Expresso

Quais os impactos atuais e passados do El Niño no Brasil

Isadora Rupp

06 de outubro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h10)

Perdas humanas e econômicas se acumulam no país em 2023 por causa do evento. Somado às mudanças climáticas, fenômeno fica cada vez mais nocivo, alertam cientistas 

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FOTO: BRUNO KELLY /REUTERS 28.09.2023

Um homem sentado de costas de camiseta rosa e boné vermelho observa centenas de peixes mortos que boaiam no lago Piranha, afetado pela seca do rio Solimões, em Manacapuru, no Amazonas. Ao fundo, há uma casa de madeira nas cores branca e azul

Peixes mortos no lago Piranha, afetado pela seca do rio Solimões, em Manacapuru, no Amazonas

Por causa da seca histórica que afeta ao menos 200 mil pessoas no estado do Amazonas, o governo federal criou uma comitiva para visitar a região e criar ações de apoio às vítimas da seca.

Na quarta-feira (4), o vice-presidente Geraldo Alckmin anunciou a realização de duas obras de dragagem nos rios Solimões e Madeira para recuperar a capacidade de navegação de ambos, com duração de 45 dias. O governo acertou outras medidas como reforço de brigadistas para controle de incêndios e antecipação do Bolsa Família . Só no Amazonas, pelo menos 60 cidades estão em situação de emergência.

Ao mesmo tempo em que a Amazônia sofre com a seca, o Sul do país enfrenta chuvas intensas. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em poucas horas choveu todo o volume previsto para o mês de outubro.

Na cidade de São Nicolau, no noroeste do Rio Grande do Sul, uma chuva de granizo na terça-feira deixou pelo menos 600 casas danificadas . O estado ainda não se recuperou das chuvas de setembro que deixaram 47 pessoas mortas e quase 5.000 desabrigadas. Também em setembro, uma onda de calor extremo assolou o país, com recordes históricos em temperaturas.

Todos esses eventos são atribuídos em parte ao El Niño – mas não só. Neste texto, o Nexo explica os prejuízos do fenômeno meteorológico e conta como as mudanças climáticas potencializam essas ocorrências.

Os prejuízos humanos e econômicos

O El Niño é um evento cíclico, marcado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico equatorial. No Brasil, via de regra, significa mais seca na região Norte e mais chuvas no Sul. O vídeo abaixo explica o um fenômeno meteorológico:

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Levantamento da Confederação Nacional dos Municípios realizado para a rede CNN Brasil mostra que 5,8 milhões de pessoas no país foram afetadas pelas chuvas intensas ou secas prolongadas em 2023.

Essa conta inclui perdas econômicas, óbitos e desalojamentos. Segundo a Confederação, entre janeiro e setembro de 2023, 115 pessoas perderam a vida no país em decorrência das chuvas.

O impacto econômico, que afeta de forma mais aguda a agricultura, as obras públicas, comércio local, indústria e pecuária gerou perdas bilionárias ao país.

R$ 50,5 bilhões

são estimados em prejuízos econômicos causados por estiagens e chuvas prolongadas no Brasil em 2023

Segundo economistas , o regime anormal de chuvas também pode impactar a inflação dos alimentos até o final de 2023. O preço de alimentos como verduras e legumes – bastante suscetíveis às chuvas em demasia ou secas prolongadas – podem ser os mais impactados.

De acordo com artigo da agência de notícias americana Bloomberg, o El Niño de 2023 deve provocar devastação sem precedentes para a economia global. As projeções da agência apontam que o PIB de países como a Índia e a Argentina podem reduzir 0,5 ponto percentual. A redução prevista para Peru, Austrália e Filipinas é 0,3 ponto – a agência não cita a previsão brasileira.

Pesquisa da Universidade de Dartmouth aponta que além das perdas financeiras trilionárias no mundo por causa do El Niño, o evento continua a afetar a economia por anos, principalmente em países tropicais. Logo, quando os ciclos do fenômeno são muito próximos, o problema se alonga, e o crescimento econômico pode ser afetado por uma década.

FOTO: REUTERS – 12.SET.2023

Estrada na cidade de Shahhat após chuvas que atingiram a Líbia

Estrada na cidade de Shahhat após chuvas que atingiram a Líbia

A tragédia climática na Líbia, que deixou 5.000 mortos e 10 mil desaparecidos, a chuva recorde na cidade de Nova York, cujo volume foi o maior registrado desde 1948, além da tempestade sem precedentes no Japão – todos eventos registrados em setembro –, também estão diretamente relacionados com o El Niño, disse ao Nexo o climatologista Francisco Eliseu Aquino, chefe do Departamento de Geografia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

“Todos os oceanos estão com onda de calor e alimentam a atmosfera, forçando os eventos extremos a acontecerem, que pode ser estiagem ou pode ser mega tempestades”, afirmou Aquino.

Segundo o climatologista, neste momento, o El Niño é um “garoto”, com 0,6°C de anomalia da superfície do mar. “E, mesmo assim, já causou muito impacto. Muito provavelmente, a gente vai rankear o ano de 2023 como o período de maior número de desastres e eventos extremos de impacto para a humanidade”, disse ao Nexo .

De acordo com Aquino, a previsão é de que o evento ganhe força até o final de 2023, e há possibilidade de se transformar em um “super El Niño” no começo de 2024.

Os El Niños passados

Um dos piores El Niños já registrados na história, segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) foi em 1982-1983, e coincidiu com mudanças da circulação global da atmosfera, o que gerou tempestades torrenciais na América do Sul. No Brasil, foi registrada seca no Norte e Nordeste, e enchentes no Sul do país.

Segundo Aquino, esse foi o El Niño que gerou o maior impacto social e econômico no país, pois na época não havia conhecimento nem preparação para eventos climáticos extremos.

Uma das consequências mais emblemáticas foi a seca na região Nordeste, que havia começado em 1979 e se agravou até 1983 por causa do fenômeno.

De acordo com o Memorial da Democracia, estima-se que, em cinco anos, cerca de 3,5 milhões de pessoas morreram de fome e de doenças da desnutrição, principalmente crianças. O problema levou o governo à época a operar programas federais de alimentação e nutrição. De 1996 a 2006, a desnutrição crônica no Brasil entre crianças reduziu 50% .

Mulher estende a mão com um prato de arroz com ovo, pela metade. Uma colher está apoiada dentro do prato. Ao fundo, é possível ver um chão de barro e os pés da mulher (aparentemente com pele parda).

Mulher segura prato de arroz com ovo em uma moradia precária em São Paulo

Pouco mais de uma década depois, entre 1997 e 1998, o Brasil e o mundo enfrentaram o que Aquino diz ser conhecido como o “El Niño do século” entre os pesquisadores da área.

As anomalias de temperatura na superfície do mar no Pacífico Leste, perto da costa do Peru e Equador, ficaram entre 4°C e 5,5°C acima da média climatológica, de acordo com um estudo do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Excesso de chuvas no Sul, seca no leste da Amazônia , levando a um boom de queimadas, seca severa no Nordeste e verão no Sudeste com temperaturas até 4°C acima da média foram registradas no país. “Esse foi um ano que nós usávamos como exemplo para mostrar o que seria a mudança climática no futuro”, afirmou Aquino.

Em 2015-2016, um intenso El Niño rivalizou com o de 1997-1998 – entre os climatologistas, disse Francisco Aquino, o evento ficou conhecido como o “El Niño Godzilla” por causa da intensidade. O aumento da fome no mundo foi uma das consequências registradas, em decorrência de secas e enchentes. Incêndios florestais e focos de queimada cresceram 65% no Brasil no período.

Pesquisadores da Universidade de Liverpool relacionaram em um estudo o fenômeno climático com a epidemia de Zika no Brasil em 2015. De acordo com os cientistas, as alterações causadas pelo El Niño somadas com as mudanças climáticas proporcionaram um ambiente perfeito para os vetores do mosquito.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS-2.2.2016

Imagem de corpo inteiro de mulher grávida de perfil, com as mãos na barriga, com espaço aberto desfocado ao fundo

Mulher grávida de seis meses em frente à sua casa, em uma favela do Recife, durante epidemia de zika

A crise atingiu principalmente mulheres grávidas, cujos bebês nasceram com microcefalia e outras lesões cerebrais. Essa relação, segundo o Centro Europeu de Controle de Doenças, só foi descoberta pela investigação e pesquisas realizadas no Brasil.

A atenção à Amazônia

Em um cenário futuro, conforme disse Francisco Eliseu Aquino ao Nexo , a tendência é que o evento climático no Brasil influencie mais na redução da precipitação na Amazônia do que na intensidade das chuvas no Sul.

Isso afetará de forma drástica e trará o pior cenário para a população da região, afirma o climatologista, pois a estiagem e a seca impactam diretamente na mobilidade das pessoas que vivem na floresta.

“Isso vai gerar uma capacidade de resposta difícil para o governo federal, estados e municípios: no Sul, inundações e, no Norte, as secas. Como a gente lida? É um cenário difícil e que vai exigir dos gestores públicos”, afirmou.

Segundo Aquino, em ambos os casos, será necessário um reforço na Defesa Civil dos municípios para resposta mais eficaz nas localidades, com um funcionamento capilarizado, a exemplo do que ocorre no SUS.

O conjunto de ações já conhecidas e prometidas pelo governo, como o desmatamento zero até 2030 – uma das promessas de Luiz Inácio Lula da Silva – é outro investimento urgente. “A recuperação de áreas degradadas, do solo e das chuvas suaviza as mudanças climáticas e se ganha resiliência. Isso também coloca o Brasil em um jogo internacional importante, para que o país lidere essa agenda desafiadora para a humanidade”,disse o climatologista ao Nexo .

FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS – 07/06/2023

Uma vista mostra uma área desmatada no meio da Floresta Amazônica em Uruara

Uma vista mostra uma área desmatada no meio da Floresta Amazônica em Uruara

Na avaliação de Alexandre Costa, cientista do clima e professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará), “é evidente” que o Brasil não está preparado para lidar com os eventos extremos, mas que é preciso que o país, e o mundo, compreendam de fato que, dependendo dos patamares de aumento de temperatura global, não há tecnologia que mitigue danos.

O desmatamento zero, alteração dos padrões agrícolas e energias renováveis são um modo de evitar o pior quadro. O Acordo de Paris (2015) definiu a limitação de aumento em 1,5°C da temperatura global em relação aos níveis pré-industriais como o melhor cenário possível para o século 21.

Investimento em energia limpa, a exemplo da Dinamarca , e programas de proteção florestal como os da Costa Rica – que conseguiu reverter o desmatamento depois de ter registrado altas taxas até os anos 1980 –, são alguns exemplos internacionais que podem servir de inspiração ao Brasil, pontua Costa.

“O ideal seria que o Brasil entrasse em uma moratória de exploração de combustíveis fósseis. O que temos hoje é incentivo para a Petrobras explorar a margem equatorial”, afirmou o cientista do clima ao Nexo . Costa refere-se à pressão de órgãos do governo brasileiro para liberar a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.

“Se a temperatura global superar um aumento de 2°C, os impactos ambientais e de fenômenos como o El Niño se multiplicam em tal nível que largas porções do território se tornam inabitáveis, seja por enchentes, incêndios, secas, pelo calor, pelo o que for”, disse Costa.

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