As implicações das lacunas no plano de governo de Lula
Marcelo Montanini
25 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h44)Às vésperas do primeiro turno da eleição, campanha do ex-presidente decidiu não detalhar propostas. Cientistas políticos avaliam ao ‘Nexo’ os impactos da estratégia
Ex-presidente e atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva durante campanha eleitoral em Manaus, no norte do Brasil
Na reta final da eleição, a campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não apresentou a versão final do seu programa de governo ou detalhou propostas que vêm sendo citadas nos discursos e nos programas eleitorais de rádio e televisão do petista.
Segundo a CNN Brasil, a campanha de Lula, que lidera as pesquisas de intenção de voto, decidiu adiar o fechamento do plano de governo enquanto segue costurando a maior aliança possível. Antes, a ideia era publicar um documento aprofundando as diretrizes mas, agora, a apresentação só deve ocorrer após o fim do pleito. Com isso, a campanha do petista pretende angariar mais apoios na reta final.
A estratégia é diferente da campanha de 2002, a primeira em que Lula foi eleito presidente da República, na qual o PT apresentou plano detalhado para diferentes setores. Em 2022, oprograma protocolado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se limita a apresentar linhas gerais, fazer críticas ao governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) e resgatar iniciativas dos governos petistas entre 2003 e 2010. Não há adaptação à nova conjuntura social, política e econômica do país, nem detalhamento do que se pretende fazer.
Neste texto, o Nexo mostra as principais lacunas no plano de governo petista e conversa com cientistas políticos sobre elas. O entendimento é de que a estratégia pode serruim para a transparência com o eleitor, mas faz parte do jogo político e não deve prejudicar a campanha, visto que Lula já tem um legado a apresentar.
A economia é uma área sempre escrutinada em qualquer governo, mas, com o Brasil passando por um momento de inflação alta, juros elevados e aumento da fome e da miséria, a atenção ao tema aumenta. O petista, apesar de criticar a gestão do atual presidente, não apresentou propostas concretas para a área.
No documento, Lula afirma ser contrário à privatização da Eletrobras , dos Correios e da Petrobras. O petista também defende a revogação do teto de gastos, estabelecido em 2016 e já estourado pelo governo Bolsonaro, e propõe uma “reforma tributária solidária, justa e sustentável, que simplifique tributos e que os pobres paguem menos e os ricos paguem mais”.
Lula em São Paulo junto com os oito ex-presidenciáveis que declararam apoio à candidatura do petista ao Planalto
O ex-presidente defende a alteração da política de preços de combustíveis e do gás, “que considere os custos nacionais e que seja adequada à ampliação dos investimentos em refino e distribuição” e a redução da “volatilidade da moeda brasileira por meio da política cambial” para combater a inflação. Contudo, não explica como será feito.
O plano promete ainda um programa Bolsa Família “renovado e ampliado”, mas não diz em quais moldes e como será financiado. Guilherme Mello, coordenador do programa econômico de Lula, disse, em sabatina da CNN Brasil na quinta-feira (22), que o governo pretende enviar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para o Congresso, mas não deu mais detalhes.
Na propaganda eleitoral, a campanha petista cita a criação dos programas Empreende Brasil, que concede créditos a juros baixos para empreendedores, Desenrola Brasil, de renegociação de dívidas das famílias, e Brasil Sustentável, de combate ao garimpo e ao desmatamento ilegais. Não há mais informação sobre elas no plano de governo ou no site do petista.
Na educação, Lula diz que o país voltará a investir em educação de qualidade, fortalecendo a educação básica, da creche à pós-graduação. Ao longo do texto, cita algumas diretrizes como educação pública universal, gratuita, laica e inclusiva, em um misto de manifestação de interesse e críticas à gestão do atual presidente, mas não cita propostas ou como pretende superar o deficit de aprendizagem, por exemplo.
Lula em ato da campanha petista no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo
O programa do petista para a área da saúde se limita a destacar a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) e a retomada de políticas que já fizeram parte de gestões petistas, como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, mas não menciona em quais moldes serão os programas ou o compromisso com o financiamento do sistema.
Já na segurança pública, área cara ao bolsonarismo, o plano do ex-presidente diz que vai implementar e aprimorar o Susp (Sistema Único de Segurança Pública), sistema de integração dos órgãos de segurança pública, diz que vai valorizar o profissional e propõe uma nova política de combate às drogas, com foco na saúde do usuário. Não dá mais detalhes nem cita a questão do armamento .
Em um tema sensível para o petista, o da corrupção, o programa é vago. Ele destaca ações já realizadas durante o seu governo, como o fortalecimento dos órgãos de fiscalização e controle como a Polícia Federal, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e a Receita Federal, e a criação da CGU (Controladoria-Geral da União), mas não cita novas iniciativas para lidar com a questão.
As propostas de campanha funcionam como promessas e, portanto, se transformam numa espécie de contrato com a sociedade. Em tese, um governante, ao ser eleito, recebe um mandato para executar um programa e pode ser fiscalizado e cobrado por isso.
Às vésperas do primeiro turno, o petista lidera as pesquisas de intenções de votos. Segundo levantamento do Datafolha (BR-04180/2022) divulgado na quinta-feira (22), Lula registrou 47% das intenções de voto, enquanto o candidato à reeleição Jair Bolsonaro manteve os mesmos 33% do levantamento do dia 15 de setembro. A oscilação do petista aconteceu dentro da margem de erro da pesquisa, que é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Para entender a estratégia de Lula de não aprofundar as diretrizes do programa de governo, o Nexo conversou com dois cientistas políticos. São eles:
CARLOS MELO Já se deu muita importância para a escolha do plano de governo no passado, talvez no começo da redemocratização, mas isso foi perdendo importância ao longo do tempo. Porque os planos de governo passaram a ser peças de marketing, peças de publicidade. São normalmente genéricos e são bastante amplos. No caso do PT, especificamente, qualquer definição durante a eleição acaba sendo polêmica. Se você fizer, por exemplo, uma indicação para uma postura digamos fiscalista, liberal e etc., se apanha pela esquerda. Se, por outro lado, a indicação que você faz é uma indicação mais expansiva, de maior gasto, você agrada a sua base, mas certamente vai desagradar setores econômicos, do mercado. Então, encontrar o meio termo é muito difícil. Lula percebeu isso e a tendência dele é empurrar o quanto puder, trabalhar com ambiguidades para lá na frente se definir e, mesmo assim, eu ainda arriscaria dizer que o próprio governo terá essas ambiguidades.
O mais provável é que o Lula tenha dentro do governo personalidade de tendências opostas, como foi, por exemplo, no primeiro governo onde ele tinha o [Antonio] Palocci com o Marcos Lisboa, o [Henrique] Meirelles no Banco Central, mas tinha no BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] o Carlos Lessa, tinha o Guido Mantega. Tinha na sua assessoria especial o Delfim Netto e o Luiz Gonzaga Belluzzo. Essa ambiguidade existe no plano de governo e certamente existirá no próprio governo. Ainda que num primeiro momento ele dê maior proeminência, dê maior importância para uma das linhas, ele vai ter que escolher. Mas primeiro ele vai precisar ganhar a eleição.
HELGA ALMEIDA Há críticas dos opositores nesse sentido de que há lacunas, diferente um pouco do Ciro [Gomes, do PDT], que tem a carta pronta. Mas eu acho que tem algumas explicações para isso: as pessoas sabem do legado das políticas públicas de Lula. Então, não é de total desconhecimento da população o que ele pretende, se for eleito. As pessoas sabem mais ou menos como o projeto vai correr se ele formar governo em 2023. Por outro lado, e tem a ver também com essa construção da coalizão, penso que Lula está esperando para ver como vai ser, por exemplo, a composição do Congresso. Suponho que ele não queria se comprometer com uma agenda fechadinha sem saber quem serão os parlamentares, com quem ele vai lidar dentro do Congresso ou qual vai ser a base dele.Não acho que seja uma campanha de cheque em branco, afinal, as pessoas sabem quem é o Lula e as pessoas sabem o que ele defende, enquanto um governo social-democrata.
CARLOS MELO Os problemas de não apresentar é que, por um lado, você tem uma ambiguidade e todos podem acreditar no que quiserem, supor que o governo será ‘assim ou assado’, mais próximo do que cada um gostaria que fosse. O inverso também é verdadeiro: a desconfiança de todos os setores – esquerda, direita, centro, fiscalistas, monetaristas e expansivistas heterodoxos – que começam a cobrar também. E o candidato vai andando na corda bamba de sombrinha, vai tentando se equilibrar nessa ausência. Ganha mais ou perde mais quando não apresenta? Isso vai depender do tamanho das pressões, das condições atmosféricas da economia, uma economia em maior ou menor crise que exige mais ou menos definição. Vai depender, é claro, da habilidade do político, da habilidade discursiva do político. Como disse o Caetano [Veloso] numa canção: ‘você diz a verdade e a verdade é seu dom de iludir’. Enfim, dizer a verdade, mas tentando iludir a todos tanto quanto possível.
No caso de Lula, ele ganha mais na medida que ele não é pressionado, que ele não é apertado. Em 2002, havia um negócio chamado ‘Lulômetro’ [modelo matemático criado por Daniel Tenengauzer, analista do banco de investimentos Goldman Sachs, que relacionava a previsão da cotação do dólar ao desempenho eleitoral de Lula]. Essas indefinições faziam com que o dólar subisse. Era uma pressão. O mercado financeiro tinha uma pressão, uma força muito grande então. Hoje já não é bem assim. Você vê que o mercado financeiro nessa eleição talvez tenha se voltado muito mais para o cenário externo, para as questões dos Estados Unidos, China, inflação, petróleo , conflito Rússia e Ucrânia e menos para o Brasil. Então, a pressão foi muito menor. Ele está chegando no final do primeiro turno sendo infinitamente menos pressionado do que foi em 2002. Ele conseguiu chegar até aqui sem precisar apresentar nada de mais claro. Para a transparência do processo é um defeito. Mas é do jogo da política.
A cobrança [sobre detalhamento do plano de governo] é maior evidentemente sempre na economia, mas claro que também nas três grandes áreas das políticas públicas: educação, saúde e segurança, e isso também é fundamental. Então, eu colocaria quatro áreas que cobrem quase todo o governo.
HELGA ALMEIDA Eu não acho que exista um problema de não apresentar um plano detalhado. Há um plano geral que já foi apresentado pelo Lula e pelo partido. Existem diretrizes nas políticas públicas de educação, de saúde, isso já colocado por ele, nas transferências de renda. Mas existem detalhes que vão ter que ser decididos mais à frente porque isso vai depender das composições que forem feitas e do que se sentir que vai andar no Parlamento. Então, um detalhamento nesse caso é de se esperar que vá ser delineado, se conseguir primeiro vencer o pleito, e depois a partir da composição do Parlamento, a partir do que pode ser feito dentro do Congresso. Não adianta fazer promessas detalhadas em um plano de governo sabendo que você pode, por exemplo, ter um Parlamento bastante duro e não conseguir passar aquela sua agenda.
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