Que me perdoem o leitor e os mestres das ciências sociais, se recaio no antiquado uso de analogias biologistas, mas as julgo aqui úteis para entender a situação do Cadastro Único ao fim de 2022. Passados 12 anos do lançamento da versão do Cadastro até hoje vigente, ele estava cronicamente abatido por obsolescência, cujo tratamento lhe fora negligenciado por bons pares de anos.
Como se não bastasse, o Cadastro sofreu ao menos duas paradas cardiorrespiratórias entre 2021 e 2022. Geradas pelo incentivo adverso dos pisos monetários do então Auxílio Brasil, num contexto de profunda desinformação e drástico subfinanciamento do Suas (Sistema Único de Assistência Social), as paradas cardiorrespiratórias estavam a um triz de levá-lo à cova rasa, pois o transformavam num cadastro de indivíduos isolados – e não mais de indivíduos em suas famílias e em seus territórios. Como é sabido, em consequência desse processo, o número de famílias compostas por uma só pessoa (unipessoais) beneficiárias do então Auxílio Brasil saiu de um patamar de 15% em 2021 para assustadores 27% em dezembro de 2022. E o Cadastro Único, nossa maior porta de inclusão social, utilizado por mais de 30 programas sociais e construído durante duas décadas, havia sido solapado em dois anos.
Em janeiro de 2023, a escolha foi clara, até porque não havia outra: antes de cuidar da obsolescência, era preciso estancar a parada cardiorrespiratória. Afinal, para melhorar, é antes preciso sobreviver. Isso requeria trabalhar na correção das informações de composição familiar e dependia enormemente de retomar a articulação federativa para a reconstrução do Cadastro Único no Suas.
Para começar essa averiguação, foi antes necessário firmar acordo com a Defensoria Pública da União, que, no fim de 2022, solicitou a sustação das ações de atualização cadastral que gerassem interrupções nos pagamentos da transferência de renda. A justiça acolheu o argumento da Defensoria, segundo a qual as ações de correção lançadas pela antiga gestão após o período eleitoral foram feitas sem organização e sem informação às famílias, aos municípios, estados e Distrito Federal.
Feito o acordo, foram lançadas duas ações de correção cadastral: uma de renda, com a identificação de cerca de 1 milhão de erros de inclusão no antigo Auxílio Brasil, que posteriormente foi redesenhado e voltou a se chamar Bolsa Família, e outra de composição familiar, cujo cronograma abrangeu de março a dezembro de 2023. Essas ações foram pactuadas no Suas e, à atividade de correção de composição familiar, a União destinou R$ 199,5 milhões adicionais a municípios e estados. Com o apoio, foi possível fazer com que os 27% de famílias unipessoais na transferência de renda caíssem para 19%, voltando a se aproximar da média histórica, e incentivar ações de busca ativa para as prefeituras cadastrarem quem mais precisa.
Enquanto o cronograma de averiguação de composição familiar seguia, outras medidas foram tomadas, com o objetivo de aprimorar o Cadastro tanto na dimensão de inteligência de dados, quanto na de melhorias normativas e de formação dos profissionais envolvidos em sua gestão. Foram excluídos os cadastros de 900 mil famílias que, mesmo sob chamamento, não apareciam para atualizar os dados desde 2016/2017 e outras 600 mil pessoas falecidas – ações que abrangeram basicamente pessoas que já não estavam em programas sociais. Por seu caráter inovador, merecem destaque as integrações do Cadastro Único com o CNIS (Cadastro Nacional de Informações Sociais) e com o Sistema Presença. O CNIS traz dados de benefícios previdenciários e emprego formal, e sua integração ao Cadastro Único permitiu a atualização de renda de mais de 18,5 milhões de pessoas, gerando correções de pagamentos no Bolsa Família da ordem de R$ 7,8 bilhões em 2023. O Sistema Presença registra bimestralmente a frequência escolar dos beneficiários do Bolsa Família e, com sua incorporação ao Cadastro, 7 milhões de estudantes de baixa renda tiveram atualizados seus dados de escola e escolaridade. São ações que qualificam o Cadastro Único, o encaminham na direção da interoperabilidade de dados e, mais, facilitam a vida das pessoas cadastradas, pois evita que gastem tempo e recursos para se deslocar a um equipamento público e informar dados que o próprio poder público já possui.
Ainda nesta seara, foi fixada parceria com o Ministério da Gestão e da Inovação, para modernizar o Cadastro, e lançado o Observatório do Cadastro Único, ferramenta amigável de transparência ativa e planejamento, que permite observar dimensões múltiplas de pobreza que acometem as famílias, referenciadas em cada Cras (Centro de Referência de Assistência Social), município, estado, ou em nível nacional. Essa ferramenta permite, por exemplo, que cada município saiba quantas famílias cadastradas sem acesso a saneamento, ou com pessoas com deficiência, estão referenciadas em cada Cras. Foi também lançada a Rede de Fiscalização do Bolsa Família e Cadastro Único, a quem cumprirá a delicada tarefa de contribuir com a eficiência do gasto público, sem com isso criminalizar a pobreza, ou insinuar que erros de inclusão sejam majoritariamente interpretados como fraudes.
Normativas foram revistas para garantir mais qualidade na identificação de cada pessoa cadastrada e muito investimento foi feito para retomar as ações de formação das pessoas envolvidas na gestão do Cadastro em cada cidade brasileira. Foi lançado o Mural do Gestor no Portal de Gestão do Cadastro Único e a série Cadastro em Movimento, fornecendo informações gerenciais em tempo real, cursos rápidos, lives e podcasts e colaborando com a formação de mais de 10 mil profissionais do Cadastro ao longo de 2023. Ainda, iniciou-se um laboratório de inovação em parceria com a Escola Nacional de Administração Pública e com a Controladoria Geral da União, que permitirá desenhar e testar melhorias para o Cadastro junto com a população.
Se o Cadastro Único é um reflexo da vida, que é dinâmica, não há motivos para pensar que ações para sua correção e melhoria sejam estanques
Perpassando essas ações, estão os fatores que lhes são fundamentais: articulação federativa, estímulo à busca ativa, monitoramento, informação e muito diálogo. O Cadastro acontece em cada Cras, em cada posto de cadastramento, em cada cidade deste país. Todo o dia, milhares de pessoas são entrevistadas por mais de 50 mil profissionais, coordenados pelas áreas de assistência social dos municípios. Esquecer que tudo isso acontece antes de que o Cadastro se torne um registro administrativo é deixar ao largo as condições essenciais que permitem sua própria existência.
Todas essas iniciativas contribuíram para que o Cadastro Único voltasse a respirar em 2023 e entrasse na rota de melhoria e inovação. Agora, é preciso mantê-lo nesta rota: investir na estruturação da rede do Cadastro Único e em sua formação contínua, esclarecer a população sobre suas regras e critérios, atualizar suas estimativas de cobertura tão logo os dados do Censo estejam disponíveis, modernizar o sistema, avançar em ações de integração e inteligência de dados, tal como avaliar necessidades de mudanças em quesitos do formulário de cadastramento. E, claro, manter em dia a revisão de cadastros desatualizados e daqueles com indícios de inconsistências, pois são ações que devem ser conduzidas continuamente. Afinal, se o Cadastro Único é um reflexo da vida, que é dinâmica, não há motivos para pensar que ações para sua correção e melhoria sejam estanques.
Para isso, é necessário manter objetivos republicanos sempre acima de interesses corporativos e seguir a desafiadora batalha pela ampliação do orçamento disponível à rede descentralizada do Cadastro Único. O cofinanciamento federal para esta rede ainda está bastante aquém do necessário para garantir a estrutura necessária a um cadastro que abrange mais de 40 milhões de famílias e informa mais de 1,5% do PIB brasileiro em pagamentos de benefícios. A ampliação do investimento no Cadastro Único contribui, de forma concomitante, para a superação da pobreza e a eficiência no gasto público.
Retomar o lugar do Cadastro Único como tecnologia social reconhecida mundialmente não é tarefa simples, nem rápida: requer revisão de conceitos, testes, especificação de sistemas, validação de bases de dados e revisão de materiais e processos de capacitação para 5.570 cidades e mais de 50 mil profissionais. Requer mudar um sistema que envolve centenas de milhões de registros e impacta o pagamento do maior programa de transferência de renda brasileiro. Para que tudo isso ocorra sem riscos elevados, é preciso estabelecer um equilíbrio entre dois sábios ditados populares: “o apressado come cru” e “o ótimo é inimigo do bom”.
As contínuas ações de melhoria do Cadastro Único precisam ser conduzidas com responsabilidade, porque o Cadastro envolve a vida concreta de milhões de pessoas que vivem em contextos de escassez e guarda consigo um objetivo essencial: o de ser uma porta aberta para a inclusão social. Por isso, o nome das coisas importa. É algo como flertar com a perfídia encarar as correções do Cadastro Único sob o discurso raso e preconceituoso de passar pente fino em famílias vulneráveis, chamando-as de fraudadoras ou dependentes do Estado. Não se passa pente fino em pessoas, simplesmente pelo fato óbvio de que pessoas não são insetos. Sim, pode-se falar em pente fino em fraudes, que devem ser combatidas diariamente. Mas erros de inclusão não são majoritariamente fraudes, pois a maior parte deles está em famílias na franja da pobreza, que cortam um dobrado pra sobreviver – lembremos: a pobreza é dinâmica. E, se todos nós, da base ao topo da pirâmide da distribuição de renda, dependemos de políticas públicas, não há por que dedicar o adjetivo somente a quem o Estado brasileiro mais demorou a apoiar.
O nome das coisas importa, porque todas as pessoas importam. E, por isso, as ações de correção e melhoria do Cadastro Único devem, antes de tudo, ser vistas como forma de dotá-lo cada dia de informações mais fidedignas que tornem visíveis as demandas da população mais pobre do Brasil, permitindo ao poder público entender e atuar nos vazios de proteção social que impedem as pessoas de comer dignamente, morar dignamente, conviver dignamente e dormir sem o receio de que a miséria lhes abata os sonhos.
Letícia Bartholo é socióloga. Especialista em políticas públicas e gestão governamental. Atualmente, é Secretária de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único.