Expresso

Por que Lula não fez reforma tributária antes. E o que esperar

Marcelo Roubicek

18 de janeiro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 17h20)

Petista enviou propostas ao Congresso em 2003 e 2008, mas textos empacaram. No momento em que o tema volta com força à agenda do governo, o ‘Nexo’ relembra os obstáculos encontrados nas outras tentativas

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FOTO: UESLEI MARCELINO /REUTERS – 13/12/2022

Ministro da Fazenda Fernando Haddad em conferência em Brasília

Ministro da Fazenda Fernando Haddad em conferência em Brasília

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse na segunda-feira (16) que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva pretende votar uma reforma tributária ainda no primeiro semestre de 2023. No mesmo dia, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, reforçou que o governo tentará aprovar uma reforma no primeiro ano de mandato.

A reforma do sistema tributário brasileiro é uma das principais apostas do terceiro mandato de Lula na área econômica. Não será a primeira vez que o petista tentará aprovar uma mudança do tipo: houve outras tentativas em 2003 e 2008, no primeiro e segundo mandato, respectivamente.

Neste texto, o Nexo relembra essas iniciativas e conversa com cientistas políticos para entender por que fracassaram. Também discute o cenário para o debate tributário em 2023.

A proposta de 2003

O QUE PROPUNHA

Em 2003, o governo Lula enviou ao Congresso a PEC 41 , um texto que propunha diversas medidas para mudar o sistema tributário. Entre elas, estavam a prorrogação por quatro anos da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira); a prorrogação da DRU ( Desvinculação de Receitas da União ), que dá mais flexibilidade para o governo alocar recursos; a partilha com estados e municípios de 25% da Cide, tributo sobre a gasolina; a unificação de alíquotas do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), para combater a guerra fiscal entre estados; e, por fim, a unificação de diferentes tributos sobre consumo em um único IVA (Imposto sobre Valor Agregado).

O QUE ACONTECEU

A reforma chegou a ser aprovada pela Câmara dos Deputados, mas travou no Senado. O Executivo percebeu que dificilmente conseguiria aprovar a reforma, e a proposta foi desmembrada pelo governo Lula junto aos senadores. No fim das contas, apenas algumas das medidas foram aprovadas – as principais delas sendo a prorrogação da CPMF até 2007 e a extensão da DRU pelo mesmo prazo. Na prática, a reforma foi bastante esvaziada e desidratada.

O CONTEXTO POLÍTICO DO FRACASSO

Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria econômica e doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo), disse aoNexo que um dos motivos que explica o fracasso da reforma tributária é a coalizão “relativamente modesta” de Lula no Congresso no início do primeiro mandato. “A opção por uma estratégia de fazer uma coalizão de esquerda com pequenos partidos de centro-direita, como PL e PTB, não dava uma margem muito confortável para o encaminhamento dessa reforma”, disse Cortez. O analista disse que, à época, havia um protagonismo ainda muito forte de grandes bancadas do PFL, PSDB e PMDB – o último principalmente no Senado.

A proposta de 2008

O QUE PROPUNHA

Após o fracasso de 2003, a discussão chegou a ser retomada em outros momentos em 2004 e 2007. Mas a principal investida aconteceu em 2008, quando o governo Lula enviou ao Congresso a PEC 233 . Resumidamente, a proposta unificava tributos federais, como PIS, Cofins e Cide, criando um IVA federal . O texto também reformava o ICMS, implementando uma espécie de IVA estadual. Por fim, a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) seria extinta e incorporada ao Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas.

O QUE ACONTECEU

A discussão sobre a reforma tributária no segundo mandato de Lula aconteceu na esteira de uma das maiores derrotas políticas do petista junto ao Congresso entre 2003 e 2010: a derrubada da CPMF pelo Senado, em 2007. Nesse contexto, a PEC 233 chegou a ser aprovada em comissões da Câmara, mas nunca foi levada ao plenário.

O CONTEXTO POLÍTICO DO FRACASSO

Cortez, da Tendências Consultoria, afirmou que no segundo mandato de Lula houve uma espécie de paradoxo: enquanto a popularidade do petista atingia níveis recordes, a relação com o Congresso enfrentava um maior desgaste, aprofundado no pós- mensalão – esquema de compra de votos parlamentares revelado em 2005. “O governo deixou de investir capital político em reformas mais estruturais para surfar nessa popularidade”, disse Cortez. “A gente está falando de uma época em que começa a ter boom de commodities, tem também a questão do pré-sal. Entra na agenda, por exemplo, uma agenda de petróleo e Petrobras muito forte. O tema tributário não recebeu esse investimento político”, afirmou. Em dissertação de mestrado defendida na USP (Universidade de São Paulo) em 2010, o cientista político Murilo de Oliveira Junqueira afirma que “o segundo governo Lula não foi tão ativo ” na articulação da reforma tributária.

Por que é difícil fazer uma reforma

Para além dos contextos desfavoráveis no Congresso, em ambos os casos – 2003 e 2008 – Lula enfrentou obstáculos típicos de discussões sobre reforma tributária. É o que disse ao Nexo Eduardo Lazzari, pesquisador do CEM (Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo).

A primeira dificuldade diz respeito ao fato de que a reforma tributária tem implicações federativas importantes. Ou seja, mexe com o dinheiro que entra não só nos cofres da União, mas também dos estados e municípios – o que dificulta a articulação política.

Segundo Lazzari, todas as reformas articuladas desde a redemocratização em 1985 propuseram mudar a tributação sobre bens e serviços – alguns dos principais tributos são o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), tributo federal; o ICMS, tributo estadual; e oISS (Imposto sobre Serviços), tributo municipal.

“Se você mexe na sistemática de recolhimento desses tributos, com certeza o status para todos os entes federativos vai ser alterado. E com certeza você acaba criando perdedores com essas mudanças”, disse Lazzari.

FOTO: JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Cédulas de real, moeda corrente oficial do Brasil

Cédulas de real, moeda corrente oficial do Brasil

O outro obstáculo relevante diz respeito aos efeitos da reforma sobre os diferentes setores da economia. “Mercadorias são mais tributadas do que serviços. Isso significa que empresas de serviços muito provavelmente sabem que perderiam com essa reforma”, afirmou o pesquisador do CEM. Ou seja, uma unificação de tributos sobre o consumo tende a levar a um aumento na tributação de serviços – o que, por sua vez, cria resistência e mobilizações contrárias em algumas parcelas da economia.

Cortez, da Tendências Consultoria, resumiu essas duas dificuldades: “É um tema super difícil. Os estados e municípios são muito temerosos de perda de arrecadação. E os grupos econômicos são muito temerosos de aumento de tributação. Então é um jogo político de muita divisão. A percepção de que tem um bem comum por trás da reforma tributária costuma ser mais baixa do que em outros temas”, afirmou.

Multidimensionalidade

No mestrado defendido em 2010, Murilo de Oliveira Junqueira argumenta que há um outro motivo que explica os fracassos das reformas de 2003 e 2008. É o que o autor chama de “ multidimensionalidade ”.

A ideia, de forma resumida, é que as reformas tributárias que geralmente são discutidas tendem a ser tão complexas e juntar tantos temas, que isso dificulta que elas ganhem apoio. Por exemplo, se uma proposta tem dez medidas e um parlamentar é a favor de oito delas e contra duas, o peso dessas últimas pode impedir o parlamentar de votar a favor.

FOTO: ADRIANO MACHADO /REUTERS

Imagem emoldurada por forma de círculo mostra visão geral do plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, com alguns deputados e deputadas ao centro.

Visão geral do plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, em dezembro de 2021.

“A grande quantidade de propostas leva ao surgimento de muitas clivagens. Como é muito difícil para os negociadores operarem em tantas dimensões diferentes, surgem incertezas quanto ao resultado final da reforma, aumentando a aversão ao risco dos atores”, escreve Junqueira. O diagnóstico é que isso atrapalhou as negociações em 2003 e 2008.

O debate em 2023

O sistema tributário brasileiro é amplamente considerado regressivo e complexo . A regressividade significa que os mais pobres dedicam uma parcela maior da sua renda a tributos e impostos do que os mais ricos. Já a complexidade se refere ao fato de o Brasil ter mais de 90 tributos diferentes, cada um com um funcionamento próprio. Essa complexidade do sistema tributário brasileiro leva a problemas de eficiência e de custo.

É por isso que a reforma tributária continua voltando ao centro do debate político e econômico do país, mesmo após o acúmulo de tentativas fracassadas.

No governo de Jair Bolsonaro, o Executivo chegou a apresentar propostas de mudanças no sistema tributário. A primeira parte de uma reforma foi apresentada pelo governo em julho de 2020, propondo a unificação de dois tributos federais – PIS e Cofins – em um único tributo , chamado de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). O texto pouco avançou no Congresso.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 22.OUT.2021

Jair Bolsonaro (à esq.) e Paulo Guedes sentados atrás de uma mesa. Bolsonaro fala em um microfone. Guedes, de máscara, ajeita o encaixe no rosto.

Jair Bolsonaro (à esq.) e Paulo Guedes em pronunciamento à imprensa

Além disso, Bolsonaro propôs uma reforma no Imposto de Renda , ampliando a faixa de isenção e implementando a tributação sobre dividendos. O texto chegou a ser aprovado pela Câmara no início de setembro de 2021, após tramitação acelerada . Mas, no Senado, a proposta empacou.

Outras duas propostas importantes tramitam no Congresso desde 2019 – a PEC 45 , na Câmara, e a PEC 110 , no Senado. Ambas preveem uma simplificação do sistema tributário – incluindo tributos estaduais e municipais – e não tratam do Imposto de Renda. A PEC 45 unifica cinco tributos sobre o consumo, enquanto a PEC 110 unifica nove tributos.

A aposta de Lula na reforma em 2023

Em alguns momentos no início da década de 2010, Lula demonstrou frustração por não ter conseguido aprovar uma reforma tributária em seus dois primeiros mandatos. Em entrevista à revista IstoÉ em agosto de 2010, o petista disse: “Tem um desgraçado de um inimigo oculto que está trancado em algum armário e não permite que se vote a reforma tributária”.

Em um seminário na Escola Superior de Guerra em 2011, Lula voltou a falar em “inimigo oculto” e ainda afirmou: “ Não acredito mais em reforma tributária geral”. Ele já havia dito algo semelhante em 2009 .

FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 09.DEZ.2022

Lula desfocado no primeiro plano. No fundo, Haddad, com foco, olha para Lula.

Fernando Haddad (à esq.) e Luiz Inácio Lula da Silva (à dir.) em coletiva do governo de transição

Mais de uma década depois, Lula volta ao poder com a reforma tributária entre suas principais apostas na área econômica. É o que sinalizam ministros que ocupam pastas importantes, como Haddad, da Fazenda, e o vice-presidente Alckmin, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Haddad fala em aprovar uma reforma da tributação do consumo no primeiro semestre de 2023, e uma reforma do Imposto de Renda no segundo .

De acordo com Lazzari, do CEM, o momento favorece o avanço da pauta. “Há um reconhecimento por parte dos principais atores de que, do jeito que está, não dá”, afirmou.

O compromisso do novo governo, para o pesquisador do CEM, é “totalmente crível”. Primeiro, porque Lula e sua equipe já se movimentaram desde antes da posse em direção à articulação da reforma. O pesquisador disse que a principal ação que vai nesse sentido é a nomeação do economista Bernard Appy para uma secretaria especial para a reforma tributária.

Appy é autor de uma proposta de reforma que foi base para um dos projetos que tramitam no Congresso: a PEC 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) em 2019. Em entrevista ao Nexo em 2020, Appy deu detalhes de seu diagnóstico e sua proposta para o sistema tributário brasileiro. Veja o vídeo abaixo:

Lazzari também disse que o governo Lula “sabe que precisa, pela questão do deficit público, mexer no lado das receitas para conseguir minimizar a situação das contas públicas”. “Se tem uma coisa que o governo pode fazer para mostrar serviço é a reforma tributária”, afirmou o pesquisador.

A viabilidade política da reforma em 2023

Cortez, da Tendências, disse que a reforma tributária aparece com mais força na agenda de Lula em 2023 do que em seus mandatos anteriores. “No terceiro mandato de Lula, o discurso e a visão do governo no plano econômico parecem incorporar de forma mais clara a reforma tributária como um item central dessa agenda. Essa é uma das razões pelas quais há uma janela de oportunidade”, disse o analista.

O cientista político disse que a aposta na reforma tributária tem dois lados: a possibilidade de impulsionar o crescimento econômico no médio e longo prazo, e a tentativa de “acalmar” agentes do mercado , preocupados com a situação fiscal do país.

FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 12.01.2023

Lula está pensativo, com dois dedos apoiados na boca. Em primeiro plano outras pessoas desfocadas tomam espaço da foto

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante entrevista com jornalilstas, em Brasília

Para Cortez, a reforma tributária é viável politicamente em 2023. Mas seu cálculo político não é simples. “Se é verdade que tem uma centralidade do tema tributário, também é verdade que é um governo com um capital político limitado”, afirmou. Entre as causas das limitações, o analista citou:

  • As relações difíceis entre o governo Lula e militares , que pode contaminar o ambiente político
  • A “divisão da sociedade”, que faz com que Lula inicie o mandato com bastante apoio, mas também alta rejeição
  • Um cenário de desaceleração econômica
  • A existência de outras pautas difíceis e relevantes na agenda econômica, como a nova regra fiscal , que vai substituir o teto de gastos

Ou seja, ainda que a reforma tributária seja viável, ela pode enfrentar obstáculos no ambiente político – que podem se agravar a depender do andamento da crise institucional – e “na própria força política de Lula”, segundo Cortez.

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