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Movimento Pessoas à Frente
A hora e a vez da modernização dos concursos públicos
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O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está retomando a realização de concursos públicos, parte importante do esforço de reconstrução nacional, após um período de destruição e desmanche institucional. Nos últimos anos ocorreram poucos concursos públicos, em geral direcionados para as áreas em que os governantes do dia buscavam fidelizar corporações. Encontra-se também no Senado, em estágio final de tramitação, o Projeto de Lei 2.258/2022, uma espécie de Lei Geral de Concursos Públicos. Trata-se de um processo legislativo de 23 anos, previsto na Constituição Federal de 1988 e iniciado com o Projeto de Lei do Senado 90/2000 que, por sua vez, deu origem ao PL 252/2003; este teve 58 projetos subsequentes entre 2004 e 2022, originando o PL aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados em meados de 2022.
Concursos são a forma clássica de seleção para o serviço público meritocrático profissional. Mesmo para a ocupação de cargos temporários, a norma prevê um tipo de certame, as chamadas seleções simplificadas. Grosso modo, o Brasil é um país em que a modernização da administração pública ainda se encontra em um estágio intermediário se comparado com as burocracias das nações desenvolvidas. Clientelismo, nepotismo e favoritismo continuam presentes no setor público, em especial nas esferas estadual e municipal. Mesmo no governo federal, observa-se uma série de arranjos institucionais que, de alguma maneira, precarizam a força de trabalho em ministérios importantes da área social – como Saúde, Educação e Desenvolvimento Social – e comprometem a qualidade das políticas públicas e das entregas pelas quais são responsáveis.
A dinâmica dos concursos públicos, com raras exceções, é espasmódica. Acontecem com frequência irregular, dependendo de prioridades, crises e disponibilidades de recursos. Os mesmos acontecem quando governos sensíveis à necessidade de se fortalecer as capacidades estatais assumem o desgaste de realizá-los. Comumente são criticados por segmentos políticos e do mercado que possuem uma visão negativa e, em alguns casos, criminalizadora da função pública, porque associam gastos com funcionários públicos com descalabro fiscal e promoção de comportamentos parasitários.
Em linhas gerais, os concursos públicos são trabalhosos, demorados e caros. Dentre seus maiores problemas está a frequente judicialização, o que leva seus organizadores a evitarem correr riscos associados à formulação de provas escritas com questões dissertativas, à adoção de exames práticos para aferir habilidades (com simulações de tarefas típicas do posto) e mesmo à utilização de testes psicotécnicos. Nesses três casos, o temor da enxurrada de recursos e das ações judiciais, bem como os custos e atrasos associados às estas práticas, levam as organizações públicas que comissionam os concursos e as entidades organizadoras a optarem por certames de etapa única, composta por prova de questões de múltipla escolha. Recorrentemente, essas avaliações se restringem a aferir conhecimentos – tipicamente conteúdos acadêmicos – que, por vezes, não guardam relação com as atribuições do cargo.
A modernização da administração pública no Brasil ainda se encontra em estágio intermediário se comparado com as nações desenvolvidas
O espírito do Projeto de Lei em discussão no Congresso é proporcionar mais segurança jurídica para que os concursos públicos inovem na realização das provas em termos de tipos de exames e atributos de avaliação, de modo a selecionar candidatos mais aptos para o desempenho das funções públicas para as quais os governos estão contratando. Além disso, a iniciativa prevê o uso das tecnologias de informação e comunicação nos certames – que necessitam de regulamentação a posteriori –, como a aplicação de provas online, em ambientes controlados (tal como o Enem Digital), com o intuito de baratear a realização e até mesmo viabilizar concursos públicos que, às vezes, envolvem milhares de pessoas do Brasil inteiro.
A proposição prevê um prazo de até quatro anos para que seja adotada, tempo condizente para a aprendizagem das organizações públicas e sua devida experimentação. Ademais, cabe salientar que muitas de suas prerrogativas são opcionais, não compulsórias. Isto significa que a norma não obriga os órgãos públicos a fazerem o concurso público de uma determinada maneira (ou seja, não obriga o tipo de prova e a forma de avaliação), mas, sim, explicita um rol de possibilidades sem o receio de insegurança jurídica e que sejam adequados ao recrutamento e seleção de cada cargo ou carreira pública.
A aprovação dessa legislação federal, a qual permite que estados e municípios a ela se reportem, contribuirá para que o Estado brasileiro selecione melhor seus servidores e gaste menos com profissionais que, por variadas razões, não estejam alinhados com os conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que são fundamentais para o ofício em prol do interesse público. Neste contexto, vale comentar o quão importante é também o fortalecimento de todo o sistema de ingresso no serviço público que, além do concurso público em sintonia com o planejamento da força de trabalho, requer bastante atenção nos processos de alocação funcional, socialização organizacional e avaliação do desempenho; neste caso, com um estágio probatório que não seja uma mera formalidade.
Riscos de mau uso dos dispositivos previstos na nova proposição, certamente, existem. Particularmente no caso da adoção de tecnologias – o que já está acontecendo no setor privado nacional e no setor público de outros países. É natural uma certa prudência, mas não o negacionismo. Não se comparam com as certezas que se têm de que é preciso modernizar os concursos públicos no país. O supracitado prazo de quatro anos para que a lei entre em vigor é um convite à acuracidade da regulamentação das provas online (ou por plataforma eletrônica) e um incentivo à sua prototipagem.
Uma outra forma de se ingressar no serviço público, menos discutida, é por meio dos cargos de confiança, isto é, da política para escolha dos dirigentes públicos. Recentemente fundações do terceiro setor têm encorajado e apoiado alguns governos estaduais a utilizarem técnicas de recrutamento e seleção mais ágeis, que incluem entrevistas, análises de currículos e foco nas competências de direção. Vários atos normativos recomendam que estas escolhas levem em conta a capacidade tecnopolítica e a experiência profissional dos candidatos – caso, por exemplo, dos dirigentes de agências reguladoras –, mas o sistema político, de alguma maneira, resiste e tende a atender sua própria lógica na indicação destes nomes.
Finalmente, há áreas em que o serviço público lança mão de temporários – como no caso de brigadistas para o combate a incêndios ou recenseadores de pesquisas oficiais. Todavia, ainda assim, os candidatos devem ser selecionados com base em processos seletivos simplificados. Cabe também ressaltar que muitas pessoas trabalham no setor público por meio de outros vínculos. São bolsistas, residentes, terceirizados e provedores de serviços públicos realizados por organizações do terceiro setor. A expressão “profissionais públicos”, numa perspectiva ampla, abrange todo esse universo.
É sempre bom lembrar que o ingresso no setor público deve estar vinculado ao papel do Estado, à prestação de serviços públicos e à implementação de políticas públicas que busquem o desenvolvimento do país, a promoção da inclusão social e o aumento da produtividade e da competitividade da economia. Governos que não valorizaram o Estado como indutor do desenvolvimento e agente de políticas redistributivas não buscaram desenvolver capacidades institucionais in house, para o que a realização dos concursos públicos é fundamental.
Francisco Gaetani é Secretário Extraordinário da Transformação do Estado do Ministério da Gestão e Inovação.
Fernando S. Coelho é professor de administração pública da USP e integrante do Movimento Pessoas à Frente.
Movimento Pessoas à Frenteé uma organização da sociedade civil, plural e suprapartidária. Com base em evidências, ajuda a construir e viabilizar propostas para aperfeiçoar políticas públicas de gestão de pessoas no setor público, com foco em lideranças. A rede de membros do Movimento Pessoas à Frente une especialistas, parlamentares, integrantes dos poderes públicos federal e estadual, sindicatos e terceiro setor, que agregam à rede visões políticas, sociais e econômicas plurais.
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