadura estavam também figuras como Alfredo Buzaid , professor de direito da USP que compôs o movimento integralista e que posteriormente foi ministro da Justiça e ministro do Supremo Tribunal Federal durante o regime militar.
Com as mudanças que aconteceram na USP como um todo, a faculdade de direito – agora também munida de professores e alunos mais jovens – passou a se flexibilizar e a fazer oposição à ditadura.
Em 1977, a São Francisco passou a encampar o movimento pela redemocratização do país. O evento que marcou a guinada foi a leitura da “Carta aos Brasieiros” pelo professor Goffredo da Silva Telles Jr em 1977, pedindo pelo Estado Democrático de Direito e pelo fim da ditadura. É a essa carta que o manifesto de 2022 faz referência.
“Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluido quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livremente pelos representantes do povo. […] A consciência jurídica do Brasil quer uma coisa só: o Estado de Direito, já.”
O Centro Acadêmico 11 de Agosto , grêmio estudantil da faculdade, participou do movimento “Diretas Já” em 1983, pedindo por eleições diretas. E, com o fim da ditadura dois anos depois, ex-alunos da Faculdade de Direito da USP tiveram papel importante na redemocratização do país. O mais notável dele foi Ulysses Guimarães (1916-1992), deputado federal por São Paulo, presidente da Câmara (1985-1989) e presidente da Assembleia Constituinte que deu origem à Constituição de 1988, em vigor até hoje.
Em 1992, o centro acadêmico também liderou uma manifestação em São Paulo que foi o gatilho para uma série de atos posteriores pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, o primeiro eleito pelo voto direto. Os protestos puxados por estudantes à época ficou conhecido como o movimento dos caras-pintadas.
Entre 2015 e 2016, membros da Faculdade de Direito da USP tiveram papel importante na articulação e concretização do impeachment da então presidente Dilma Rousseff – que foi substituída pelo seu vice, Michel Temer, coincidentemente formado pela São Francisco.
A então professora de direito penal e atual deputada estadual por São Paulo, Janaina Paschoal (PRTB), foi uma das autoras do pedido de impeachment contra Dilma pelas alegadas pedaladas fiscais, movimentos que teriam caracterizado improbidade administrativa. A peça foi escrita também pelos advogados Miguel Reale Júnior – professor da instituição e filho de Miguel Reale, um dos ideológos do movimento integralista – e Hélio Bicudo, ex-aluno da instituição e um dos membros fundadores do PT.
O evento foi simbólico para consolidar o movimento que culminaria na queda de Dilma. Nele, Paschoal foi enfática ao pedir que a Câmara abrisse o processo de impeachment o mais rápido possível.
Seis anos após o impeachment de Dilma, a faculdade voltará a sediar um evento que bota sob escrutínio um presidente da República. A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros” de 11 de agosto 2022 faz uma defesa das urnas eletrônicas, do sistema eleitoral e ataca as ameaças ao pleito que tem sido feitas sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro.
O documento, no entanto, não cita Bolsonaro nominalmente. As palavras da carta foram escolhidas a dedo para que o texto não ficasse com uma cara partidarizada e atraísse o maior número possível de adeptos.
“Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais Poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”
Além dos 837 mil signatários, o documento se destaca por ter apoio de empresários e banqueiros que, até então, vinham resistindo a condenar o golpismo presidencial. Patrocinadora de outros momentos cruciais da política nacional, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de Sâo Paulo) também preparou um manifesto que será lido no evento da São Francisco.
Ele foi endossado por líderes religiosos, artistas, pelo movimento negro e outras parcelas da sociedade civil que também se posicionam contra as ameaças golpistas de Bolsonaro.
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