Coluna

Luciana Brito

A terra é nossa! O som que vem das vozes negras de Sharpeville

21 de março de 2022

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Enquanto as pessoas lutavam pela dignidade das suas próprias vidas na África do Sul, não sabiam que também estavam lutando pelas nossas liberdades

No dia 21 de março de 1960, a juventude negra que vivia no bairro de Sharpeville, no sul da cidade de Johannesburgo (África do Sul), decidiu pacificamente marchar contra o regime do apartheid. Gritando palavras de ordem como “liberdade” e Izwe Lethu, termo da língua Xhosa que significa “a terra é nossa”, reivindicaram o direito de viver seu cotidiano sem o controle policial. Desde a implementação do regime em 1948, cada vez mais as leis tinham o objetivo de manter o controle sobre a população negra sul-africana, implementando não somente medidas de restrição de acesso à educação, emprego, saúde, impondo acesso a serviços de forma segregada, mas também implementando um sistema de vigilância que restringia o acesso a direitos humanos. O papel da polícia era, portanto, fazer valer a garantia do regime do apartheid através de extrema violência.

Mas voltando ao protesto de Sharpeville : ele tinha o objetivo específico de mostrar revolta contra a exigência dos “passaportes”, exigência que ficou conhecida como “Lei do Passe”,implementada a partir de 1952 e que exigia somente que a população não branca portasse passaportes dentro do seu próprio país. Através desses documentos, as pessoas deveriam obter autorização para transitarem nas ruas, desde que estivesse justificada a razão para a ida ou a vinda de algum lugar, além de informações sobre a/o portador do documento como endereço e tempo de permanência em trânsito. Somente assim, com autorização policial atestada nos passaportes, homens e mulheres sul-africanos poderiam circular pelas ruas das cidades daquele país onde eram maioria da população.

O protesto contra a“Lei do Passe” contou com a participação de 4.000 manifestantes que marchavam pacificamente até que policiais começaram a atirar contra a multidão de pessoas desarmadas , que passaram a correr para todos os lados. De acordo com dados do serviço médico que atendeu os manifestantes, cerca de 70% das vítimas receberam tiros pelas costas, enquanto corriam. Em torno de 200 pessoas ficaram feridas, e 69 delas, incluindo mulheres e crianças, foram mortas. Segundo o repórter Humphrey Tyler , jornalista que foi testemunha do massacre de Sharpeville e autor de um livro sobre esse protesto, os policiais atiravam não somente do solo, mas também enquanto estavam de pé sobre as viaturas, disparando tiros para todos os lados enquanto assistiam uma multidão cair no chão, pouco a pouco.

Aquele que deveria ser mais um protesto organizado pelo partido CNA (Congresso Nacional Africano) tornou-se um dos maiores atos de combate ao regime do apartheid, ganhando repercussão internacional, assim como as fotos dos mortos sendo carregados por policiais e jogados em caminhões, sem que as famílias tivessem acesso aos seus corpos. Dali por diante, com imagens e vídeos que circularam o mundo, após o sacrifício de 69 vidas, uma mobilização internacional tomou a iniciativa de condenar o regime do apartheid da África do Sul, tratado até o momento como um problema interno. Diversas sanções internacionais foram impostas ao país, cujo regime segregacionista passou a ser condenado pelas Nações Unidas. Em 1964, a África do Sul foi banida do Comitê Olímpico Internacional, e foi a partir de Sharpeville, também, que ativistas de movimentos por direitos civis nos Estados Unidos passaram a ver similaridades entre o racismo sofrido pela população negra estadunidense e a sul-africana.

Em 1966, a ONU instituiu o dia 21 de março, dia de aniversário do massacre de Sharpeville, como Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. Este dia também é feriado na África do Sul, onde se celebra o Dia dos Direitos Humanos, e é aqui, dentre as diversas outras coisas, que isso nos interessa.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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