As reivindicações para os Yanomami. E as ações do governo
Isabela Cruz
24 de janeiro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 21h24)Envio de profissionais e alimentos à terra indígena dá início ao enfrentamento de uma crise que exigirá combate a milhares de garimpeiros e reconstrução de órgãos federais
O presidente Lula, em visita à Casa Yanomami, em Boa Vista
Num cenário emergencial reconhecido oficialmente, a mobilização de autoridades federais iniciada na sexta (20) para socorrer a Terra Indígena Yanomami, a maior do país, interrompe anos de abandono governamental da região, que foi invadida pelo garimpo e devastada pela fome e pela malária durante o governo Jair Bolsonaro.
O quadro de devastação era denunciado por entidades especializadas e órgãos de controle havia anos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalou um Comitê de Coordenação Nacional para tratar do problema, e a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, criou um COE ( Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública). Com a participação de diversas outras pastas, as medidas para dar assistência aos mais de 30 mil indígenas que vivem na reserva estão sendo elaboradas. O Ministério da Saúde promete criar um plano detalhado até meados de fevereiro .
Neste texto, o Nexo retoma o cenário de devastação deixado pelo governo Bolsonaro, explica o que propõem especialistas no tema para a reversão desse cenário, e mostra as ações em curso.
Com problemas históricos de desassistência em saúde, alimentação e segurança, os Yanomami chegam a 2023 numa crise jamais vista por profissionais que trabalham há muitos anos na região. Segundo eles, o cenário se deve à negligência do governo Bolsonaro, que ignorou dezenas de representações comunicando a gravidade dos problemas nas aldeias.
A omissão do ex-presidente quanto aos indígenas chegou a ser objeto de ação no Supremo Tribunal Federal e é alvo inclusive de petições apresentadas ao Tribunal Penal Internacional. Bolsonaro também recebeu cobranças de organismos internacionais como as Nações Unidas, mas garantiu que estava tudo bem com os indígenas brasileiros.
A gestão Bolsonaro ficou marcada pela desestruturação de órgãos de proteção do meio ambiente e das comunidades indígenas. O desmonte incluiu corte orçamentário em grandes proporções, congelamento de concursos públicos diante da carência nos quadros de pessoal, extinção de prerrogativas de órgãos de fiscalização, incentivo público ao desrespeito às leis e intimidação aos servidores que atuam na fiscalização de ilícitos.
No caso da saúde indígena, os problemas tiveram duas principais raízes. Uma delas foi o incentivo do governo Bolsonaro à invasão da Amazônia por garimpeiros , que contaminam as águas da região com mercúrio, inviabilizando a pesca e a agricultura e causando doenças graves pela contaminação. Também confrontam a população promovendo ataques armados e impedindo o funcionamento de unidades básicas de saúde.
20 mil
garimpeiros estão na Terra Indígena Yanomami, segundo estimativas de lideranças indígenas
Outro problema central nesse campo, durante o governo Bolsonaro, f oi a nomeação para cargos de chefia de pessoas sem qualquer experiência no assunto, incluindo militares . Esse deficit de qualificação foi apontado por procuradores em variadas ações e é um consenso entre especialistas no tema.
A política federal de saúde para os indígenas é executada pelos chamados Dseis, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, que ficam subordinados à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).O distrito responsável pelo povo Yanomami , tanto em Roraima quanto no Amazonas, foi um dos que recebeu a maior quantidade de recursos. Entregou, no entanto, resultados trágicos.
Doutor em desenvolvimento sustentável e analista do ISA (Instituto Socioambiental), o geógrafo Estêvão Senra atribui esse aparente paradoxo justamente à crise sanitária vivida numa região sem atenção básica de saúde, onde casos plenamente tratáveis com acompanhamento regular se agravam pela falta de tratamento.
R$ 200 milhões
foram destinados ao Dsei Yanomami de 2020 a 2022, segundo o Ministério Público Federal
“Na situação de emergência se gasta mais, justamente para remover os pacientes graves [para hospitais na cidade]: 30% dos recursos vão para pagar frete aéreo”, disse Senra ao Nexo . Ele chama atenção para o fato de que o investimento na saúde básica dentro das próprias aldeias seria muito mais eficiente em termos sanitários e financeiros.
“Como disse o presidente [Lula], é mais barato transportar quatro médicos do que trazer 200 pessoas para a cidade. O que explica não se fazer isso? Fica a questão. Provavelmente, a chance de se ter desvio e corrupção é muito maior”, afirmou Senra.
Os indicativos de corrupção existem. Segundo investigações das autoridades federais, que deflagraram uma operação sobre a questão em novembro de 2022, há indícios de fraude na compra de remédios destinados aos Yanomami. O esquema criminoso, envolvendo pessoas do governo Bolsonaro, teria deixado pelo menos 10 mil crianças indígenas sem medicamentos, de acordo com o inquérito.
Criança yanomami com desnutrição na cidade de Alto Alegre, em Roraima
Imagens de crianças e idosos Yanomami severamente desnutridos têm ganhado repercussão desde dezembro. Os surtos de malária e verminose têm se alastrado. Só em 2022 foram confirmados 11.530 casos de malária na reserva.
570
crianças Yanomami morreram durante o governo Bolsonaro, segundo estimativas da atual gestão federal, por mercúrio, desnutrição e fome
Senra afirma que o problema pode ser ainda mais grave, já que, segundo ele, houve um “apagão de dados”, com chances de subnotificação das doenças.
“Os dados dependem do atendimento. Como algumas regiões tiveram uma frequência menor de profissionais, e até houve casos de postos que ficaram fechados por interferência do garimpo, toda aquela população não recebeu quase nenhum atendimento, e portanto as estatísticas deles desapareceram”, relatou o geógrafo.
Bolsonaro afirma que fez uma boa gestão e diz que os fatos revelados são“ farsa da esquerda ”.
Diante do acúmulo de evidências da má gestão, culminando nas suspeitas de corrupção que pesaram sobre o órgão durante o governo Bolsonaro, procuradores da República já haviam pedido em 2022 que o então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, interviesse sobre o distrito dos Yanomami, o que não ocorreu. As medidas solicitadas na época ainda são necessárias.
Os procuradores demandam a instalação de auditorias sobre os contratos realizados para o fornecimento de medicamentos e a instituição de um cronograma público para restabelecimento do estoque e distribuição dos produtos farmacêuticos.
Anteriormente, no final de 2021, os procuradores já tinham feito outras recomendações que, segundo eles, foram cumpridas apenas parcialmente. Elas incluíam a contratação de mais profissionais de saúde para áreas estratégicas do distrito e a garantia de transporte aéreo para as equipes de saúde chegarem às aldeias e para os eventuais pacientes serem transportados a hospitais (diversos lugares da Terra Indígena Yanomami só podem ser acessados dessa forma) – licitação que não era feita desde 2019.
“Com o abandono da manutenção das pistas de pouso, elas foram regredindo e deixando de funcionar para aeronaves um pouco maiores; então há regiões que ficaram dependentes de helicópteros, o que multiplica por cinco o custo do atendimento ”, afirmou Senra, do ISA, defendendo que um plano de reorganização logística da região é fundamental para que se consigam transportar insumos, pessoal e até alimentação em maior quantidade.
A operação das pistas de pouso, afirma Senra, depende não apenas das equipes do Ministério da Saúde, mas também da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), vinculada ao Ministério dos Povos Indígenas, e da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Também há pistas importantes sob o controle do Exército, vinculado ao Ministério da Defesa, como é o caso da pista do pelotão de fronteira de Surucucu.
Como medidas iniciais para o restabelecimento da atenção básica aos indígenas, Senra aponta, além do combate ao garimpo, de forma a retomar o funcionamento postos que estão abandonados, a necessidade de:
Sabe-se que o garimpo que invadiu a Amazônia em anos recentes enriquece não apenas pequenos garimpeiros, mas também grandes cadeias de negócios. Inquéritos policiais revelam como joalherias nacionais e estrangeiras se valem de atravessadores e de um sistema financeiro pouco controlado para forjar certificados de regularidade ao ouro com que trabalham.
Dessa forma, o combate ao garimpo ilegal envolve não apenas operações de forças de segurança para enfrentarem milhares de garimpeiros e instalarem barreiras de proteção às terras indígenas, mas também mecanismos de controle do ouro e de outros metais e pedras preciosas comercializados no país.
Para combater a chamada “lavagem” desses produtos, a Agência Nacional de Mineração realizou no final de 2022 uma consulta pública sobre o tema. Especializado em soluções de sustentabilidade, o Instituto Escolhas, por exemplo, cobrou que todo o registro da cadeia de extração e repasses de metais e pedras preciosos seja feito de modo eletrônico , para dificultar notas fiscais frias e outros tipos de fraude na documentação.
Desde 2020, o Ministério Público Federal briga na Justiça para que o governo federal, então sob o controle de Bolsonaro, promovesse ações para a retirada dos invasores. Decisões judiciais deferiram as medidas pleiteadas, mas, segundo os procuradores, elas não foram cumpridas adequadamente pelos órgãos governamentais.
A Justiça Federal já determinou, em 2022, que a Agência Nacional de Mineração realize leilão dos produtos apreendidos da mineração ilegal e destine os recursos arrecadados para a proteção dos indígenas. O leilão, porém, ainda não ocorreu.
Uma equipe multidisciplinar com representantes do Ministério da Saúde, da Funai e de outros órgãos federais está na Terra Indígena Yanomami desde o dia 16 de janeiro, com o objetivo de fazer um diagnóstico sobre a situação da saúde dos indígenas. No sábado (21),Lula foi a Boa Vista, acompanhado de Trindade e outros ministros: Sônia Guajajara, dos Povos Indígenas, Flávio Dino, da Justiça, e Silvio Almeida, dos Direitos Humanos.
Com a declaração da “emergência em saúde pública de importância nacional”, na sexta-feira (20), o governo federal expande seus instrumentos para atuar na região. Entre outros pontos, a contratação de pessoal fica facilitada, assim como o remanejamento de profissionais para o local.
A ministra da Saúde pôde, dessa forma, acionar a Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde). Os voluntários da iniciativa irão trabalhar na Casai (Casa de Saúde Indígena) Yanomami e em um Hospital de Campanha do Exército. A equipe é composta por médicos, enfermeiros e nutricionistas e ainda está recebendo inscrições .
O COE-Yanomami (Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública) vai atuar sob a coordenação da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) do Ministério da Saúde, com a função de planejar, organizar e controlar ações durante o período de emergência. O COE poderá, por exemplo, propor à ministra a contratação temporária de profissionais, se necessária.
Já o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária vai atuar na coordenação dos diferentes órgãos do governo em resposta à crise, que exige ações transversais . A previsão inicial é de que ele funcione por 90 dias e, em um mês e meio de trabalho, apresente um plano estruturante para a atuação federal quanto ao povo Yanomami.
As primeiras medidas de socorro começaram pelo envio de equipes de saúde e de cestas básicas e suplementos alimentares. Até a tarde de segunda-feira (23), 5.000 cestas tinham chegado a Roraima, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Latas de suplemento serão transferidas de um distrito sanitário vizinho para o Yanomami.
Até sexta (27), o governo pretende transferir um Hospital de Campanha da Aeronáutica do Rio de Janeiro para Boa Vista. A Operação Acolhida, destinada a receber refugiados venezuelanos, também irá disponibilizar equipamentos e profissionais para o socorro indígena.
O governo já anunciou que estuda acelerar as contratações do Programa Mais Médicos para resolver a carência desses profissionais nos Distritos Sanitários Indígenas. O Dsei Yanomami é um dos mais carentes nesse sentido.
5%
das vagas para profissionais de saúde do Dsei Yanomami estão preenchidas, segundo o Ministério da Saúde
Focado em levar mais médicos para regiões onde há escassez desses profissionais, o Mais Médicos prevê também investimentos em construção e reformas de unidades básicas de saúde.
Inicialmente, o Ministério da Saúde planejava fazer, primeiro, um concurso exclusivo para brasileiros formados no Brasil. Diante da situação emergencial, porém, a pasta aventa um edital que inclua também brasileiros formados no exterior e estrangeiros. Dessa forma, vagas não preenchidas por brasileiros seriam disponibilizadas para os brasileiros formados no exterior e, depois, para os estrangeiros também.
Na segunda (23), o governo Lula exonerou chefes de 11 Distritos Sanitários Especiais Indígenas pelo país. O Dsei Yanomami não foi atingido . Escolhida para presidir a Funai, órgão central na proteção das populações indígenas, Joenia Wapichana (Rede) tem dito que o orçamento previsto para a fundação pela gestão Bolsonaro, de R$ 600 milhões, é insuficiente e precisa ser revisto.
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