Coluna

Januária Cristina Alves

On e offline: construindo redes de proteção para crianças

21 de novembro de 2024

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É tarefa de todos nós encontrar maneiras de educar esses meninos e meninas para a autogestão e o autocontrole

Quando 26 influenciadores digitais que, juntos, somam perto de 100 milhões de seguidores nas redes sociais, se reúnem em torno de um tema, alguma coisa de muito relevante (e preocupante) está acontecendo. “Redes de Proteção” foi o evento realizado pela organização sem fins lucrativos Redes Cordiais, que se dedica à Educação Midiática para os influenciadores digitais, em parceria com a Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, com o objetivo de debater e encontrar caminhos para a proteção de crianças e adolescentes no mundo digital. O projeto inicia um importante movimento de construção de uma rede colaborativa envolvendo governo federal, plataformas digitais, influenciadores e especialistas, e também de pais e educadores. Além do encontro, que gerou uma série de postagens nas redes sociais, a instituição prepara um guia com recomendações específicas para os produtores de conteúdo na internet para que privilegiem conteúdos íntegros e saudáveis para esse público, a ser publicado em breve.

Todos esses atores se reuniram por mais de 10 horas em torno de um consenso comum: é necessário proteger as crianças no ambiente online assim como fazemos no offline. Já não é mais possível permitir que acessem as plataformas sem uma moderação responsável dos conteúdos ali disponíveis, sem uma orientação segura para pais, educadores e responsáveis – que são tão desinformados sobre seu funcionamento quanto as crianças -, sem uma construção de ambientes mais amigáveis e lúdicos, ao invés de viciantes e hostis, enfim, sem uma preocupação genuína de todos os setores da sociedade com o “dever de cuidado” previsto em documentos como a nossa constituição, por exemplo. “São enormes os dados de crianças e adolescentes que não veem mais sentido na vida, que dizem que a vida não está mais valendo a pena ser vivida, e muitas vezes a culpa disso é nossa”, postou o influencer Tadeu França, cujo enfoque é a parentalidade responsável, chamando atenção para a responsabilidade de todos nós diante do quadro preocupante que se apresenta.       

Crianças e adolescentes têm uma enorme consciência dos perigos e oportunidades trazidos pelo mundo digital

“Ele [meu pai] fica me controlando pelo celular dele. Só que aí ele trabalha de sete da manhã até umas quatro da tarde por aí. (…) aí quando ele chega, ele não conversa comigo nem nada. Ele só chega e vai dormir. Então, eu acho que ele deveria conversar, perguntar como foi o dia. Levar pra sair, sei lá. Tomar um açaí, sei lá. Levar pra brincar, alguma coisa assim. Porque aí eu não ia nem sentir falta do celular. Mas eu fico metade da tarde sozinha em casa e não tem nada pra fazer, então… E quando ele fica com raiva de mim, (quando) eu faço alguma coisa que ele não gosta, ele bloqueia o meu celular… (Eu acho que) o principal remédio para a depressão (das crianças) é a família estar mais presente”, afirmou C., de 12 anos, aluna de uma escola pública de Brasília, com quem conversei sobre o uso do celular e os cuidados que devem ser tomados na internet pelas crianças e adolescentes. “Tem gente que proíbe muito, mas minha mãe até que é de boa. Eu tenho a senha (do celular), eu posso instalar qualquer coisa, mas vai precisar dela (para autorizar). Mas é como ela disse (a colega de escola): tem outros jeitos, né, de estar próximo. Estando presente, eu acho. Conversando, saindo com o filho, chamando pra fazer alguns posts. Perguntando como foi o dia. Então, porque (o filho) sentiu um pouco a atenção, teve um momento com ele, vai ter mais confiança”, arremata o garoto J., de 13 anos, da mesma escola.

A fala dessas crianças e adolescentes demonstra uma enorme consciência dos perigos e oportunidades trazidos pelo mundo digital. A “geração ansiosa” como denominou o psicólogo Jonathan Haidt, autor do best-seller do mesmo nome que tem chamado atenção para os danos de uma infância hiperconectada, ou a “geração algorítmica”, aquela que será moldada pela influência da inteligência artificial, segundo os pesquisadores Caio Túlio Costa e Stephanie Jorge, da plataforma de monitoramento digital Torabit, já reconhece que está  diante de muitos desafios, e tem pedido ajuda para lidar com eles. A pesquisa etnográfica “O mundo que sei”, realizada pelo Espaço Ekoa, que ouviu, por meio da metodologia de escuta sensível, 170 crianças de 6 a 12 anos, de cinco localidades diferentes da cidade de São Paulo, atestou que as crianças “querem ser ouvidas e têm opiniões fortes e surpreendentes sobre os principais assuntos do nosso tempo. Não estão, por exemplo, nada contentes com o mundo que estamos deixando para elas. Têm consciência do que vem causando desastres ambientais, desigualdade social, guerras e a violência que permeia nossas relações. Também são críticas quanto à escola que é oferecida para elas e sabem que exageram no tempo que dedicam à internet e aos eletrônicos em geral”, afirma Ana Paula Yazbek, sócia diretora do Espaço Ekoa, no relatório da pesquisa disponível no site do projeto. Para a antropóloga Adriana Friedman, que liderou a equipe de pesquisadores, “o que as crianças estão vivendo escapa à compreensão dos adultos” e, por isso, é tão importante ter uma escuta ativa para o que elas têm a dizer e quais saídas vislumbram para essas questões.   

Os dados mais recentes da pesquisa TIC Kids Online, do CGI.br em parceria com a Unesco, mostram que 93% das crianças e adolescentes estão online, sendo que 98% acessam a internet por meio de celulares. Os resultados dão conta de que 42% deles já presenciaram discriminação online e 29% relataram ter sido vítimas de situações ofensivas ou perturbadoras. Porém, é animador observar que, em que pese esse quadro preocupante, a pesquisa também revela que 68% sabem identificar quando alguém está sendo vítima de bullying online e 31% buscam apoio de pais ou responsáveis em situações difíceis. Ou seja, nem tudo está perdido, especialmente quando prestamos atenção às próprias crianças e adolescentes, incluindo-os na construção dessas redes de proteção criadas em prol do seu bem-estar na internet. 

O consenso a que chegamos no evento dá conta de que é preciso, cada vez mais, que as plataformas esclareçam os usuários sobre seus mecanismos de funcionamento, que produzam relatórios de transparência sobre moderação de conteúdo (e pratiquem essa moderação com a seriedade e celeridade necessárias), divulguem com mais afinco e clareza como os pais e cuidadores podem operar seu controle parental, estabeleçam e cumpram as regras de controle de acesso pela idade – que deve ser definida de comum acordo para todas as plataformas -, e que promovam ações educativas para o uso consciente das redes sociais principalmente para o público infantojuvenil.  

Diante de riscos como as apostas online, radicalização, abuso e exploração sexual infantil, superexposição e publicidade direcionada especificamente para eles, a urgência dessas ações foram colocadas pelo grupo como prioridade e também como responsabilidade de toda a sociedade, que deve cobrar os organismos envolvidos e sobretudo, fazer a sua parte.  É tarefa de todos nós encontrar maneiras de educar esses meninos e meninas para a autogestão e o autocontrole, tanto no mundo on como no offline. Isso é empoderá-los e dar-lhes o protagonismo tão propagado como necessário para que possam tomar decisões inteligentes e saudáveis sobre seu futuro. Como me disse um garoto de 11 anos de uma escola do estado de São Paulo, quando perguntado sobre que internet gostaria de ter no futuro: “a internet não é boa e nem ruim, ela é e será o que a gente quiser que ela seja. É a gente que faz a internet, né?”. É. E tenho dito.

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Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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