O projeto do governo para trabalhadores de apps de transporte
Aline Pellegrini e Conrado Corsalette
04 de março de 2024(atualizado 05/03/2024 às 13h36)Governo tenta regulamentar serviço prestado por motoristas que dependem de plataformas. Tema já é discutido no Congresso. Enquanto isso, STF tem pela frente julgamento que pode ser balizador
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Luiz Inácio Lula da Silva anunciou nesta segunda-feira (4) um projeto de lei para trabalhadores de aplicativos. A proposta prevê a regulamentação do serviço prestado por motoristas de Uber, 99 e outras plataformas do gênero, mas não inclui entregadores. O texto segue agora para análise de deputados e senadores. O Durma com Essa explica os planos do Executivo e mostra como o tema vem sendo tratado pelo Legislativo e pelo Judiciário. O programa tem também Isadora Rupp comentando a PEC da Blindagem.
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Edição de áudio Pedro Pastoriz
Produção de arte Mariana Simonetti
Transcrição do episódio:
Aline: A discussão sobre as relações de trabalho entre motoristas de aplicativo e plataformas. Uma discussão em pauta no Congresso, no Supremo e no governo federal. Uma discussão que pode decidir sobre o futuro de centenas de milhares de trabalhadores. Mas uma discussão incipiente, que deve enfrentar uma série de entraves. Eu sou a Aline Pellegrini e este é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Conrado: Olá, eu sou o Conrado Corsalette e tô aqui com a Aline pra apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, todo começo de noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
Aline: Segunda-feira, 4 de março de 2024. Dia em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou de uma cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília, pra assinar o projeto de lei dos trabalhadores de aplicativos. Esse projeto propõe a regulamentação do serviço prestado por motoristas de Uber, 99 e outras plataformas. A proposta segue agora pra análise do Congresso.
Conrado: O projeto foi elaborado a partir de um grupo de trabalho que reuniu oito ministérios, duas associações de empresas, além de representantes de trabalhadores, motoristas e entregadores de aplicativo. Esse comitê foi criado pelo Ministério do Trabalho em maio de 2023 pra viabilizar uma proposta de regulamentação que incluísse tanto motoristas quanto entregadores, ou seja, que incluísse também quem presta serviços via Ifood e Rappi, por exemplo. Mas essa proposta atual lida apenas com a situação dos motoristas. A situação dos entregadores ficou pra depois.
Aline: A proposta do governo federal que chega ao Congresso não estabelece vínculo empregatício entre os motoristas e as empresas. Ou seja, os profissionais não entram no regime de CLT. O que vai acontecer se o projeto for aprovado é que eles vão ser considerados autônomos. Esse foi um recuo do governo Lula a partir de pressão do Uber, segundo afirmou o jornal Valor Econômico. A ideia inicial era criar a possibilidade de enquadrar esses profissionais como CLTs ou autônomos. Ficou só a opção de autônomo.
Conrado: O projeto de lei prevê que os condutores vão trabalhar sem regime de exclusividade. Isso quer dizer que o motorista pode continuar prestando serviço para mais de um aplicativo, como já é hoje. Se a proposta for aprovada, essa posição de autônomo vai ser na verdade uma nova categoria profissional, que é a de autônomo por plataforma.
Aline: A medida também impõe uma jornada mínima de oito horas de trabalho, calculada por hora rodada, ou seja, entre o motorista aceitar uma corrida até a chegada ao destino do passageiro. A proposta também impõe um limite de trabalho de 12 horas por dia. Segundo o texto, esse limite de horas trabalhadas serve para garantir a segurança e a saúde do motorista e também dos usuários. Atualmente, o Uber e a 99 já limitam o tempo de uso do aplicativo. Depois de 12 horas online, o motorista é automaticamente desconectado e não pode usar a ferramenta pelas seis horas seguintes para garantir descanso ao condutor e evitar acidentes.
Conrado: O texto também prevê a criação de um sindicato da categoria e uma remuneração mínima para os profissionais. A hora mínima proposta tem um valor de R$ 32,09.
Aline: A proposta do governo também dá pro motorista o direito à previdência social. A contribuição dá pros trabalhadores benefícios como auxílio-maternidade e auxílio-doença, por exemplo. O profissional vai contribuir com 7,5% do salário e a plataforma vai subsidiar 20%. Atualmente, se o motorista quiser contribuir, até pode, mas a empresa não dá nada. A partir da proposta, as empresas vão ser responsáveis por descontar a contribuição do trabalhador e fazer todo o recolhimento para Previdência.
Conrado: A Federação Brasileira de Motoristas de Aplicativos não gostou da proposta. Acha que essas mudanças vão ser prejudiciais pros trabalhadores. Segundo a entidade, o pagamento por hora, e não por um cálculo feito a partir do quilômetro rodado e tempo de viagem, como é feito atualmente, não considera as variações de demanda e pode incentivar jornadas excessivas de trabalho. Lembrando que a proposta do governo tem limite de 12 horas, mas são doze horas rodando, sem levar em conta o tempo que o motorista tá sem passageiro. A Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo também criticou o projeto e disse que trabalha num texto alternativo pra apresentar ao Congresso.
[mudança de trilha]
Aline: O IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, estima que 1,5 milhão de pessoas trabalhavam usando aplicativos de serviços no Brasil no quarto trimestre de 2022. Desse total, mais de 50% trabalhavam com o transporte de passageiros. A renda média desses profissionais naquele ano foi de R$ 2.454.
Conrado: O crescimento do trabalho por aplicativo de transporte no Brasil é um fenômeno também chamado de uberização. Vem desde a segunda metade da década de 2010. É um fenômeno que foi impulsionado em grande parte pela sequência de crises econômicas do país, que viveu altas taxas de desemprego e um aumento substancial da informalidade. Primeiro com a recessão de 2014 a 2016 e depois com a pandemia de covid-19 em 2020. E vale lembrar que esse não é um fenômeno apenas brasileiro. Ele se estende por inúmeros países, inclusive os países desenvolvidos.
Aline: A cientista social Ludmila Abilio afirma que a contradição desse esquema de trabalho é que os profissionais, que são atraídos por um modelo de autogerenciamento, dependem dessas empresas para se manter em atividade e obter remunerações, como acontece num vínculo de emprego, mas não têm acesso aos direitos que esse vínculo demanda.
Conrado: Um relatório do movimento FairWork Brasil divulgado em março de 2022 concluiu que iFood, 99, Rappi, Get Ninjas, Uber e Uber Eats, que eram as seis principais plataformas que operavam serviços no país na época, falharam em garantir direitos básicos pros seus trabalhadores.
Aline: Uma pesquisa feita em 2023 pelo Instituto Datafolha a pedido do Uber e do Ifood mostrou que três em cada quatro motoristas e entregadores que trabalham com aplicativos, ou seja, 75% deles, preferem manter a autonomia a terem a carteira assinada. O levantamento também mostra que 68% pretendiam contribuir pra Previdência caso as plataformas automatizassem o processo. Atualmente, só cerca de 20% dos motoristas contribuem por conta própria.
Conrado: Quase 90% dos entrevistados pelo Instituto Datafolha disseram que é importante garantir certos direitos e benefícios, desde que eles não interfiram na flexibilidade do trabalho. Só 11% disseram ser favoráveis à garantia de todos os direitos trabalhistas mesmo que isso implique menos flexibilidade.
Aline: A regulamentação dessa modalidade de trabalho se tornou uma bandeira do Lula ainda na campanha eleitoral. Em outubro de 2022, o então candidato à Presidência defendeu o direito à jornada de trabalho e ao descanso semanal remunerado para esses trabalhadores.
Conrado: Em setembro de 2023, o Lula se reuniu com o presidente americano Joe Biden, com quem anunciou uma parceria em defesa dos direitos trabalhistas num mundo plataformizado. Depois do encontro, o presidente brasileiro disse isso aqui pros jornalistas:
00:00 – 00:26
É uma decisão de dois governantes que querem fazer com que os seus mandatos na Presidência e o mandato do governo daqui para frente se preocupem junto com os trabalhadores em criar as condições para que a gente dê uma reversão no mundo do trabalho. Como é que vai ser a relação do capital e trabalho no mundo empresarial digitalizado, sabe? Em que as plataformas muitas vezes trabalha as pessoas quase que como trabalho escravo. Nós sabemos que nem todo trabalhador quer carteira profissional assinada. Tem trabalhador que quer ser empreendedor. Ótimo. Mas a gente se preocupa que, mesmo para essas pessoas que querem fazer empreendedorismo, é preciso que haja o mínimo de garantia de seguridade social. Quando tudo está bem, ótimo, mas e quando as coisas vão mal? É preciso que então apareça a figura do Estado tentando dar uma solução para isso.
[mudança de trilha]
Aline: Senadores e deputados vão agora analisar e eventualmente votar a proposta. Mas essa não é a primeira vez que eles discutem o tema no congresso. Desde 2019 tramita na Câmara dos Deputados um outro projeto de lei que propõe o estabelecimento de relação trabalhista entre o motorista e a empresa dona da plataforma.
Conrado: O senado também discutiu a regulamentação de motoristas e entregadores de aplicativos em audiências realizadas em 2023. Um projeto de lei que tramita na casa também propõe manter trabalhadores como autônomos, criando uma contribuição obrigatória deles para Previdência, assim como a proposta atual do governo federal.
Aline: Além da discussão do tema pelo Executivo e pelo Legislativo, a uberização também já abriu uma série de embates entre diferentes instâncias do Poder Judiciário. Na Justiça do Trabalho, são frequentes as decisões que reconhecem o vínculo empregatício entre os trabalhadores e as plataformas.
Conrado: Em setembro de 2023, a 4ª vara do trabalho de São Paulo decidiu, por exemplo, que o Uber deveria registrar em carteira todos os seus motoristas ativos e aqueles que viessem a trabalhar na plataforma. No mês seguinte, o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu que um fluxo com regras flexíveis não descaracterizava a subordinação do trabalhador e, portanto, o vínculo empregatício.
Aline: As decisões foram refletidas em tribunais regionais do trabalho, como em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, onde motoristas pediram o reconhecimento de seus vínculos e foram atendidos. Em linhas gerais, os magistrados argumentaram que exercer um trabalho contínuo e repetido para uma mesma plataforma, ainda que sem exclusividade, configura uma das relações empregatícias descritas pela CLT.
Conrado: O Supremo Tribunal Federal reagiu em novembro de 2023, derrubando uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e o Cabify, empresa que não atua mais no Brasil. O ministro do Supremo Gilmar Mendes argumentou que o motorista pode decidir quando e se prestará seu serviço de transporte pros usuários do aplicativo, sem qualquer exigência mínima de trabalho, número mínimo de viagens, de faturamento mínimo, sem qualquer fiscalização ou punição pela decisão do motorista.
Aline: Um outro reconhecimento de vínculo com o Cabify foi derrubado em dezembro pelo tribunal. O ministro da corte Alexandre de Moraes, que era relator do processo, disse que os trabalhadores de plataformas têm liberdade de fazer o seu horário e de ter outros vínculos. Ele também afirmou que as decisões adversas da Justiça do Trabalho geraram insegurança jurídica.
Conrado: O Supremo agora analisa uma ação que discute se existe vínculo de trabalho entre uma motorista de aplicativo com o Uber. Na sexta-feira, o tribunal decidiu por unanimidade a repercussão geral do caso. Isso quer dizer o seguinte: o que os ministros vierem a decidir sobre o tema vai ter que ser seguido por todas as instâncias da Justiça em todos os processos semelhantes.
Aline: A Procuradoria-Geral da República disse que foram feitos mais de 780 mil pedidos de reconhecimento de vínculo com aplicativos de transporte e entrega no período que vai do início de 2019 a junho de 2023. Depois da confirmação da repercussão geral do caso analisado pelo STF, o Uber protocolou nesta segunda-feira um pedido pros ministros suspenderem todos os processos pendentes que tratem sobre o tema, até que o Supremo dê a palavra final sobre a questão. Ainda não tem uma data para conclusão do julgamento.
Conrado: E o que acontece? Essa decisão do Supremo, quando vier, também vai poder balizar uma eventual lei aprovada pelo Congresso a respeito de todo esse fenômeno da uberização. Só que, por enquanto, tá cada um por si.
[trilha redação]
Aline: O Congresso discute um projeto que trata de investigações contra deputados e senadores. A proposta, apelidada de PEC da Blindagem, exige o aval dos parlamentares para que eles mesmos sejam investigados, entre outras medidas. A Isadora Rupp escreveu sobre o tema. Isadora, quais prerrogativas já existem para parlamentares na mira da Justiça?
Isadora: As prerrogativas que existem se dirigem especialmente para a proteção da atividade parlamentar e estão na Constituição brasileira. Os deputados e senadores são invioláveis, tanto no âmbito penal como civil, por suas opiniões, palavras e votos.
Os políticos também são julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e não por outras instâncias da Justiça, e têm foro por prerrogativa de função, popularmente conhecido como foro privilegiado, um direito que existe para amparar autoridades e assegurar a independência e o livre exercício do cargo. Desde 2018, o STF definiu que o foro se aplica apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo, e relacionados com as funções que são desempenhadas.
Parlamentares não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos são remetidos em até 24 horas para Câmara ou para o Senado. E aí a casa decide, pelo voto da maioria, sobre a prisão do deputado ou do senador.
Desde 2016, o STF decidiu que não é mais necessária licença da Mesa Diretora da Câmara ou Senado para operações de busca e apreensão nas dependências do Congresso. Até então, era necessária essa autorização. Segundo a Corte, essa regra poderia comprometer a eficácia de medidas cautelares.
Conrado: E Isadora, quais são as mudanças que os deputados e senadores vão debater?
Isadora: A PEC da Blindagem, que ainda não foi apresentada formalmente, basicamente quer ampliar a proteção jurídica aos políticos. A proposta é do deputado Rodrigo Valadares, do União Brasil de Sergipe, um apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas que integra um partido que, em tese, é base do governo Lula.
Um dos pontos do texto é proibir operações de busca e apreensão contra parlamentares nas dependências do Congresso Nacional. Em janeiro, operações da Polícia Federal, autorizadas pelo STF, realizaram buscas nos gabinetes dos deputados Carlos Jordy e Alexandre Ramagem, ambos do PL do Rio de Janeiro.
A proposta quer garantir que deputados e senadores investigados tenham acesso total aos inquéritos, inclusive a trechos sob sigilo, e que o início de uma apuração contra um parlamentar seja submetida ao Congresso antes de começar. O texto também quer acabar com o foro privilegiado. Com isso, os processos seriam levados para outras instâncias antes de chegarem ao STF.
Em uma entrevista para o jornal Correio Braziliense no domingo, o deputado Rodrigo Valadares disse que a sua proposta não é revanchista, e nem uma afronta ao Judiciário. Mas, segundo ele, existe um desequilíbrio entre os poderes, e membros do parlamento estão sendo perseguidos pela Corte. O deputado garante ter apoio “praticamente unânime” na Câmara, e conseguiu 99 das 171 assinaturas necessárias para iniciar a tramitação da proposta.
Aline: O texto da Isadora você lê em nexojornal.com.br. E um recado: a newsletter diária que o nexo envia gratuitamente toda noite mudou. A Durma Com Essa agora se chama Nexo Hoje e chega no seu e-mail com um design mais adaptado à leitura e mais dinâmico, com destaques, frases, números, uma seção de cultura e comportamento, além de dicas dos editores e editoras do jornal. Se você não assina ainda, é só se cadastrar em nexojornal.com.br
[trilha durma]
Conrado: Do projeto do governo pra regularizar o trabalho de motoristas de aplicativo à discussão sobre a PEC da blindagem, durma com essa.
Aline: Com roteiro, produção e apresentação de Aline Pellegrini, apresentação e edição de texto de Conrado Corsalette, participação de Isadora Rupp, produção de arte de Mariana Simonetti e edição de áudio de Pedro Pastoriz, termina aqui mais um Durma com essa. Amanhã tem mais. Até!
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