A valsa de águas-vivas: racismo e patrimônio cultural em Juiz de Fora, Minas Gerais
Autoria
Dalila Varela Singulane
LattesÁrea e sub-área
História e Sociologia
Publicado em
em 02/03/2021 no Repositório Institucional da UFJF
Como participar?
A dissertação analisou por que o Brasil é um país tão lento em tomar medidas que resguardem e preservem os patrimônios históricos relativos às populações negras e indígenas.
O trabalho teve como foco a cidade de Juiz de Fora (MG), que estabeleceu políticas públicas pioneiras na área de preservação do patrimônio histórico cultural, mas que até hoje contempla pouco as heranças culturais da sua comunidade afrodescendente e originária. A partir desse caso, a pesquisa observou que a não preservação desses locais e objetos deve-se muito a um entendimento do que é “patrimônio” baseado em valores e filosofias embranquecidas.
Por que o Brasil demorou quase 50 anos para proteger legalmente o primeiro bem cultural referente à memória negra? Por que isso acontece ainda de forma tão espaçada, sendo que nossa primeira legislação nacional de proteção data de 1937?
Dessa forma, a pesquisa igualmente responde ao seguinte questionamento: Por que, ainda hoje, temos um número tão baixo de bens tombados ou registrados frutos de heranças culturais da população negra e indígena, em comparação aos bens que correspondem à invasão colonial?
Na área do patrimônio cultural, tudo se passa como se o racismo estrutural da nossa sociedade também não estivesse presente e direcionando as políticas de preservação do país. Ao longo da pesquisa, foi possível perceber a associação da não proteção a argumentações no campo da estética e da técnica, porém é necessário lembrar que o Brasil teve políticas de branqueamento da população até meados da primeira metade do século 20, juntamente com a difusão da ideia de que vivíamos uma democracia racial, e que a seleção de bens culturais condizia com esses ideais do Estado brasileiro.
Assim, o sistema de preservação do patrimônio cultural corroborou para o apagamento da população negra e dos povos originários, afinal o projeto de nação que se tinha no período não abarcava a valorização e respeito a essa parcela da sociedade. Destaca-se também o rompimento com a ideia recorrente na bibliografia da área de que os profissionais que atuavam no campo do patrimônio cultural à época da fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual IPHAN, dita fase heroica, eram somente técnicos, pois a seleção de bens diz respeito à atribuição de valor simbólico, individual ou coletivo às coisas. Isso quer dizer que os ditos técnicos do SPHAN e sua atuação podem ser melhor compreendidos se analisados a partir da categoria de intelectuais, uma vez que forneciam princípios-guia para a política de preservação brasileira.
A pesquisa concentra-se na reflexão sobre o racismo estrutural presente na sociedade brasileira e, aqui como eixo central de discussão, a formação do patrimônio cultural. Entende-se que o racismo é componente basilar das dinâmicas sociais, econômicas e políticas no Brasil e, por isso, também está presente no campo da cultura, proteção e preservação de bens. A partir dessas ideias, analisou-se a construção da política de preservação e seu órgão oficial, buscando compreender seus agentes como indivíduos políticos, imbuídos de percepções e direcionamentos ideológicos próprios de seu tempo.
Nesse sentido, correntes filosóficas emergiram e auxiliaram na compreensão da formação do patrimônio, visto que se percebe uma ampla capilaridade das ideias de determinismo social, raça e do mito da democracia racial como bases fundamentais da cultura no país. Dessa forma, desde 1937 até a atualidade, é possível perceber como essas ideias continuamente guiaram as seleções preservacionistas no país.
Compreendendo que essa é uma realidade presente na maior parte dos municípios brasileiros, focalizamos Juiz de Fora, Minas Gerais, como estudo de caso, visto seu pioneirismo na proteção e significativo número de bens protegidos. O município concentra seus bens em partes específicas de sua área urbana, resguardando a memória e história de alguns grupos e silenciando tantos outros, o que acreditamos estar intimamente ligado ao racismo estrutural. Além disso, um processo de registro em tramitação de uma manifestação evidentemente racista contribui para a reflexão sobre as formas como o racismo se apresenta na sociedade e na sua percepção de cultura.
Concluiu-se que as políticas de preservação brasileiras são permeadas pelo racismo e, consequentemente, inferiorização de bens culturais da população negra desde a fundação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), atual IPHAN. Tais práticas foram fixadas em âmbito federal e são reproduzidas a nível estadual e municipal até os dias atuais, como foi possível perceber através da análise do patrimônio cultural de Juiz de Fora.
No município, o baixíssimo número de bens que se referem à memória negra e indígenaprotegidos legalmente e sua relevância no desenvolvimento local revelam o silenciamento sistemático do passado rural e escravocrata da região. A pesquisa ressalta que a dinâmica da preservação e o viés racial se sobressaem à questão de classe, uma vez que analisando a preservação em bairros periféricos ao centro político e comercial, ficou evidente que são as localidades habitadas por trabalhadores brancos – oriundos de políticas de imigração do Brasil na Europa – as únicas que concentram patrimônios culturais legalmente reconhecidos. É inexistente a presença de bens culturais protegidos legalmente nos bairros historicamente ocupados pela população negra no pós-abolição.
Além disso, o processo ainda em aberto de reconhecimento legal do Bloco Caricato Carnavalesco Domésticas de Luxo como patrimônio cultural imaterial juiz forano escancara o racismo velado de nossa sociedade e é um exemplo preciso do que Adilson Moreira classificou como racismo recreativo. Essa manifestação cultural consistia na prática do blackface pelas ruas da cidade, isto é, homens brancos se vestiam com malhas de cor preta e perucas que imitam cabelos crespos e pintavam seus rostos exacerbando os traços físicos, imitando o que acreditavam ser o estereótipo de mulheres negras trabalhadoras domésticas. Com encenações vexatórias, o bloco acontecia nesses moldes desde 1958, foi considerado de Utilidade Pública pela Lei Municipal n°12.094, de 30 de julho de 2010, e foi interrompido somente em 2019, após seus organizadores serem chamados para uma conversa com representantes da OAB-JF. Ao longo dos anos e das crescentes acusações de racismo, seus organizadores rebatiam as críticas afirmando o caráter de homenagem que prestavam às mulheres negras, mesmo com o movimento negro há anos mostrando sua indignação e protestando nos dias de Carnaval.
Gestores e gestoras, assim como os quadros de funcionários/as das diversas áreas do conhecimento, que atuam com o patrimônio cultural em nível federal, estadual e municipal. Isso porque é responsabilidade do Estado reconhecer o racismo existente em suas instituições e, a partir daí, traçar caminhos para construção de políticas efetivamente antirracistas.
Dalila Varela Singulane é doutoranda em História pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e mestra, bacharela e licenciada em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela mesma instituição. Voluntária no Museu de Arqueologia e Etnologia Americana. Editora-chefe da revista Faces de Clio e Gerente Editorial da Locus: revista de história, ambas vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em História da UFJF. Coordenadora-geral da APG-UFJF (Associação de Pós-graduandos). Tem experiência com palestras sobre racismo e antirracismo.
Referências
- Almeida, Silvio Luiz de. 2020. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra.
- Bobbio, Norberto. 1997. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora UNESP.
- Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA.
- Moreira, Adilson. 2020. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra.
- Schwarcz, Lilia Moritz. 1993. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1931. São Paulo: Companhia das Letras.