Coluna
Lilia Schwarcz
Ninguém tem o direito de discriminar quem vai viver e quem há de morrer
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O envelhecimento é um processo de difícil definição. Se existe um componente biológico inegável, e muitas vezes o corpo paga seu pedágio, ninguém nega que haja também uma construção social, cultural e histórica em relação a ele. Como em todas as fases humanas, também a velhice traz consigo uma dimensão existencial, que faz com que a pessoa crie — e não seja apenas uma vítima de — vínculos diferentes com o tempo e a temporalidade, com aqueles que a rodeiam, com os acontecimentos do mundo e com sua própria história e memória. Por isso mesmo, é possível dizer que a velhice é uma construção social; um “fato cultural”, como chamou a filósofa francesa Simone de Beauvoir em seu belo, e de certa maneira autobiográfico, livro chamado “Velhice” (1970).
Diferentes sociedades também dedicaram espaços sociais distintos à velhice. Ou seja, a representação que temos dessa faixa etária varia de cultura para cultura, de tempo em tempo e de um lugar para outro. O certo é que não há uma concepção definitiva acerca do envelhecimento, mas sim conceitos e percepções que se alteram na história e através dela.
Para os babilônios, por exemplo, o tema da imortalidade e das formas de conservar a juventude estiveram sempre presentes, fazendo com que os mais velhos fossem tratados com menor distinção. Na Grécia Clássica, os mais idosos ocupavam lugar subalterno, pois a juventude e a beleza eram as virtudes muito enaltecidas. Mas um filósofo como Platão sempre acreditou que era na velhice que se chegava à harmonia, à prudência, à sensatez, à astúcia e ao juízo. Na sociedade romana, os anciões eram considerados “pater famílias”, segundo o direito romano, garantindo para si cargos importantes no senado como “patrícios”.
Mesmo sendo difícil generalizar, é possível dizer que o mesmo comprometimento e deferência apareceria nas sociedades orientais, sobretudo na China e no Japão, onde os mais velhos sempre foram entendidos como aqueles que acumulam experiência e, assim, sabedoria.
Documentos mostram que nas culturas incas e astecas essa fase da vida era vista com muito respeito e seu cuidado considerado uma responsabilidade pública. Antigos hebreus também deram muita importância aos anciões, considerando-os como “chefes naturais” e que, por isso, precisavam ser sempre consultados. Exemplos não faltam, mas diz-se que Matusalém teria vivido 969 anos, cercado de atenções. Exageros à parte, o certo é que uma vida longa era vista mais como bênção do que como carga.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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