Ser pobre em uma sociedade capitalista e vivenciar um processo de ascensão social pela via da educação é estar sujeito à neurose de classe. Como um sistema econômico dominante, o capitalismo não apenas moldou as relações de trabalho como influenciou a percepção do ser humano na qualidade de indivíduo produtivo e consumidor. O neoliberalismo – vertente mais radical do sistema – amplificou o sofrimento psíquico da classe trabalhadora por conta da competitividade exacerbada e da busca incessante por eficiência. O preço cobrado do cidadão, sobretudo daquele que experiencia longos períodos de vulnerabilidade socioeconômica, é pago em moeda psíquica.
O sofrimento psíquico no processo de ascensão socioeconômica tem por particularidade o mal-estar no laço social, porque, na prática, os conflitos surgidos quando o indivíduo ingressa na nova classe social dão origem às neuroses de classe – que são possíveis, somente, mediante a ocorrência da mobilidade social.
Passagem entre dois universos sociais radicalmente diferentes leva indivíduos a viverem uma tensão entre a identidade herdada dos pais – geralmente pobres – e a recém-adquirida
Os sujeitos que saíram de uma origem popular em busca de condições melhores de vida – e que conseguiram prosseguir nos estudos por meio de bolsas e cotas de ações afirmativas – enfrentam um sentimento de não lugar causado pela angústia de referência por serem os primeiros a entrarem no ensino superior. Ao forjar um lugar na sociedade, esse indivíduo precisa lidar com a resistência dessa estrutura social, organizada em torno de normas e restrições peculiares à classe. Do lado desse sujeito, há o desejo de integrar esse espaço novo, estruturar novas interações nas dinâmicas sociais vigentes. O confronto é inevitável entre essas duas forças.
Aprofundando os meus estudos da temática do trauma da pobreza e da neurose de classe brasileira no processo de ascensão social do indivíduo, enxergo que a travessia – a ponte entre dois mundos – é permeada por conflitos internos quando ele se depara com novos paradigmas culturais e sociais. Ele luta com a sensação de não pertencer mais ao seu mundo de origem, mas também não se sente totalmente aceito no novo ambiente que busca integrar. Essa dualidade cria um profundo sentimento de não pertencimento, não se reconhecendo plenamente em nenhum dos dois universos. Esse conflito interno não é apenas sobre onde se encaixar, mas também sobre como se identificar e ser reconhecido pelos outros. Esse processo pode levar a uma série de questões emocionais complexas, como ansiedade, depressão e outras neuroses que giram em torno de identidade, reconhecimento e o sentimento de pertencer a algum lugar.
A passagem entre dois universos sociais radicalmente diferentes leva o indivíduo a viver uma tensão entre a identidade herdada dos pais – geralmente pobres – e a recém-adquirida com um curso superior; depois, enfrenta os desafios da profissão e da permanência na ascensão. O “ideal do eu” é a imagem daquilo que os indivíduos gostariam de se tornar para serem amados e admirados pela comunidade de origem; por sua vez, o “eu ideal”, pelo contrário, é a imagem idealizada de si, ou seja, surge como um elemento fóbico para mitigar a experiência da vulnerabilidade emocional ou a angústia associada à percepção de desamparo.
Cabe entender que o neoliberalismo se utiliza de uma narrativa sedutora de superação individual para explicar a ascensão social, classificando-a como resultado da autodeterminação dentro de uma estrutura na qual a meritocracia trabalha a favor do pobre esforçado. Essa versão romantizada quer fazer crer que basta o indivíduo se dedicar bastante para que o resultado apareça. Por meio desse roteiro, minimiza o papel das estruturas sistêmicas nas desigualdades perpetuadas – e o papel de uma classe privilegiada na manutenção dessa engrenagem. Esse discurso faz com que as pessoas (pobres em ascensão) acreditem que as “falhas” individuais são a causa da angústia sentida.
Como parte desse processo, há uma pressão para o sujeito se adequar a um ideal de sucesso individual, eficiência e acumulação de riqueza. O medo da queda agrava o trauma da pobreza; esse pavor persistente de voltar para as condições de vida anteriores se torna um motor para o esforço incessante, perpetuando o ciclo de sofrimento como um símbolo de dignidade e esforço. A ameaça, neste caso, é a exclusão social ou econômica, ou o fracasso em atingir esses ideais. E o preço dessa crença é pago coletivamente: o trauma da pobreza fica obscurecido, negado, ignorado.
Na minha clínica, é nítido o quanto o trauma da pobreza e a neurose de classe são fenômenos profundamente enraizados na sociedade brasileira, refletindo as complexidades psicológica e social – que estão para além das estatísticas econômicas, dada a multidimensionalidade da escassez de recursos financeiros e afetivos. Em uma camada mais profunda, podemos falar da privação também de afetos.
A pobreza no Brasil não é apenas uma questão de insuficiência de renda; ela se manifesta como um estado psicológico e social impregnado de privações, limitações e de exclusão que transcende o material, bem como gênero e raça. O trauma gerado pela pobreza deixa marcas no inconsciente que se perpetuam em ciclos de sofrimento e segregação, afetando a saúde mental, as perspectivas de vida e a autoestima dos indivíduos. Esse estado de falta contínua gera, inclusive, uma série de fobias como respostas psicológicas complexas, incluindo o medo constante da instabilidade, da impotência e a internalização da marginalização. Com isso, ansiedade, depressão, distúrbios emocionais variados são potencializados como a dificuldade em lidar com o ter dinheiro, alimentação e estabilidade financeira, por exemplo.
A neurose de classe no Brasil é, ainda, reflexo das tensões e dos conflitos inerentes às estruturas raciais, patriarcais, socioeconômicas e de classes estratificadas, manifestando-se por meio de desqualificação social, ou seja, a identidade de classe se torna uma fonte de estresse e ansiedade. Os desníveis sociais e econômicos, extremamente acentuados no país, são um território fértil para a insegurança, o ressentimento e a competição. Esse comportamento surge em circunstâncias onde há uma percepção de ameaça à posição social dominante, levando à ativa desvalorização de grupos considerados inferiores. Esse processo não só reflete as inseguranças da classe média, mas também serve para reforçar estruturas de poder existentes, acentuando a divisão e o conflito social. No fim do dia, são elementos para alimentar preconceitos e estereótipos.
Puxando a análise para as relações interpessoais e institucionais, a neurose de classe pode levar a uma comunicação falha; a um entendimento mútuo limitado. Na prática, esses são componentes que perpetuam a segregação social e a falta de empatia – tijolos para a manutenção das barreiras sociais e econômicas.
As pesquisas psicanalíticas que tenho conduzido no Brasil e na Argentina sobre o trauma da pobreza e a neurose de classe no processo de ascensão social pela via da educação mostram a existência do desejo de transformação, a busca por um bem viver e a luta por incorporar os novos hábitos de classe. Na participação em congressos, levo análises de casos que revelam que o desejo de mudança, crescimento e aprimoramento pessoal – impulso inerente ao ser humano – não ocorre no vácuo; ele é profundamente influenciado pelos hábitos de classe, moldando a autopercepção e o modo de interagir com o mundo. Se de um lado a classe média não reconhece esse novo integrante, por outro, a base da pirâmide pode enxergá-lo como um traidor.
Essa “recepção” de ambos os estratos sociais pode impactar o indivíduo no seu desejo de mudança via paralisia ou obstinação para atingir resultados. Ou seja, o desejo de transformação não é somente uma jornada individual, mas uma negociação com o contexto de classe que pode restringir ou impulsionar as aspirações por mudar. No detalhe, o conflito com o meio de origem é inevitável, porque o sucesso acadêmico é o suficiente para separar o indivíduo da classe de origem – embora não permita que ele se sinta pertencente àquele novo lugar social; a sensação é de ser desqualificado para integrar o grupo dos intelectuais.
Outros afetos como o sentimento de culpa ligado à distância do seu meio de origem, sentimento de orgulho pelo sucesso obtido ou reconhecimento de uma dívida com as políticas públicas colocam o sujeito em conflito com o laço social, causando isolamento social, servidão voluntária, sentimento de não estar em seu lugar, nem no meio de origem nem no atual. Após a formação acadêmica, sentimentos de solidão pessoal e social, fracasso nas relações com os outros e o sentimento do medo da queda, devido a um suposto fracasso, assombram com suas ameaças de voltar para a escassez bem como as inseguranças quanto ao futuro e o envelhecimento. O desejo inconsciente de pertencer a um grupo assume um aspecto de gozo com a submissão em períodos de crises narcísicas – seja na militância, política, religião e no trabalho.
Parte importante das minhas pesquisas é dedicada à primeira geração de ascensão social – um marco crucial e complexo tanto para o indivíduo quanto para a família envolvida. Determinação, sacrifício e adaptação são alguns dos elementos que marcam essa jornada de habitar um território desconhecido, no qual regras, normas e expectativas são radicalmente diferentes das de origem. Aqui, vê-se uma trajetória marcada por desafios e potencial. O legado do trauma da pobreza pode ser visto nas segundas e terceiras gerações desse indivíduo, mostrando que a mobilidade social não cessa o sofrimento psíquico: ele é vivenciado pela primeira geração, mas se perpetua, com particularidades, nas próximas.
A mobilidade cultural e social contribui para desenvolver nesses sujeitos um conflito que surge da relação entre a própria história pessoal, familiar e social pertinentes a essa investigação. O propósito dos estudos que tenho conduzido é investigar as relações entre a história social, familiar e pessoal – a gênese social dos conflitos psíquicos, em particular os sentimentos de inferioridade, culpa, humilhação, medo e esperança.
Por fim, como psicanalista lacaniano e indivíduo que vivencia o processo de ascensão social pela via da educação, espero que as minhas pesquisas e os meus estudos sobre a neurose de classe brasileira e o trauma da pobreza possam contribuir para novas reflexões. Lançar luz para compreender esses fenômenos é crucial para abordar as raízes da desigualdade e da marginalização de uma parcela grande da sociedade brasileira, além de reduzir o ciclo da pobreza entre gerações. Ao reconhecer e nomear o trauma da pobreza e a neurose de classe, podemos traçar estratégias mais eficazes para promover a inclusão social, a justiça econômica e o bem-estar psicológico para essas narrativas de sofrimento em trajetórias de ascensão social contribuindo para uma sociedade mais coesa e equitativa.
Kályton Resende é psicanalista e integra o Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. É pioneiro nos estudos psicanalíticos sobre o trauma da pobreza e o sofrimento psíquico em trajetórias de ascensão social pela via da educação no Brasil. Mora em Buenos Aires (Argentina) e é o idealizador do podcast Neurose de Classe.