O voto de cabresto na campanha eleitoral de 2022
Marcelo Montanini
09 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h45)Diversos casos de empresários coagindo funcionários para votar em determinado candidato nas eleições estão sendo investigados. Episódios remetem a práticas da Primeira República
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Mesário instalando urnas eletrônicas que serão usadas nas eleições presidenciais 2022
Casos de empresários coagindo funcionários ou fornecedores a votar em Jair Bolsonaro (PL) se tornaram públicos durante a campanha eleitoral de 2022 e, sobretudo, neste segundo turno da disputa do presidente com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Embora esses ilícitos eleitorais não sejam novidades, os episódios remetem ao voto de cabresto da Primeira República (1889 a 1930) e estão sendo investigados pelo Ministério Público do Trabalho.
Neste texto, o Nexo explica o que é voto de cabresto e como ele é tipificado em 2022, segundo um especialista em direito eleitoral.
O voto de cabresto é aquele em que o eleitor escolhe um candidato por determinação de alguém com poder, normalmente um patrão, um chefe político ou um cabo eleitoral influente. Isso remete à Constituição de 1891 que liberou o voto direto (apenas masculino), porém não secreto. Anteriormente, o voto era algo restrito às elites.
À época, os grandes proprietários de terra, que eram as autoridades políticas e econômicas de diversas regiões, passaram a controlar o voto popular por meio do abuso de autoridade, compra de votos ou até coerção física. Com o passar do tempo, o voto se tornou secreto e as práticas também se adaptaram.
Atualmente, essa ferramenta de controle do voto alheio pode ser percebida por meio da coerção ou pressão psicológica impostas por patrões aos funcionários, com ameaça de demissão ou promessa de bônus em dinheiro em troca de votar em determinado candidato. Trata-se de assédio eleitoral, uma espécie de voto de cabresto moderno.
A poucas semanas das eleições de 2022, episódios de assédio eleitoral se tornaram públicos. Novos casos vieram à tona desde a segunda-feira (3), primeiro dia de campanha para o segundo turno da eleição presidencial, que ocorre em 30 de outubro.
Alguns deles podem configurar crimes eleitorais, como abuso de poder econômico ou abuso de poder político ou compra de votos, segundo avaliou ao Nexo Bruno Rangel Avelino, professor de direito eleitoral do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e membro-fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).
Em mensagens num grupo de WhatsApp reveladas pelo site Metrópoles em 17 de agosto de 2022, o empresário José Koury, proprietário do shopping Barra World, no Rio de Janeiro, cogitou oferecer bônus aos funcionários que apoiassem Jair Bolsonaro. Um outro empresário do grupo alertou que isso poderia ser enquadrado como compra de voto.
Segundo Avelino, dar bônus a funcionários em troca de votos pode ser enquadrado na Lei 9504/97 (Lei das Eleições), cujo artigo 41-A estabelece o crime de compra de votos .
A fazendeira Roseli D’Agostini Lins, da Bahia, defendeu que empresários “ demitam sem dó ” os empregados que votassem em Lula – ainda no primeiro turno. O Ministério Público do Trabalho investiga o caso, que ocorreu em 26 de agosto de 2022. Ela assinou um termo circunstancial de ocorrência e gravou um vídeo se desculpando . “Assédio eleitoral é crime, nenhum empregador tem o direito de intervir no voto de seus empregados”, disse.
Duas empresas do Rio Grande do Sul, a Stara, uma fabricante de máquinas e implementos agrícolas, da cidade de Não-Me-Toque, e a Extrusor, companhia do setor de plásticos, de Novo Hamburgo, são suspeitas de ameaçar fornecedores e empregados com cortes de investimentos e fechamento de postos de trabalho caso Lula seja eleito. A Defensoria Pública da União e o Ministério Público do Trabalho investigam os dois casos .
A Stara, divulgou comunicado na segunda-feira (3) informando que reduzirá em 30% o orçamento de 2023 se o petista vencer. Um dos sócios da empresa é o vice-prefeito da cidade de Não-Me-Toque, Gilson Trennepohl (UB-RS) – que é um dos dez maiores doadores da campanha de Bolsonaro. O diretor-presidente da empresa, Átila Trennepohl, filho de Gilson Trennepohl, confirmou o comunicado, mas disse que o conteúdo não configura como ameaça . “Não acreditem em fake news que falam que a Stara vai demitir. Isso não é verdade. Não é isso que a Stara passou ao mercado e muito menos queremos coagir pessoas a votar no A ou no B”, disse.
Já a Extrusor enviou uma carta na terça-feira (4) a fornecedores informando que passará a funcionar apenas de forma virtual, cortando contratos no comércio local caso o ex-presidente Lula seja eleito. Procurada por veículos de comunicação, a empresa não se manifestou sobre o episódio.
A Concrevali, empresa do setor de construção de Jardim Alegre, no Paraná, ameaçou demitir 30% de seus funcionários caso Lula saia vitorioso do segundo turno. Procurada pelo Painel S.A. da Folha de S.Paulo, a empresa disse que alguns de seus parceiros romperam contratos após o resultado do primeiro turno. No entanto, negou a intenção de intimidar seus funcionários. O MPT do Paraná vai apurar o caso.
Lula e Bolsonaro em aparições no horário eleitoral de 2022
Outro caso de coação de funcionários foi identificado em São Miguel do Guamá, no Pará. Na terça-feira (4), o empresário Maurício Lopes Fernandes Júnior, conhecido como “Da Lua”, do ramo de tijolos e telhas foi filmado induzindo trabalhadores a votarem no atual presidente. Ele disse que, se Lula for eleito, suas três empresas irão fechar e ofereceu R$ 200 para cada funcionário se Bolsonaro for eleito. O Ministério Público do Trabalho investiga o caso. Procurado por diversos veículos, ele não se manifestou.
Uma funcionária do setor de recursos humanos da empresa varejista Ferreira Costa no Recife, em Pernambuco, foi demitida nesta quarta-feira (5) por ameaçar demitir funcionários que são apoiadores do ex-presidente Lula. O MPT de Pernambuco disse que vai apurar as responsabilidades da empresa no ocorrido. A empresa afirmou que não compactua com atitudes ofensivas ou discriminatórias. Ela apagou a rede social onde fez a publicação e não se manifestou.
Para Avelino, esses casos podem ser enquadrados nos crimes de abuso de poder político e de poder econômico , que constam no artigo 22 da Lei Complementar 64/90. Afinal, o empresário estaria usando a estrutura da empresa e a pujança econômica para coagir empregados a votar em determinado candidato.
“Seria abuso econômico porque é a empresa se valendo da capacidade econômica para contratar ou demitir. E abuso político porque o empresário possui ascendência hierárquica sobre o funcionário”, afirmou Avelino.
Diante da quantidade de casos, o MPT emitiu uma nota reforçando que a concessão ou a promessa de benefício ou vantagem em troca do voto, assim como o uso de violência ou de coação para influenciar o voto são crimes eleitorais, previstos nos artigos 299 e 301 do Código Eleitoral .
Ainda no primeiro turno, o empresário paulista Cássio Cenali humilhou uma beneficiária de suas marmitas, a faxineira Ilza Ramos Rodrigues, que disse votar em Lula. Após o vídeo gerar críticas em 11 de setembro de 2022, Cenali se desculpou pelo que considerou uma infelicidade e disse estar arrependido .
Para Avelino, o caso ocorreu entre dois eleitores e se enquadraria em um crime de injúria ou de difamação, mas não crime eleitoral.
Segundo o jornal Estadão, um boiadeiro eleitor de Lula foi alvo de boicote por parte de fazendeiros do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, após enviar um áudio por Whatsapp a um amigo bolsonarista em tom de brincadeira na segunda-feira (3). Depois disso, áudios com ofensas e pedidos de boicote começaram a circular em grupos de fazendeiros da região. O boiadeiro também foi aconselhado por um fazendeiro a colocar a bandeira do Brasil e adesivos de Bolsonaro no carro. A base ruralista é um dos principais grupos de apoio do atual presidente, junto com a base evangélica.
Denúncias de assédio eleitoral no ambiente de trabalho podem ser feitas de forma anônima à Ouvidoria do Ministério Público do Trabalho, em sindicatos e no Ministério Público Federal . Mensagens pedindo a trabalhadores que façam denúncias por um email têm circulado nas redes sociais, mas a Procuradoria-Geral do Trabalho informou que a campanha não é oficial .
Apesar da quantidade de casos que vieram à tona, essa prática ilegal não é uma novidade e corrobora para minar a democracia. Uma pesquisa encomendada pela Associação de Magistrados Brasileiros após a eleição de 2010 mostrou que 43% dos eleitores conheciam casos de compra de votos.
Quatro anos depois, uma pesquisa do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sobre as eleições de 2014 mostrou que a compra de voto ainda é uma realidade no Brasil , com 28% dos entrevistados revelando ter conhecimento ou testemunhado a prática. Ademais, o Ministério Público Federal abriu diversas investigações de casos de compra de votos e abuso de poder econômico relacionado às eleições de 2018, porém essas tramitam em segredo de justiça.
Todos esses casos têm a mesma essência autoritária de cerceamento da liberdade de escolha, em que uma pessoa com maior poder aquisitivo se julga no direito de controlar o direito de escolha de uma pessoa com menor poder aquisitivo, o que aponta a uma versão moderna do voto de cabresto, segundo o professor de direito eleitoral do IDP.
“A democracia tem como pressuposto liberdade de escolha do voto. O povo é chamado à escolha política e se não for livre, não é democrático. O povo passa a ser mero instrumento para legitimação. Condutas como essas minam a democracia aos poucos”, afirmou Avelino.
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