A seca histórica que mergulha a Somália na fome
Marcelo Montanini
28 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h52)Sem chuva há mais de dois anos, país está imerso em uma grave crise de insegurança alimentar. Grupo terrorista que controla parte da nação africana diz que situação é um teste de Alá
Temas
Compartilhe
Mulher somali com os filhos passando perto das carcaças de seus animais mortos após secas severas perto de Dollow, região de Gedo, na Somália
A Somália passa por um período de seca que pode trazer um quadro de fome severa e ultrapassar os números de 2011, quando 260 mil pessoas morreram em consequência da falta de acesso a alimentos. Atualmente, cerca da metade dos 16,3 milhões de habitantes do país vivem em situação de insegurança alimentar.
A grave situação da nação africana foi causada principalmente por um histórico de problemas políticos, econômicos e naturais, que culminaram nessa catástrofe humanitária.
Neste texto, o Nexo explica a situação da fome na Somália e apresenta o histórico de instabilidade política do país.
A Somália foi colônia do Reino Unido e da Itália e conquistou a independência em 1960. Mas, nove anos depois da formação do primeiro governo, o então presidente Abdirashid Ali Shermarke foi assassinado. O episódio foi seguido por um golpe militar liderado pelo major-general Mohamed Siad Barre, que governou o país de 1969 a 1991. Durante a Guerra Fria, o país teve uma relação estreita com a União Soviética.
Em 1991, um grupo de chefes militares chamados de Senhores da Guerra e diferentes clãs do país deram um golpe em Barre. Desde então, a Somália vive uma guerra civil intermitente. Diversos governos civis interinos foram instalados na tentativa de pacificação, sem sucesso.
Em meados dos anos 2000, milícias islâmicas chamadas de União de Tribunais Islâmicos, cujo braço armado é o grupo Al-Shabab, passaram a ganhar terreno e, em 2006, chegaram a tomar a capital somali, Mogadíscio. Forças da ONU e de países vizinhos intervieram. Mas o Al-Shabab continua controlando alguns territórios. Ao longo dos anos, o grupo se fortaleceu e criou laços com a Al-Qaeda.
Policiais e militares do lado de fora de hotel após um ataque do Al-Shabab, ligado à Al Qaeda, em Mogadíscio, na Somália
O grupo realiza constantes saques e assaltos a missões humanitárias e ataques a civis, o que torna mais difícil a ajuda em momentos de crise aguda como a atual.
A Somália é o país africano localizado mais ao oriente do continente numa região conhecida como Chifre da África, uma das mais pobres e violentas do mundo que inclui ainda Etiópia, Eritreia e Djibuti. Essa região toda enfrenta a pior seca dos últimos 40 anos.
Desde 1991, o país vive uma turbulência interna, com disputas entre facções pelo poder. Forças da ONU (Organização das Nações Unidas) e de países vizinhos intervieram diversas vezes nos conflitos, mas, até hoje, a instabilidade política é a regra. O intrincado histórico de confrontos dentro da Somália fez o país ser considerado por especialistas um Estado falido.
O país é uma República Federativa Parlamentarista, cujo presidente Hassan Sheikh Mohamud é o chefe de Estado, e Hamza Abdi Barre, o chefe de governo. Não há eleição direta pela população. Eles foram eleitos pelo Parlamento. A Somália não é considerada uma democracia e os abusos dos direitos humanos ocorrem regularmente. Além disso, o país é tido como um dos mais corruptos do mundo , atrás apenas da Síria e do Sudão do Sul.
Mais recentemente, a guerra entre Rússia e Ucrânia desencadeou o caos econômico na nação africana, com o aumento dos preços dos alimentos e o desabastecimento de grãos, dos quais o país é cerca de 90% dependente. Além disso, a seca afetou diretamente a pecuária – estima-se que tenham morrido cerca de 3 milhões de cabeças de gado por causa das condições climáticas.
A ONU afirmou que serão necessários US$ 2,26 bilhões para evitar mortes devido à fome na Somália até ao início de 2023.
Há mais de dois anos não chove na Somália. Devido à falta de água, à baixa produtividade agrícola e à falta de renda, 1,1 milhão de pessoas já tiveram que se deslocar internamente em busca de melhores condições de vida, a maioria mulheres e crianças. Somado à seca severa, a guerra entre Rússia e Ucrânia tem prejudicado a vida da população, com o aumento dos preços dos produtos.
A Somália é um dos países que mais preocupam as organizações que monitoram a segurança alimentar no mundo. Isso porque, hoje, cerca de 49% da população – ou seja, 7,8 milhões de pessoas de uma população de 16,3 milhões – vive em situação de emergência alimentar.
Esses índices colocam a Somália na fase 4 do IPC (Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar), o que significa que o país está em situação de emergência alimentar. Porém, as agências de monitoramento de segurança alimentar avaliam que até dezembro de 2022 seja decretada a fome no país africano.
A fome é declarada quando mais de 20% da população de uma região sofre com a extrema escassez de alimentos e a desnutrição aguda afeta mais de 30% da população.
A ONU afirmou que serão necessários US$ 2,26 bilhões para evitar mortes devido à fome na Somália até o início de 2023.
O canadense Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé, afirmou ao Nexo em 2021 que “as mudanças climáticas podem funcionar como um ‘ multiplicador de ameaças ’ para os conflitos armados”. “Eventos climáticos extremos, assim como mudanças graduais, podem exacerbar condições sociais e econômicas subjacentes que, por sua vez, aumentam o risco de convulsões e de violência.”
Muggah explicou que a restrição do acesso à água e à terra faz crescer a disputa e pode levar à violência. Além disso, a privação também pode levar à migrações massivas – dos assim chamados refugiados climáticos – com efeitos desestabilizadores. A variação demasiada do clima, com secas, inundações e ciclones, também pode provocar choques econômicos e aumentar o desemprego, fazendo crescer também o recrutamento pelos grupos armados.
No centro dessa crise também está o grupo terrorista islâmico, Al-Shabab. Estima-se que cerca de 740 mil pessoas que enfrentam a seca vivem em áreas sob o controle dos extremistas islâmicos.
O controle do Al-Shabab em grandes partes do sul e do centro da Somália, região mais duramente atingida pela seca e pela fome, contribuiu para as mortes causadas pela fome em 2011, pois impediu os deslocamentos tanto da ajuda humanitária quanto das pessoas que sofriam com a insegurança alimentar aguda nessas áreas.
Em setembro de 2022, o grupo afirmou que a fome era um teste de Alá e “resultado dos nossos pecados e transgressões”.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto dizia que a ONU afirmou que seriam necessários US$ 2,26 milhões para ajudar a combater a fome na Somália. Na verdade, o valor é US$ 2,26 bilhões. A informação foi corrigida às 18h30 do dia 27 de dezembro de 2022.
NEWSLETTER GRATUITA
Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia
Gráficos
O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você
Navegue por temas