O caso da filha de Samara Felippo. E o racismo nas escolas
Conrado Corsalette e Aline Pellegrini
29 de abril de 2024(atualizado 30/04/2024 às 13h40)Garota de 14 anos foi vítima de colegas em colégio de elite em São Paulo. Entenda como situações assim exigem reações complexas, que envolvem toda a comunidade de ensino
Samara Felippo disse nesta segunda-feira (29), em entrevista ao programa “Encontro”, da TV Globo, que não é possível relativizar um crime previsto em lei. A atriz se referia ao racismo sofrido dias antes por sua filha de 14 anos num colégio de elite de São Paulo. Ela registrou um boletim de ocorrência e pede a expulsão das adolescentes agressoras da escola. O Durma com Essa explica o caso, expõe o debate que ele suscitou e mostra como ambientes de ensino podem lidar com situações assim. O programa tem também Isadora Rupp falando sobre o lugar do governo Lula na régua político-ideológica.
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Edição de áudio Pedro Pastoriz
Produção de arte Mariana Simonetti
Transcrição do episódio
Conrado: Mais um caso de racismo num colégio de elite. Desta vez, envolvendo a filha de uma atriz de TV. Um episódio que expõe impactos de atos de violência levados adiante pelas próprias crianças e adolescentes. Um exemplo que reacende o debate sobre o papel da escola e dos pais de alunos na prevenção, na mediação e nas ações para a resolução de tais situações. Eu sou o Conrado Corsalette e este aqui é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Aline: Olá, eu sou a Aline Pellegrini e estou aqui com o Conrado para apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, no início da noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
Conrado: Segunda-feira, 29 de abril de 2024. Dia em que a atriz Samara Felippo falou ao programa Encontro, de Patrícia Poeta, na TV Globo, sobre o episódio ocorrido com a filha dela, de 14 anos, uma semana antes num colégio de elite de São Paulo.
Samara: “Como foi noticiado, a minha filha mais velha foi vítima de racismo na escola, e não é a primeira vez. Quando eu morava no Rio de Janeiro isso já tinha acontecido. Queria também deixar claro que sou contra qualquer tipo de cancelamento, linchamento… A noticia vazou dos grupos de Whatsapp, em debate com os pais da escola, e se espalhou rapidamente. Na última segunda-feira, dia 22, a minha filha teve o caderno roubado e as páginas arrancadas violentamente de um trabalho extenso de pesquisa que valia nota para ela. E dentro desse mesmo caderno tinha uma frase de cunho racista grave e criminosa.”
Aline: A atriz, que atuou em inúmeras novelas na Globo e na Record, opinou também sobre o papel de cada um a fim de combater esse problema.
Samara: “Não dá mais para as escolas relativizarem um crime previsto em lei. Esse debate precisa ser levado adiante com seriedade, com comprometimento. Porque, para mim, educação antirrascista é uma soma. É a soma da instituição de ensino, dentro da nossa própria casa, né? os pais… E a sociedade em si. Desde pequena eu converso com a minha filha sobre o que é o racismo, o mal que ele causa à sociedade — até para ela nomear, combater, se proteger. Então, conversem com seus filhos, levem o debate para dentro de casa.”
Conrado: O episódio veio à público na semana passada. A filha da atriz estuda no Vera Cruz, na zona oeste paulistana. Ela é fruto de um casamento, já terminado, da Samara com Leandrinho, ex-jogador de basquete da NBA e da seleção brasileira. O caderno da garota foi vandalizado por duas colegas com idades semelhantes. O que sobrou do caderno, com a mensagem racista, foi parar no departamento de achados e perdidos do colégio e depois recuperado pela vítima.
Aline: Numa mensagem publicada no grupo de WhatsApp dos pais, Samara Felippo escreveu que ainda estava digerindo tudo. “Cada vez que olho o caderno dela ou vejo ela debruçada sobre a mesa refazendo cada página dói na alma. Choro. É um choro muito doído”. A atriz relatou que teve reuniões com a direção da escola, mas não se sentiu satisfeita com a providência inicial, que foi o afastamento das duas adolescentes envolvidas no episódio. Ela queria a expulsão da dupla. “Não escrevo aqui embargada de tristeza e dor para pedir isso à toa. Os atos hostis e excludentes vem sendo cada vez mais violentos e reincidentes. Minha filha, pela primeira vez, reconheceu o racismo, ele se materializou na frente dela. Antes ela queria não enxergar, doía ver. Ela só queria fazer parte de uma turma e era excluída de trabalhos, grupos, passeios… Aceitava qualquer migalha e deboche feito pelas mesmas garotas, e seu nome sempre era jogado em fofocas, ‘disse me disse’ e culpada por atos que não cometia.”
Conrado: Os pais de uma das adolescentes acusadas de racismo também se pronunciaram. Disseram que a filha admitiu o que fez voluntariamente, pediu desculpas à vítima. “Estamos todos nessa comunidade depurando as consequências desses atos de violência. Não foi o primeiro caso de violência racial no Vera Cruz. Nem o Vera é um caso isolado nas escolas de São Paulo. As escolas são um microcosmos dessa nossa sociedade estruturalmente racista e violenta. Nos consideramos uma família progressista, que há anos busca caminhar e evoluir numa educação antirracista”. Ainda na mensagem, o casal informou que, depois de muita reflexão, decidiu que a melhor solução era tirar a filha do colégio. Destacou que a filha nunca tinha sido alvo de outras denúncias de mau comportamento. Que é uma adolescente que comete erros e acertos, como todos já cometeram em nossas vidas. O casal concluiu: “Esperamos que os necessários debates da luta antirracista dentro de uma instituição de ensino com jovens em formação se deem com lucidez e razão. Esperamos que as discussões que continuam após esse episódio gerem luz e soluções efetivas. Dentro de nossas possibilidades, vamos contribuir para isso”.
Aline: Como você pôde notar, a troca de mensagens trouxe considerações importantes em relação ao episódio, que levam a um debate necessário. Muitas escolas de elite, de maioria branca, têm grupos antirracistas, onde são discutidas formas de evitar e mediar conflitos, assim como analisar questões estruturais da sociedade e buscar maneiras de evitar que violências se reproduzam no ambiente de ensino. O Vera Cruz tem um grupo assim. O colégio divulgou uma mensagem para os pais de alunos, dizendo que estava trabalhando diligente e cuidadosamente sobre o caso e se comunicando intensamente com as famílias envolvidas. Disse que acolheu a vítima da agressão e trabalhou para que as alunas agressoras entendessem a dimensão do que haviam feito. Promoveu também um encontro entre as três estudantes com mediação da escola. As adolescentes que vandalizaram o caderno da colega, arrancando as páginas e escrevendo a frase de teor racista, foram suspensas por tempo indeterminado. A escola destacou que é a primeira vez que as duas se envolvem em um episódio assim. A extensa mensagem também afirmou: “Ressaltamos que outras medidas punitivas poderão ser tomadas, se assim julgarmos necessárias após nosso intenso debate educacional. Ações de reparação ainda serão definidas”.
[mudança de trilha]
Conrado: Além de pedir a expulsão das alunas envolvidas no episódio com sua filha, a atriz Samara Felippo foi à polícia registrar um boletim de ocorrência. Racismo é crime no Brasil. Como se trata de pessoas com menos de 18 anos, atitudes assim podem ser punidas com medidas socioeducativas, como define o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O grande desafio, porém, se dá no ambiente escolar. Como prevenir, mediar e tomar atitudes proporcionais, que possam de fato contribuir para cessar tal violência?
Aline: O racismo contra crianças e adolescentes negros em escolas costuma revelar uma falta de habilidade de gestores e professores ao lidar com o tema. Isso porque, não raro, parte dos colégios trata os casos como bullying comum. Não é um problema simples. Os episódios podem assumir diferentes características. Podem ser casos de racismo recreativo, que se manifestam por meio de piadas depreciativas, de agressões verbais ou por escrito, como no caso da filha de Samara Felippo. Podem assumir formas ainda mais graves, como perseguição e ameaça à integridade física.
Conrado: Ednéia Gonçalves, coordenadora-executiva da organização Ação Educativa, falou numa entrevista ao Nexo por que é importante diferenciar o racismo do bullying. Ela disse o seguinte: “O bullying subjuga o indivíduo. O aluno coloca outro em posição de subalternidade, de fraqueza. Quando você fala em racismo, você está falando na coletividade. A escola tem que acolher não só a pessoa que sofreu racismo, mas voltar a atuação para toda a comunidade escolar”.
Aline: Os trabalhos de prevenção também contam bastante. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases, é dever das escolas, por exemplo, contar a história do Brasil considerando a contribuição dos povos negros e indígenas. Com crianças, é possível fazer isso com jogos, brincadeiras, narração de histórias e outras atividades lúdicas, que servem também para estimular a convivência entre grupos diferentes. Com adolescentes, é possível fazer o mesmo com debates a partir das experiências de jovens negros. Ednéia Gonçalves complementa: “Com protagonismo da juventude negra, dá para discutir formas de vivência e enfrentamento do racismo. Mas, além de violências, dá para falar de experiências positivas, como as de produção de cultura — de enfrentar preconceitos com o rap, o samba, o funk”.
Conrado: Uma pesquisa publicada em 2017 pela Universidade Federal de Santa Catarina demonstrou que abordagens pedagógicas que valorizam a diversidade têm o potencial de desconstruir estigmas e preconceitos, promovendo a empatia e o respeito mútuo. De acordo com os pesquisadores, a educação antirracista não apenas enriquece o conhecimento histórico dos alunos, mas também estimula a formação de cidadãos mais conscientes, capazes de contribuir ativamente para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Aline: A Unicef, fundo das Nações Unidas para a Infância, tem um guia que trata do assunto, com dicas bastante simples. Uma das principais estratégias recomendadas é fazer perguntas às crianças e aos jovens que provoquem reflexões sobre o tema. No caso das crianças, perguntar, por exemplo, “quantas bonecas negras e indígenas você já viu?”. No caso dos adolescentes, estimular reflexões sobre “como pessoas negras e indígenas são representadas historicamente na TV e no cinema”.
Conrado: Contratar pessoas negras para diferentes cargos da escola, professores, gestores, funcionários no geral, também é importante para promover uma educação antirracista. Vou recorrer aqui a outro ponto levantado pela coordenadora-executiva da Ação Educativa. “Um dos maiores desafios das escolas de elite é superar o mito da democracia racial — ideia que defende que o Brasil é um ‘paraíso racial’, com harmonia entre brancos e não brancos. Esse mito é muito mais fortalecido nesses ambientes.”
Aline: O Durma com Essa volta já.
[mensagem Rádio Novelo]
[trilha da redação]
Aline: Levando em conta uma régua político-ideológica, onde você colocaria o atual governo Luiz Inácio Lula da Silva? Esquerda? Centro-esquerda? Centro-direta? Ou alguma outra sugestão mais heterodoxa? Eu estou fazendo essas perguntas porque o tema ocupou espaço no cenário político da semana passada. A Isadora Rupp escreveu sobre o assunto e conta o que aconteceu.
Isadora: “A polêmica toda surgiu depois que o José Dirceu disse em um evento em São Paulo, na semana passada, que o terceiro governo de Lula é um governo de centro-direita. Abre aspas aqui pra ele: ‘Lula montou um governo que não é de centro-esquerda, é um governo de centro-direita. Eu falo isso e todo mundo fica indignado dentro do PT. Mas essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos’, fecha aspas. O ex-chefe da Casa Civil de Lula referia-se aqui ao avanço da extrema direita na política, tanto no Brasil como internacionalmente, e que a única maneira de conseguir governar é ampliar esse leque de diálogos. Depois ele voltou atrás, e disse que a sua fala se refere apenas aos apoios, e não a uma postura ideológica. Dirceu é um nome histórico dentro do PT: é um dos fundadores do partido e foi um ministro super-poderoso do primeiro mandato de Lula. Ele caiu depois do escândalo do mensalão, em 2005, e, no mesmo ano, o seu mandato como deputado federal foi cassado. Dirceu foi condenado pelo STF em 2012 no esquema de corrupção e ficou preso de 2015 a 2018, após outras condenações, no âmbito da Operação Lava Jato. No ano passado, Dirceu foi absolvido de uma ação penal da Lava Jato, mas ainda está implicado em outras. Mesmo assim, a defesa do petista espera que outros processos também sejam anulados. Se isso ocorrer, o Zé Dirceu não descarta a possibilidade de se candidatar em 2026.”
Aline: E, Isadora, pelas entrevistas que você fez, onde afinal está o governo Lula, neste terceiro mandato do petista, na régua político-ideológica?
Isadora: “Nós conversamos com sete cientistas políticos pra entender em qual espectro, afinal de contas, está o atual governo Lula. Não há dúvidas de que a gestão petista mantém a sua essência de centro-esquerda, principalmente no combate às desigualdades sociais. Esse é basicamente o ponto de inflexão que separa a esquerda de parte da direita, que é a rejeição ou aceitação das desigualdades como algo natural. Mas alguns dos nomes que eu ouvi disseram que o governo Lula 3 tem, de fato, traços à direita. Seja nas alianças que fez ainda antes das eleições, ao colocar Geraldo Alckmin, um adversário histórico, como vice, seja na prioridade das pautas. O foco de 2023, por exemplo, foi o arcabouço fiscal e uma reforma tributária importante, mas até aqui restrita aos impostos sobre consumo, sem mexer de forma profunda na questão da renda. Também entra na equação a necessidade. A aproximação de um presidente de centro-esquerda com mais atores de direita é pragmática: sem apoio majoritário do Congresso Nacional, Lula necessita dos votos de deputados de direita para conseguir aprovar projetos importantes, porque a ideia de governar não é apartada de composições. Além disso, o Lula, neste terceiro governo, já não tem uma aprovação tão alta e precisa lidar com presidentes da Câmara e do Senado, o Arthur Lira e o Rodrigo Pacheco, que acumularam poderes de agenda. Existe por fim uma disputa sobre a régua da esquerda e da direita. E aí um dos entrevistados por mim citou um conceito chamado janela de overton. Esse termo foi cunhado pelo cientista político Joseph Overton. Ele diz basicamente que, quando o extremismo ganha força, como tem acontecido no mundo nos anos recentes com a extrema direita, ele tende a puxar o centro da régua mais para o lado dele. Por exemplo: pergunte a um bolsonarista se ele se acha de extrema direita? Ele dirá que não. Que é apenas de direita ou até de centro-direita. E aí, todo mundo vira esquerdista, mesmo centristas de fato mais alinhados à direita. Já um político moderado como o Lula vira esquerdista radical. Ou seja, o que acontece é que a régua do espectro político acaba ficando um tanto distorcida.”
Aline: O texto da Isadora você lê em nexojornal.com.br.
Conrado: Do racismo nas escolas de elite ao lugar do governo Lula no espectro político, Durma com Essa.
Aline: Com roteiro, produção e apresentação de Conrado Corsalette, edição de texto e apresentação de Aline Pellegrini, colaboração de Mariana Vick e Cesar Gaglioni, participação de Isadora Rupp, produção de arte de Mariana Simonetti e edição de áudio de Pedro Pastoriz, termina aqui mais um Durma com Essa. Amanhã a gente volta. Até!
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