As perspectivas para políticas de gênero e raça no novo governo
Mariana Vick
03 de novembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h50)Pesquisadores falam ao ‘Nexo’ sobre as políticas elencadas sem detalhamento por Lula e avaliam potenciais conflitos com um Congresso mais conservador e aliados necessários para a governabilidade
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Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito no domingo (30) para o terceiro mandato como presidente com propostas que se propõem a enfrentar o racismo e a violência contra as mulheres no Brasil, buscar a equidade de gênero e racial nas políticas públicas e montar uma equipe de governo diversa.
Eleito com apoio de uma frente ampla de partidos e movimentos sociais que se juntaram à candidatura do PT contra o atual presidente, Jair Bolsonaro, Lula irá governar a partir de 2023 sob forte pressão de aliados, que devem disputar cargos no governo e a condução dessas políticas públicas, privilegiadas em governos anteriores do partido.
O Nexo explica como questões raciais e de gênero aparecem no programa de governo apresentado por Lula na campanha de 2022 e ouve especialistas sobre o que esperar desses compromissos no cenário que se desenha no pós-eleição.
Lula apresentou no plano de governo enviado ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em agosto propostas para combater a discriminação de mulheres e negros no Brasil, enfrentar a violência racial e de gênero e criar novas políticas para essas populações, com destaque para áreas como segurança pública, saúde e assistência social.
Em crítica ao governo de Jair Bolsonaro, que via de regra reduziu as medidas criadas para esses grupos nos últimos anos, o plano diz que “mulheres, negros e jovens padecem com o desmonte de políticas públicas, de modo a reforçar discriminações históricas”. O texto também menciona os povos indígenas — que devem ganhar um ministério específico —, os quilombolas e a população LGBTI+.
Mulheres indígenas dão as mãos em protesto em frente ao Congresso Nacional, em Brasília
Lula afirma que as políticas de segurança pública devem priorizar “a prevenção, a investigação e o processamento de crimes e violências” contra mulheres e a juventude negra. Também propõe a criação de medidas que revertam o que chama de “política atual de genocídio” negro do Estado brasileiro, incluindo a violência policial e o “superencarceramento” de jovens.
Do ponto de vista mais amplo, diz que “é imprescindível a implementação de um amplo conjunto de políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo estrutural” no Brasil. Para isso, diz que é preciso enfrentar a pobreza, a fome e as desigualdades, além de garantir ações afirmativas.
84,1%
das vítimas da letalidade policial no Brasil são negras, segundo dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
67,5%
dos presos no Brasil são negros, segundo a mesma publicação
54%
é a porcentagem da população negra do Brasil, unindo pretos e partos, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
Para as mulheres, o plano propõe a equidade salarial, o incentivo da participação feminina “na ciência, nas artes, na representação política, na gestão pública e no empreendedorismo” e o fortalecimento de políticas do SUS (Sistema Único de Saúde) de prevenção de doenças — no horário eleitoral, Lula citou o câncer de mama e o câncer de colo de útero como exemplos.
Criança é vacinada contra covid-19
“Devemos enfrentar a realidade que faz a pobreza ter o ‘rosto das mulheres’, principalmente ‘das negras’, lhes assegurando a autonomia”, acrescenta o texto. “Investiremos em programas para proteger vítimas, seus filhos e filhas, e assegurar que não haja a impunidade de agressões e feminicídios.”
O plano dá poucos detalhes de como implementar essas políticas. Em certo ponto, também critica a “discrepância da representação feminina e negra nas instituições do país” e propõe uma reforma política que fortaleça a democracia representativa e amplie os instrumentos de participação social, mas não menciona possíveis medidas.
Para os povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, o programa diz que o novo governo irá assegurar a posse de suas terras e impedir atividades predatórias — setores como o garimpo ganharam espaço no noticiário nos últimos anos por ocupar ilegalmente territórios indígenas, por exemplo.
O plano de governo de Lula mostra uma visão de governo diferente da que Bolsonaro teve nos últimos quatro anos, ao desprezar medidas para combater desigualdades, na visão de Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília). “[O texto] reconhece que o Estado brasileiro tem responsabilidade com as mulheres”, disse.
O governo Bolsonaro foi marcado por retrocessos em áreas como segurança alimentar, habitação e combate à violência policial, que prejudicou a população negra, por exemplo. Para as mulheres, cortou recursos orçamentários. No caso dos povos indígenas, paralisou a demarcação de terras e os deixou à deriva na pandemia de covid-19.
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Biroli afirma que um diferencial do programa do novo governo é relacionar as desigualdades de gênero a esses impactos concretos. “Existe uma tendência de se tratar as questões de gênero como questões de disputa moral. Elas são, mas, na vida concreta, se atrelam também à experiência das desigualdades, carências e violências”, disse ao Nexo .
Apesar disso, isso não significa que não haverá resistência a novas medidas, segundo ela. Com a eleição de um Congresso Nacional mais conservador e o bolsonarismo fora do Executivo, é provável que haja contestações a medidas adotadas pelo PT no Legislativo e do Judiciário, onde grupos conservadores podem entrar com ações judiciais, da mesma forma que a esquerda fez no governo Bolsonaro.
Para Luiz Augusto Campos, professor do Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), o espaço dado no plano a temas como combate ao racismo é importante, mas está distante do que se espera.
Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional para votação de vetos e projetos
“Lula deu até certa centralidade à questão racial no seu programa e em seus discursos, mais do que em 2002 [ano em que ganhou a primeira eleição para presidente], mas essa centralidade ainda está aquém do tamanho que a questão ganhou no debate público”, disse ao Nexo . “No último debate da TV [antes do segundo turno], por exemplo, um dos temas possíveis de discussão era racismo, mas nem ele nem Bolsonaro o escolheram.”
Campos também disse que falta o governo Lula detalhar como pretende implementar propostas como combate à letalidade policial e ao superencarceramento. Fora promessas como a recriação da Secretaria de Igualdade Racial (criada nos governos do PT, mas extinta depois) e um novo Ministério dos Povos Originários, há poucas propostas práticas, segundo ele.
Além das propostas do plano de governo, Lula incorporou no rol de compromissos para 2023 ter número igual de ministros homens e mulheres. A promessa, adotada depois da votação do primeiro turno, no dia 2 de outubro, é originalmente de Simone Tebet, candidata do MDB que ficou em terceiro lugar e ingressou na campanha de Lula.
Biroli disse considerar a paridade nos ministérios “um compromisso público com a igualdade”. Para Campos, ela é importante para que as políticas públicas “levem em conta os problemas vivenciados pela população”. “Os grupos oprimidos de gênero e raça são os que mais dependem da ação estatal, mas a implementação dessas políticas é feita por gestores e políticos que são, na maioria, homens brancos.”
Simone Tebet, Lula e Marina Silva em campanha em Minas Gerais
A paridade de gênero no alto escalão do governo é adotada em países como Suécia, Moçambique e Chile. Lula e o PT já defenderam esse tipo de medida antes e há entre os nomes cotados para os ministérios mulheres como Simone Tebet e Marina Silva (Rede). Apesar disso, Biroli considera que as negociações não serão fáceis entre o governo e possíveis aliados.
“A pressão dos partidos é em sentido oposto [da paridade de gênero]. Quando Dilma Rousseff [ex-presidente do PT] ganhou a eleição para o primeiro mandato, ela prometeu e não conseguiu. Teve um ministério com 40% de mulheres. Mas, conforme a crise política avançou, no segundo governo, ela precisou fazer uma reforma ministerial e diminuiu essa participação”, contou.
Para ela, Lula deve tentar construir alianças que permitam o máximo possível de estabilidade e governabilidade, dado o número reduzido de aliados do PT no Congresso e a situação de crise econômica e política do país. “Podemos esperar que haja tensão entre o compromisso com a paridade e a pressão dos partidos para indicar homens. Mas não espero nada menos que a paridade”, ponderou.
Da esquerda para a direira: Geraldo Alckmin, Marcelo Castro, Wellington Dias e Gleisi Hoffman
Parte do impasse mencionado por Biroli pode ser visto nas fotografias da equipe de transição do governo de Bolsonaro para Lula. Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente eleito e coordenador do governo de transição, reuniu-se nesta quinta-feira (3) com o relator do Orçamento de 2023, o senador Marcelo Castro (MDB-PI). Com eles, havia um time de apenas uma mulher, Gleisi Hoffman, presidente do PT, e nenhum negro.
Lula não assumiu o compromisso de paridade racial nos ministérios. Apesar disso, Campos disse ao Nexo que o governo poderia se comprometer com um percentual mínimo de ministros não brancos. “Estamos distantes [de ter 50% de ministros negros ou indígenas], mas esse já seria um grande avanço”, disse.
Fora as disputas sobre o comando dos ministérios, o novo governo deve dar espaço para as agendas de equidade racial e de gênero nos chamados conselhos de políticas públicas, invenção da Constituição Federal de 1988 para promover a participação social que teve destaque nos governos do PT e foi abandonada no governo Bolsonaro.
Conselhos nacionais de políticas públicas são órgãos colegiados que têm representantes do governo e da sociedade civil. A ideia por trás de sua existência é fazer com que associações, movimentos sociais, estudiosos e empresas estejam mais próximos do governo federal, seja aconselhando, seja decidindo sobre políticas públicas.
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Entre os principais conselhos do governo federal, estão os das áreas de educação, saúde, meio ambiente e segurança alimentar. Em 2019, no primeiro ano de seu mandato, porém, Bolsonaro extinguiu por decreto todos os conselhos e órgãos colegiados (comitês, comissões, grupos de trabalho etc.) da administração federal que haviam sido criados por decretos administrativos ou que, tendo sido criados por lei, não tivessem atribuições previstas.
O PT ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade naquele ano no Supremo Tribunal Federal, e a corte, com decisão liminar (provisória), limitou o alcance do decreto. Com isso, em vez de extinguir conselhos, o governo federal tomou medidas como a de alterar seus integrantes e suas funções. Na prática, as medidas reduziram a força dos colegiados.
Retomadas, essas conferências “podem ser uma forma de construir pontes e espaço dentro do Executivo para os movimentos sociais”, disse Campos. Biroli disse que espera que o retorno de incentivos à participação social aumente o controle social e a transparência do governo. “[A retomada do diálogo com os movimentos] não é um fim em si”, disse.
Raoni Metuktire, líder caiapó, à esquerda, e Joênia Wapichana, à direita, em reunião no Congresso
“De novo, temos que observar como isso vai se dar em um governo que se constitui em um momento delicado da história do país”, acrescentou. Para ela, a retomada do diálogo entre governo e movimentos sociais deve criar um quadro parecido com o do governo Dilma, quando as pressões de um lado disputaram com outras, mais conservadoras, da coalizão do governo.
“É preciso frisar que o debate dos movimentos sociais sobre a relação com a política mudou muito”, ponderou Campos. “Quando Lula usou as conferências, o movimento negro tinha um trabalho avançado de advocacy junto ao Executivo. Agora, é mais avançado ainda — está nospartidos, no Legislativo, no debate público. Fica difícil saber se as conferências vão ser capazes de responder às demandas a tempo.”
Outro grupo que pode contribuir para a equidade racial e de gênero na gestão pública a partir de 2023 é o da burocracia estatal, ou seja, os funcionários dos órgãos do governo que não necessariamente estão nos primeiros escalões, mas fazem parte da máquina pública e contribuem para a formulação de políticas, como os técnicos.
Segundo Biroli, em governos anteriores do PT a ação desses agentes públicos contribuiu para a transversalidade dos temas de gênero e raça em políticas que não tratam diretamente desses temas, como a de saúde. “Agendas como a da saúde integral da mulher ganharam espaço [nos governos anteriores], de pontos específicos, como a humanização do parto, até mais amplos, como a garantia do direito ao aborto nos casos permitidos por lei”, disse.
Homem observa o Palácio do Planalto, em Brasília
O governo Bolsonaro reprimiu a atuação de funcionários públicos de carreira, como os que a professora cita. Fora da agenda de gênero e raça, é possível mencionar, por exemplo, os casos de perseguição do alto escalão do Ministério do Meio Ambiente a servidores de órgãos como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que tiveram sua capacidade de trabalho reduzida.
Da mesma forma que no meio ambiente, os avanços nas agendas de gênero e raça foram “vetados” nos últimos quatro anos, na avaliação da professora. Com o novo governo, segundo ela, existe a possibilidade de voltar a disputar essas agendas de dentro do Estado. “Não só os que serão nomeados no novo governo, mas os que já estão na burocracia.”
Em trabalhos acadêmicos, Biroli chama esse fenômeno de “pluralismo contencioso”. “Não é que essas posições [a favor de avanços nas agendas de gênero e raça] vão poder avançar livremente [dentro dos órgãos públicos], mas vai haver mais possibilidade de pluralidade no âmbito estatal”, mesmo que com conflitos, explicou.
ESTAVA ERRADO: Em versões anteriores deste texto os nomes de Flávia Biroli eLuiz Augusto Campos estavam grafados de forma incorreta, e uma frase errava o ano da primeira eleição de Lula. O texto foi corrigido às 09h58 de 7 de novembro de 2022.
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