Como a fraude na vacina liga golpismo a negacionismo
Aline Pellegrini e Suzana Souza
19 de março de 2024(atualizado 19/03/2024 às 19h36)Bolsonaro é indiciado pela Polícia Federal no caso que apura fraudes em certificados de vacinação contra a covid-19. Investigadores dizem que falsificação pode ter relação com tentativa de quebra democrática
Jair Bolsonaro e outras 16 pessoas foram indiciadas na investigação que apura as falsificações de certificados de vacinação contra a covid-19. O relatório da Polícia Federal que determinou os indiciamentos associa as fraudes nos cartões a uma tentativa de golpe de Estado do ex-presidente para se manter no poder após perder as eleições de 2022 para Luiz Inácio Lula da Silva. O Durma com Essa desta terça-feira (19) fala sobre a investigação e conta como o negacionismo de Bolsonaro durante a pandemia pode torná-lo alvo de outras apurações. O episódio tem também a participação de Mariana Vick comentando os 60 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
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Edição de áudio Pedro Pastoriz
Produção de arte Mariana Simonetti
Transcrição do episódio:
Aline: O andamento de um caso que determina o indiciamento de um ex-presidente e de pessoas próximas a ele. O andamento de um caso que associa uma fraude em cartões de vacinação a uma tentativa de golpe de Estado. O andamento de um caso que reaviva a memória sobre como uma gestão negacionista e omissa pode piorar uma pandemia. Eu sou a Aline Pellegrini e este é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Suzana: Olá, eu sou Suzana Souza e tô aqui com a Aline pra apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, todo começo de noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
[trilha de abertura]
Aline: Terça-feira, 19 de março de 2024. Dia em que o ministro do Supremo Alexandre de Moraes derrubou o sigilo do relatório da Polícia Federal que determinou o indiciamento de Jair Bolsonaro e de outras 16 pessoas pelos crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema de informação. A investigação apura a falsificação de comprovantes de vacina contra a covid-19 do ex-presidente e de outras pessoas de seu entorno.
Suzana: A apuração da PF tá vinculada ao inquérito das milícias digitais, que tramita no Supremo sob a relatoria de Moraes. Foi no âmbito dessa investigação que Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro na Presidência, fez um acordo de delação premiada. Essa delação tá em sigilo ainda, mas partes dela tão no relatório da Polícia Federal tornado público nesta terça.
Aline: O que o documento mostra é que o tenente-coronel revelou em depoimento que emitiu os cartões falsos de vacinação em nome do ex-presidente e de Laura, a filha dele de 12 anos. E que foi o próprio Bolsonaro que ordenou a emissão do certificado falsificado. O tenente-coronel é um dos indiciados pela polícia no caso, mas seu depoimento foi crucial pra embasar esse indiciamento, junto com o material colhido em operações policiais na casa dos indiciados.
Suzana: Cid contou pros investigadores que encaminhou o pedido de fraude feito por Bolsonaro pro Ailton Barros, ex-major do Exército. O militar mandou então os dados do ex-presidente e da sua filha pro secretário de governo de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, o João Carlos de Sousa Brecha, que inseriu as informações falsas sobre a imunização no sistema do ministério da saúde. Assim, os certificados de vacinação podiam ser impressos.
Aline: Esses cartões de vacinação, disse o Cid na delação, foram impressos na então residência oficial de Bolsonaro, o Palácio da Alvorada, e entregues pro ex-presidente em mãos. Esse relatório da PF que traz trechos da delação do Mauro Cid também diz que, abre aspas, “os elementos de prova coletados ao longo da presente investigação são convergentes em demonstrar que Jair Messias Bolsonaro agiu com consciência e vontade determinando que seu chefe da Ajudância de Ordens intermediasse a inserção dos dados falsos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha”, fecha aspas.
Suzana: A suspeita de fraude nos certificados de vacinação veio a público em maio de 2023, quando a Polícia Federal vasculhou endereços do ex-presidente. Cid, apontado como operador do esquema de falsificação, foi preso na ocasião. A fraude foi descoberta a partir de mensagens no celular do ajudante de ordens de Bolsonaro.
Aline: Segundo os investigadores, a fraude aconteceu pouco antes de o político, seus familiares e auxiliares viajarem pros Estados Unidos em dezembro de 2022, antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. O país exigia o atestado de vacinação pra entrada de estrangeiros.
Suzana: Mas o relatório da PF vai além e diz que essa falsificação pode ter sido feita no escopo da tentativa de Bolsonaro de dar um golpe de Estado e permanecer no poder, impedindo a posse de Lula. O ex-presidente é investigado numa outra apuração sobre uma trama golpista pra mantê-lo no poder após ele perder as eleições de 2022 pro petista. O documento da polícia revelado nesta terça diz que a fraude dos comprovantes de vacinação pode ter sido usada pelo grupo para permitir que seus integrantes pudessem ter os documentos necessários pra entrar em outros países e esperar a conclusão dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, dia em que bolsonaristas atacaram os prédios dos três poderes em Brasília.
Aline: Em meados de fevereiro, um documento da Polícia Federal obtido pela revista Veja mostrou que o ex-presidente fez uma transferência de 800 mil reais pra um banco americano no fim de seu mandato, antes dessa viagem pros Estados Unidos em dezembro de 2022, às vésperas da posse de Lula.
Suzana: Investigadores afirmaram na época que o ex-presidente viajou para aguardar “a possibilidade de consumação do golpe de Estado” e fugir de eventuais consequências legais de suas ações, ou seja, pra ter um álibi pro seu envolvimento com os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. O político negou. Disse que transferiu dinheiro pra proteger sua poupança do novo governo.
Aline: A defesa de Bolsonaro afirma que a divulgação nesta terça-feira do indiciamento faz parte de uma estratégia “midiática e parcial” da Polícia Federal e disse que o ex-presidente é vítima de perseguição. Bolsonaro não comentou o indiciamento, mas no passado afirmou publicamente diversas vezes que nunca se vacinou contra a covid. Chegou a espalhar uma série de notícias falsas durante a pandemia sobre os imunizantes, prejudicando a adesão da população à campanha de vacinação que foi responsável por arrefecer a crise sanitária. Por exemplo, no auge da pandemia, ele afirmou o seguinte durante um evento oficial do governo:
Eu não vou tomar. Alguns falam que tô dando um péssimo exemplo. Ô imbecil, idiota, que tá dizendo que eu dou péssimo exemplo: eu já tive o vírus eu já tenho anticorpos, pra que tomar vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem claro aqui, lá na Pfizer tá bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um chip, virar um jacaré? É problema de você, pô.
Suzana: Bolsonaro já disse também que não teve que apresentar nenhum cartão de vacinação quando chegou aos Estados Unidos. E nega ter participado da adulteração de registros oficiais. Em depoimento em 2023, ele disse que não sabia sobre a fraude. O relatório da investigação rebate essa alegação. Os policiais afirmam que não existe elemento que indique que Mauro Cid e os outros investigados se uniram pra inserir dados falsos à revelia de Bolsonaro.
[mudança de trilha]
Aline: É fato que não existem registros, além dos falsos, de que Bolsonaro tenha se vacinado, em consonância com a postura negacionista adotada pelo ex-presidente ao longo de uma pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no país. Quando comandava o Brasil, o político de extrema direita fez campanha contra os imunizantes, levantando suspeitas quanto à eficácia deles sem apresentar qualquer evidência. Além disso, seu governo atrasou a compra de doses, enquanto milhares de brasileiros morriam.
Suzana: As ações e omissões do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de covid-19 foram alvo de uma CPI. A comissão parlamentar de inquérito da covid terminou seus trabalhos no fim de outubro de 2021. Em seu relatório final, a comissão atribuiu crimes a dezenas de pessoas, mas 13 delas tinham direito a foro privilegiado e por isso tiveram seus casos analisados pela Procuradoria-geral.
Aline: É o caso de Jair Bolsonaro, acusado também de atuar deliberadamente em prol da disseminação do coronavírus, sabotando medidas de isolamento social e colocando em dúvida o uso de máscaras. O relatório final da CPI da Covid pediu o indiciamento dele sob suspeita de crimes como epidemia com resultado de morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação e crimes de responsabilidade e contra a humanidade.
Suzana: Augusto Aras, então procurador-geral, recebeu o relatório poucos dias após a conclusão da CPI. Mas ele engavetou todos os pedidos dos senadores, em linha com sua atuação na procuradoria. A gestão de Aras foi marcada pela inação diante de suspeitas que pesavam contra Bolsonaro, responsável por indicá-lo pra dois mandatos como procurador.
Aline: Mas o sucessor do Aras, o Paulo Gonet, talvez reveja a decisão em breve, segundo o jornal O Globo. O atual procurador-geral da república se reúne nesta terça-feira com os senadores da CPI da Covid. Os parlamentares vão pedir pro Gonet reabrir o caso que investiga as eventuais omissões de Bolsonaro durante a pandemia da covid, como o presidente da comissão, o Omar Aziz, do PSD do Amazonas, disse pro portal UOL na segunda-feira.
Tenho certeza que ele não vai se omitir em relação a investigar. Não estamos condenando ninguém previamente, quem tem que fazer a condenação é a Justiça. O que estamos pedindo é que se aprofunde as investigações. Nós tamos pedindo pra reabrir. Não estamos pedindo para condenar A ou B, queremos que se aprofunde. Pra que, volto a repetir, pra que futuramente, eu não estando aqui, você não estando aqui, nenhum outro gestor, nem presidente, ouse se voltar contra a ciência pra deixar as pessoas morrerem como morreram.
Suzana: O indiciamento da Polícia Federal no caso de fraudes dos cartões de vacinação é só um primeiro passo pra que Bolsonaro responda uma ação penal na Justiça. Pra que o caso avance, é necessário que a Procuradoria-Geral da República apresente uma denúncia. O ministro Alexandre de Moraes deu 15 dias pra que a PGR se manifeste sobre o relatório. Depois, se a denúncia for apresentada, ela precisa ser aceita pelo Supremo. Só a partir daí, como réu, que o ex-presidente iria a julgamento. A pena máxima pode chegar a 15 anos de reclusão.
[trilha redação]
Aline: Em 19 de março de 1964, cerca de 500 mil pessoas se reuniram nas ruas de São Paulo pra se manifestar contra o governo de João Goulart. Naquele dia, em resposta ao discurso de Jango que aconteceu em 13 de março na Central do Brasil, brasileiros se reuniram na marcha da família com Deus pela liberdade. Esse é o tema do segundo texto da Mariana Vick para a série “Dia a dia do golpe”, em que o Nexo resgata momentos decisivos do desenrolar político no país até a instalação da ditadura militar. Mariana, por que essa manifestação foi puxada?
Mariana: Foi justamente por causa do comício das reformas de base, que tiveram muito impacto em meios conservadores. A multidão que caminhou por uma hora e meia no centro de São Paulo naquele 19 de março expressava repulsa à guinada à esquerda de Jango, que tinha proposto poucos dias antes mudanças na Constituição e medidas como a reforma agrária. Oradores, políticos e manifestantes que discursaram no evento atacaram o alegado comunismo do presidente e enalteceram Deus, a liberdade e a lei brasileira contra o que viam ser uma tentativa de ditadura. Também apareceu nos discursos a defesa da família e de uma intervenção militar que, entre aspas, “saneasse” o país. Delegações de mais de dez estados e do interior de São Paulo foram à manifestação, divulgada em anúncios na imprensa paulista no dia anterior. O ato foi articulado pelo deputado estadual Antônio Sílvio da Cunha Bueno, com apoio do governador paulista Ademar de Barros, e preparado por entidades femininas e rurais e classes produtoras de São Paulo. Mulheres, religiosos e militares tavam entre os participantes do evento.
Aline: E, Mariana, qual a importância histórica daquele dia?
Mariana: Pra historiadores, a Marcha da Família representou a legitimação popular do golpe que viria depois. Partidários do evento falaram no aspecto cívico, heterogêneo e aparentemente espontâneo da multidão, que unia de senhoras paulistas a grupos de estudantes. O ato também foi marcado pela presença de figuras políticas importantes, como a esposa do governador de São Paulo, Leonor Barros, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade. O protesto tinha ainda a chancela de entidades e de setores da economia paulista, como a Fiesp. Além disso, a marcha foi usada depois do golpe para justificar a manutenção da ditadura militar. Isso porque as manifestações continuaram a ocorrer depois da deposição de Jango, rebatizadas de “marchas da vitória”. Em 2 de abril de 64, dois dias após o levante militar, no Rio de Janeiro, por exemplo, estima-se que o maior desses atos tenha reunido 1 milhão de pessoas.
Aline: O texto da Mariana você lê em nexojornal.com.br. E você já recebe a Nexo Hoje? É a nossa newsletter gratuita enviada sempre no fim do dia, com notícias, textos, artigos de opinião, link pra transcrição do Durma, e outras coisas mais. Se você ainda não assina, é só se cadastrar lá no nexojornal.com.br
Suzana: Do indiciamento de Bolsonaro no caso da fraude dos cartões de vacina aos 60 anos da marcha da família com Deus pela liberdade, durma com essa.
Aline: Com roteiro, produção e apresentação de Aline Pellegrini, edição de texto e apresentação de Suzana Souza, participação de Mariana Vick, produção de arte de Mariana Simonetti e edição de áudio de Pedro Pastoriz, termina aqui mais um Durma com essa. Até amanhã
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