O ‘túnel do tempo’ que quer desvendar o passado da Amazônia
Bruno Fiaschetti
23 de junho de 2023(atualizado 28/12/2023 às 17h26)Consórcio internacional de pesquisa iniciou perfuração de poço de dois quilômetros no Acre. Estudo pretende investigar como era a floresta há 65 milhões de anos e entender possíveis mudanças do futuro
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Vista da floresta em São Sebastião do Uatuma, em 2015 no Amazonas
Uma equipe internacional de pesquisa iniciou em junho de 2023 a perfuração de um poço de dois quilômetros de profundidade no município de Rodrigues Alves, localizado no interior do Acre. O objetivo da ação é estudar as condições de vida na Amazônia há 65 milhões de anos — período logo após a extinção dos dinossauros.
A iniciativa é considerada pelos cientistas “o mais amplo programa de pesquisa já organizado para estudar a origem e a evolução da Amazônia”. Com o “túnel do tempo” que busca entender os processos de formação e modificação da floresta, a pesquisa também mira o futuro, para compreender os possíveis destinos do bioma face às mudanças climáticas.
Neste texto, o Nexo traz detalhes sobre o projeto, seus desafios e o que já se sabe sobre o passado da Amazônia.
A equipe à frente do projeto tem cerca de 60 pesquisadores, de 12 nacionalidades. Metade deles é vinculada a instituições brasileiras de pesquisa. O custo do projeto está estimado em US$ 4 milhões (pouco mais de R$ 19 milhões de reais na cotação atual).
A iniciativa é capitaneada pelo IDCP (International Continental Scientific Drilling Program), programa internacional de apoio a projetos de perfuração científica , com sede na Alemanha. Colaboram a americana NSF (National Science Foundation), o Smithsonian Tropical Research Institute, sediado no Panamá, e a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Para que seja possível estudar o período pré-histórico da Amazônia, os pesquisadores coletarão milhares de amostras do subsolo da floresta. Apelidadas de “testemunhos” pela comunidade científica, essas amostras carregam uma uma série de evidências físicas, químicas e biológicas que, ao serem analisadas em laboratório, permitem aos cientistas inferir como era o mundo à época em que elas estavam na superfície.
Os “testemunhos” serão coletados de dois pontos, localizados nas bordas leste e oeste da Amazônia brasileira. Além do poço em Rodrigues Alves, município do norte do Acre, haverá um outro, de profundidade de 1.200 metros, na cidade de Bagre, no Pará, ao sul da llha do Marajó. Segundo as previsões dos pesquisadores , cada poço levará cerca de três meses para ser perfurado, com equipes trabalhando 24 horas em todos os dias da semana.
Segundo os pesquisadores, a perfuração dos poços empregará uma combinação de técnicas e equipamentos adaptada daqueles utilizados na prospecção de minérios, óleo e gás natural. No lugar de uma broca tradicional, que tritura a rocha conforme avança na perfuração, a operação é feita com uma coroa vazada — as rochas são perfuradas “ pelas beiradas ”, preservando a integridade dos “testemunhos”.
Esta será a primeira vez que uma perfuração será realizada com finalidades científicas na Amazônia. Operações desse tipo só haviam sido feitas por empresas do setor de gás e mineração, como a Petrobras. A iniciativa de pesquisa atualizará o material de referência utilizado pelos cientistas no estudo do bioma, que data da década de 1970 e foi coletado no âmbito de prospecção de jazidas de carvão realizada pelo Serviço Geológico do Brasil.
O professor André Sawakuchi, do Instituto de Geociências da USP, destaca que os métodos empregados no estudo estão em progresso contínuo – algo que permitirá que os testemunhos continuem a ser estudados no futuro, sob outras perspectivas. “O entendimento de alguns aspectos ainda dependem do aperfeiçoamento ou desenvolvimento de novos métodos de análise – como, por exemplo, as idades precisas das camadas de sedimentos que serão perfuradas”, disse ao Nexo .
A expectativa é que, com as perfurações, os cientistas consigam extrair, por exemplo, amostras de pólen fossilizado das diferentes plantas que compuseram a flora amazônica ao longo desses milhões de anos. Algo que, além de fornecer evidências sobre a evolução da biodiversidade da floresta, permitiria aferir se esse movimento ocorreu em sincronia com fenômenos geológicos, ambientais e climáticos. Sawakuchi também destacou que as perfurações tornarão possíveis estudos sobre o estoque de carbono e a vida microbiana do subsolo– algo muito pouco conhecido na Amazônia.
Mesmo com toda cautela, os procedimentos de perfuração podem encontrar óleo ou gás natural em poços, algo que criaria uma série de complicações adicionais ao trabalho, inclusive riscos de segurança . Por isso, a iniciativa contratou uma empresa para realizar o processo de sondagem do solo, capaz de identificar a presença desses elementos.
A pesquisa empreendida pelo consórcio de instituições científicas no território amazônico objetiva suprir uma lacuna no conhecimento sobre sua origem e desenvolvimento. É o que afirma a pesquisadora Sheri Fritz, da Universidade de Nebraska. “Isso ocorre, em parte, porque trabalhamos principalmente na superfície da Terra, onde os depósitos são facilmente acessíveis, mas incompletos ”, explicou ao Jornal da USP.
As camadas de solo se sobrepõem ao longo do tempo — isso significa que quanto mais profundas as amostras, mais antigas elas são. Com as perfurações, os pesquisadores calculam que será possível acessar um passado de 65,5 milhões de anos — período em que o planeta sofreu impacto de sucessivos eventos climáticos de grande magnitude que acabaram por reconfigurar radicalmente os ecossistemas.
Segundo as previsões atuais da crise climática, é muito provável que o planeta volte a sofrer com condições ambientais e climáticas extremas nas próximas décadas . Por isso, a pesquisa também tem o potencial de ensinar sobre os possíveis destinos do bioma.
“A pesquisa nos ajudará a entender como a Amazônia reagiu a mudanças climáticas globais semelhantes à mudança em curso. Isto pode nos ajudar a prever como o bioma reagirá à mudança climática”, explicou o professor André Sawakuchi ao Nexo .
“O futuro da Amazônia e o nosso futuro ambiental dependem essencialmente das decisões humanas em escala nacional, continental e global. Humanos conviveram com a Amazônia conservada por pelo menos 10 a 15 mil anos e somente as sociedades dos últimos cinco séculos – notoriamente das últimas décadas – é que colocaram em risco a conservação da floresta”
Outras iniciativas têm usado tecnologias novas para investigar o passado da floresta. Em maio de 2022, por exemplo, pesquisadores da Alemanha descobriram vestígios de duas cidades da era pré-colonial na porção boliviana do bioma.
Os locais foram povoados pelo povo Casarabe, que se desenvolveu na região no período de 500 a 1.400 dC. Os sítios arqueológicos foram descobertos usando um LiDar, sensor a laser que dispara feixes infravermelhos e que capta os sinais refletidos, podendo fazer medições precisas.
Os dois assentamentos encontrados pelos cientistas – chamados de Cotoca e Landívar – foram, “ centros primários na rede de assentamentos da cultura Casarabe, os principais de uma rede de assentamento regional conectada por calçadas retas ainda visíveis que saem desses locais em direção à paisagem”.
Em conversa com o Nexo em agosto de 2022, o arqueólogo Eduardo Neves – professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e um dos principais pesquisadores do passado amazônico – destacou a importância de estudos deste tipo. “A arqueologia mostra que é um passado muito rico, dinâmico, com modos de vida diferentes. A gente não pode pensar na história do Brasil sem pensar na história da Amazônia, esse lugar que hoje inclui o Brasil”, disse.
Neves dedica-se atualmente ao projeto “ Amazônia revelada ”, que objetiva encontrar novos vestígios de ocupação humana escondidos pela vegetação.
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