O perfil dos lares que enfrentam fome e insegurança alimentar
Letícia Arcoverde e Conrado Corsalette
25 de abril de 2024(atualizado 25/04/2024 às 23h07)IBGE mostra que cerca de 64 milhões de pessoas sofriam algum nível de restrição no acesso à comida em 2023. Dado tem melhora em relação a 2018
Um a cada quatro domicílios brasileiros enfrentava algum nível de insegurança alimentar em 2023, segundo pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgada nesta quinta-feira (25). São cerca de 64 milhões de pessoas que, no mínimo, mudavam seus hábitos alimentares com medo de não ter comida na mesa. Desse total, 8,7 milhões passavam fome, nível mais grave desse quadro. O Durma com Essa fala sobre o perfil da população que sofre com a insegurança alimentar no país, a evolução da fome e as políticas públicas para combatê-la. O episódio também tem participação de Mariana Vick, que comenta os 40 anos da votação no Congresso que frustrou a campanha Diretas Já.
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Edição de áudio Pedro Pastoriz
Produção de arte Lucas Neopmann
Transcrição do episódio
Leticia: Não ter certeza se haverá comida suficiente em casa. Deixar de comprar alimentos saudáveis e mais caros pra ter o que dar pros filhos. Comer menos do que o que se quer ou precisa. Conviver diariamente com a fome. Essas são diferentes realidades de insegurança alimentar que afetam uma parcela da população do Brasil. Uma parcela que está caindo, mas ainda é expressiva num país em que o perfil da fome tem raça, gênero e classe social. Eu sou a Letícia Arcoverde e este é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Conrado: Olá, eu sou Conrado Corsalette e tô aqui com a Letícia pra apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, todo começo de noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
[trilha de abertura]
Leticia: Quinta-feira, 25 de abril de 2024. Dia em que o IBGE divulgou dados de uma pesquisa sobre a prevalência da fome no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que um a cada quatro lares no país enfrentava algum nível de insegurança alimentar em 2023. São cerca de 64 milhões de pessoas que, no mínimo, mudavam seus hábitos alimentares com medo de não ter comida na mesa. Desse total, quase nove milhões passavam fome, que é a etapa mais grave desse quadro.
Conrado: Antes de entrar nos dados vale a pena a gente diferenciar os conceitos que aparecem nesse tipo de pesquisa. A insegurança alimentar acontece quando a pessoa não tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Os níveis de insegurança variam numa escala.
Leticia: A insegurança alimentar leve é quando existe uma incerteza sobre o acesso a alimentos, ou quando a família abre mão da qualidade para manter a quantidade dos alimentos. 18% dos lares entrevistados citaram essa situação quando a pesquisa foi realizada no fim de 2023. A insegurança moderada se refere a famílias que às vezes precisam abrir mão da quantidade de comida que é consumida, quando acontece uma ruptura no padrão de alimentação daquelas pessoas, normalmente entre os adultos. Aqui apareceram 5% dos domicílios da pesquisa.
Conrado: E por fim existe a insegurança grave que ocorre quando falta comida e a família, incluindo crianças, passa a conviver com a fome. 4% dos lares brasileiros reportaram insegurança grave pro IBGE, o que equivale aos quase nove milhões de pessoas que a gente falou no início. Esses números não se distribuem de forma homogênea na população, mas seguem um mapa conhecido das desigualdades do país.
[áudio IBGE]
“Essa insegurança alimentar também, ela é observada ser desigual. Existem desigualdades. Domicílios no Norte e Nordeste apresentam nível de insegurança alimentar maior se comparado com aqueles domicílios das regiões Sudeste e Sul, por exemplo.”
Leticia: Você ouviu aí o André Luiz Martins Costa, que é o analista da pesquisa do IBGE, comentando os resultados num áudio disponibilizado pelo instituto. Ele destaca primeiro a questão geográfica. Se na média brasileira são quase 28% dos lares que enfrentam algum nível de insegurança alimentar, ou mais ou menos um a cada quatro, como a gente falou no início, nas regiões Norte e Nordeste esse total sobe pra quase 40%. Em comparação, na região Sul são 17% dos lares. Ao mesmo tempo, regiões rurais têm mais incidência de insegurança alimentar do que as cidades.
[áudio IBGE]
“Domicílios, por exemplo, onde a pessoa responsável pelo domicílio é mulher têm uma associação maior a insegurança alimentar do que com a segurança alimentar. O mesmo acontece para aqueles domicílios cuja pessoa é responsável é de cor ou raça preta ou parda quando comparado a domicílios com a pessoa responsável pelo domicílio ser de cor branca.”
Conrado: Aí o André de novo. A incidência de insegurança alimentar no Brasil é maior entre pessoas pretas e pardas, assim como entre mulheres. Isso reflete as desigualdades de distribuição de renda no país. De forma geral, pessoas de baixa renda estão mais sujeitas a problemas no acesso à alimentação no Brasil. Na pesquisa do IBGE, metade das casas com insegurança alimentar moderada ou grave tinha rendimento por pessoa menor que meio salário mínimo.
Leticia: Os problemas de acesso à comida também afetam mais os lares com crianças e adolescentes. Em quase 40% dos domicílios com bebês de zero a quatro anos havia algum grau de insegurança alimentar. No caso das crianças, o acesso irregular à alimentação adequada, que no limite pode causar desnutrição, pode ter efeitos no longo prazo, como atrasos no crescimento, dificuldades de aprendizado e maior risco de desenvolver doenças crônicas.
Conrado: Tem uma outra camada do problema da insegurança alimentar atualmente que é a falta de acesso a nutrientes. Isso porque muitas vezes as famílias mais pobres só conseguem comprar alimentos mais baratos, que no Brasil cada vez mais são os ultraprocessados, como salsicha e miojo. Esses alimentos têm índices altos de açúcar, sódio e gordura, o que prejudica a saúde e não nutre a pessoa como deveria. Um estudo da Unicef de 2021 identificou um alto consumo de ultraprocessados entre beneficiários do Bolsa Família.
[mudança de trilha]
Leticia: O IBGE mediu a insegurança alimentar em 2023 como parte da Pnad Contínua, que é uma pesquisa que a cada trimestre consulta cerca de 210 mil domicílios espalhados por aproximadamente 3.500 municípios brasileiros. É a mesma que coleta dados sobre desemprego. O levantamento anterior do IBGE sobre acesso a alimentos foi realizado entre 2017 e 2018, na Pesquisa de Orçamentos Familiares, que usa metodologia comparável com a Pnad.
Conrado: Em relação a 2018, a insegurança alimentar caiu no Brasil. Naquela época 37% dos domicílios enfrentavam algum nível do problema, enquanto agora são 28%. A série histórica começa em 2004, e desde então o melhor resultado foi em 2013, quando 22% dos lares tinham algum tipo de insegurança alimentar.
Leticia: O IBGE atribui a melhora entre 2018 e 2023 a investimentos em programas sociais, redução do preço dos alimentos e recuperação econômica. A insegurança alimentar e a fome costumam aumentar durante períodos de crise econômica, quando cresce o desemprego e cai o rendimento da população. O Brasil passou por um período assim entre 2014 e 2016, no governo Dilma Rousseff. E antes de se recuperar completamente, em 2020 veio a pandemia de covid-19.
Conrado: O instituto não fez pesquisas sobre insegurança alimentar durante os piores anos da pandemia, quando a crise sanitária acentuava as desigualdades brasileiras. Mas talvez você se recorde que naquela época saiu um dado de que havia mais de 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil, com insegurança alimentar grave.
Leticia: Tem um contraste grande aí entre os números, já que em 2023 o IBGE identificou 9 milhoes passando fome. Essa pesquisa feita na pandemia não foi produzida pelo instituto, mas sim pela Rede Penssan, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Esse grupo reúne centenas de pesquisadores de diversos institutos de ensino e pesquisa. Tanto a Rede Penssan quanto o IBGE se baseiam na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Essa escala é um roteiro de perguntas de “sim ou não” sobre a situação de acesso a alimentos nos 90 dias anteriores à entrevista. Um exemplo de pergunta é o sequinte: “Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?”. E por aí vai.
Conrado: Mas existem diferenças metodológicas. A Rede Penssan usou uma versão mais curta do questionário daquela usada que o IBGE. Há também diferença no tamanho das amostras. O levantamento da Rede Penssan, que foi feito entre novembro de 2021 e abril de 2022, entrevistou cerca de 13 mil domicílios em 577 municípios brasileiros. O IBGE, como a gente falou, abrange muito mais gente.
[mudança de trilha]
Leticia: Essas diferenças metodológicas não permitem fazer uma comparação direta entre os números, ou seja, dizer que a fome despencou de 33 milhões pra 9 milhões. Mas mudou muita coisa nos momentos em que as pesquisas foram feitas. No período em que a Rede Penssan foi às ruas, durante a pandemia, o desemprego tava em patamares elevados. A renda real dos brasileiros estava em queda, refletindo em boa medida a corrosão do poder de compra pela inflação. Era um período de transição entre o fim do auxílio emergencial da pandemia e o Auxílio Brasil, criado pelo governo Jair Bolsonaro no lugar do Bolsa Família.
Conrado: No fim de 2023, primeiro ano de um novo mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o IBGE coletou os dados num contexto diferente, pós-pandemia. O desemprego havia caído. A renda real estava crescente, enquanto a inflação estava baixa. Lula também expandiu programas sociais. Ampliou o orçamento do Bolsa Família, e aprovou um reajuste do salário mínimo com ganho real. Também retomou algumas políticas mais específicas de combate à insegurança alimentar que haviam sido interrompidas por Bolsonaro.
Leticia: Seja qual for a queda nos dados, a fome não deveria ser uma realidade pra ninguém. Então como fazer esses números caírem ainda mais? Bom, o Brasil já conseguiu reduzir a insegurança alimentar de forma significativa entre 2004, quando começou a medição do IBGE, até 2014, ano em que o país saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas. E o relatório da ONU daquele ano destaca elementos que permitiram essa evolução.
Conrado: Entre esses elementos estão a prioridade política, aumento orçamentário para programas sociais e políticas de segurança alimentar. Tem também aumento da renda, fortalecimento da agricultura familiar e da merenda escolar, além de articulação entre áreas do governo e a sociedade civil.
Leticia: Pesquisadores que estudam a segurança alimentar defendem ainda medidas como ações de incentivo ao aleitamento materno, o fortalecimento dos chamados estoques reguladores de alimentos, que permitem controlar o preço quando há mudança no mercado, e a garantia do acesso à água. Além disso, governos locais e a sociedade civil também podem contribuir pro combate à fome com doações, comprando da agricultura familiar e criando cozinhas e hortas comunitárias, por exemplo.
Conrado: Os desafios pra enfrentar a insegurança alimentar também mudaram nessas últimas décadas. Pra garantir acesso a nutrientes necessários pra um desenvolvimento saudável, agora também é preciso lidar com o consumo crescente de produtos ultraprocessados, o avanço da obesidade e doenças crônicas em diversas parcelas da população e os impactos que o atual sistema alimentar tem no meio ambiente e no clima.
Leticia: O Durma com Essa volta já.
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[trilha redação]
Conrado: Em 25 de abril de 1984, o Brasil passou por um dia de esperança e frustração. Depois de mais de um ano de campanha pelas Diretas Já, que mobilizou milhões de pessoas no país, a Câmara dos Deputados rejeitou a chamada Emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleição direta para presidente da República. A Mariana Vick escreveu sobre a data aqui no Nexo. Mariana, o que foi a Emenda Dante de Oliveira?
Mariana: A Emenda Dante foi uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada ao Congresso Nacional em 1983 por Dante de Oliveira, deputado federal do PMDB de Mato Grosso eleito no ano anterior. Ela tinha um texto breve, que estabelecia mudanças em dois artigos da Constituição de 1967, trazendo de volta o voto direto e secreto para presidente e vice-presidente da República. Fazia mais de 20 anos que a população brasileira não elegia um presidente. O último tinha sido Jânio Quadros, em 1960, quatro anos antes do início da ditadura militar. Além de levar o nome do autor, Dante de Oliveira, a emenda tinha sido subscrita por mais de 173 deputados federais e 24 senadores. A proposta recebeu apoio popular assim que foi apresentada, dando início a um movimento político suprapartidário pró-eleições diretas que durou mais de um ano, promoveu comícios em todo o Brasil e ficou conhecido como Diretas Já.
Conrado: E Mariana, por que o Congresso rejeitou a emenda?
Mariana: A emenda foi discutida por mais de um ano por uma comissão mista no Congresso presidida pelo então senador Itamar Franco. Para ser aprovada, ela deveria passar por votações na Câmara e no Senado. A votação na Câmara, a primeira, ficou marcada para o dia 25 de abril de 1984. A expectativa da população, que acompanhava as Diretas Já fazia meses, era que o texto fosse aprovado. Mas não foi o que aconteceu. A emenda Dante recebeu 298 votos. Faltaram 22 dos 320 necessários para que a Câmara passasse o texto. A principal razão para isso foi a falta de quórum. Cento e treze deputados, a maioria do PDS, partido de apoio do regime militar, não compareceram à sessão da Câmara por ordens do topo da hierarquia da sigla. A pressão do governo federal para que o texto não passasse era grande, segundo relatos de políticos da época. E mesmo entre os políticos democratas já se sabia que a emenda provavelmente não iria passar, já que ela poderia representar um rompimento radical com os militares que não era desejado naquela época, de abertura “lenta e gradual” do regime. Eu conversei com um historiador para entender um pouco mais o que aconteceu nas articulações da votação.
Conrado: Você lê o texto da Mariana Vick no nexojornal.com.br
[trilha final]
Leticia: Do quadro da insegurança alimentar e da fome no Brasil aos 40 anos da votação no Congresso que frustrou a campanha Diretas Já, durma com essa.
Conrado: Com roteiro, produção e apresentação de Letícia Arcoverde, apresentação e edição de texto de Conrado Corsalette, participação de Mariana Vick e edição de áudio de Pedro Pastoriz, termina aqui mais um Durma com essa. Amanhã é dia de Extratos da Semana, quando a gente traz um resumo das principais notícias dos dias recentes. Até
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