Uma história da educação domiciliar no Brasil (1996 – 2023)
Autoria
William Marcos Botelho
LattesÁrea e sub-área
Educação/História da Educação
Publicado em
26/04/2024
Como participar?
A regulamentação da educação domiciliar se tornou um importante tópico das discussões políticas dos últimos anos. A partir de um Projeto de Lei, estabelecido no primeiro ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que buscava lançar as bases para a permissão da prática educativa, se abriu uma discussão em diferentes Casas Legislativas e até um julgamento no Supremo sobre a constitucionalidade do tema. Atualmente, o PL segue em tramitação no Senado.
Esta pesquisa analisa como o tema da educação domiciliar – prática que estabelece o ensino das crianças pelos pais ou tutores, em geral sem interferência ou controle social do Estado – aparece em diferentes âmbitos do debate público, como na imprensa e nas discussões legislativas e judiciárias. Mostra também como, nos últimos anos, a prática educativa tem se transformado em um terreno fértil para modelos de negócios focados em vender cursos que deem suporte a aulas ministradas em casa.
Quais são as propostas dos grupos políticos que lutam pelo direito à educação domiciliar? E quais argumentos utilizam para defender sua causa nas instâncias legislativas?
O debate sobre a educação domiciliar levanta questões sobre movimentos sociais contemporâneos que disputam formas de compreensão da escola e da educação pública. Além disso, relaciona diferentes atores que lutam pela dominância nas representações de educação, identidade, poder e política.
A pesquisa busca apresentar esses elementos contemporâneos importantes que concorrem na zona das lutas sociais, historicizando a condição da educação domiciliar e dialogando com bibliografias especializadas e ordenamentos jurídicos, de modo a contribuir para o preenchimento de lacunas sobre o tema.

Em 2022, Bolsonaro assinou PL que pretende regulamentar a educação domiciliar
Nos atuais debates sobre educação domiciliar no Brasil, é possível ver diferentes grupos políticos disputando significados do termo e formalizando-o como uma prática de atendimento privado da educação pública. Vários argumentos são lançados para isso, que abarcam desde o “poder parental”, até a liberdade de escolha no mundo democrático.
Apesar dos diferentes desenhos sociais, percebe-se que nenhum desses temas é novo, embora na documentação atual a educação domiciliar se apresente como uma vertente de inovação pedagógica. Pretende-se com este trabalho fazer uma discussão sobre os significados históricos da educação domiciliar, dando ênfase aos debates políticos e jurídicos apresentados mediante a proposição de interesses de grupos que a defendem.
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Busca-se o entendimento da pauta da educação domiciliar principalmente apresentado no processo de ordenamento jurídico proposto por membros da sociedade civil. Diferentes grupos se mostram favoráveis à liberdade de educação domiciliar, fazendo pressão política pela liberação do direito, mas há uma força peculiar que faz parte desse processo, composta pela relação entre famílias de classe média abastadas e discursos de empresários da educação, no sentido de liberdade de um currículo pelo “empreendimento”.
O conjunto dos documentos analisados é composto, principalmente, por discussões parlamentares, debates sobre a pauta no Supremo Tribunal Federal, documentos produzidos por associações defensoras da educação domiciliar, arquivos de Casas Legislativas e materiais da imprensa diária e especializada em educação.
A pesquisa analisou o tema da educação domiciliar em diferentes âmbitos sociais, políticos e jurídicos, de modo a produzir uma visão ampla sobre como suas ideias circulam no debate público.
No que diz respeito à imprensa, o trabalho analisou notícias e reportagens dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e o site G1 relacionadas ao tema. O interesse era identificar os discursos e vozes de sujeitos que participavam do processo, assim como as ambiguidades entre a pretensa e falsa neutralidade da imprensa diante dos fatos. Essas marcações de sentido foram identificadas no caso da Folha de S.Paulo e do G1, que tanto mostraram a prática como alternativa possível ao Brasil como fizeram alusão ao sucesso da ideia ao comparar situações brasileiras com as do exterior, principalmente dos Estados Unidos.
O que pôde-se constatar das decisões dos ministros do Supremo sobre o tema foi que eles desejavam enfrentar a educação domiciliar no plenário de uma vez e estabelecer entendimentos sobre a proposta. De 2012 a 2018, foram realizados debates na Corte acerca de temas como: direito parental, controle social, aperfeiçoamento da educação, importância da escola e dos educadores para a formação, etc. Nesse processo, abriu-se espaço para que protagonistas atuantes em defesa da educação domiciliar fossem formalmente conhecidos e tivessem a oportunidade de apresentar seus argumentos e documentos sustentando a tese de defesa da constitucionalidade da proposta.
Houve um alinhamento do Poder Legislativo com a defesa do tema, mas na maioria dos casos pautado por políticos nas suas respectivas Casas Legislativas com intuito de “fazer política”, ou seja, apresentar um projeto de lei, mesmo inconstitucional, para realizar debates e agradar possíveis eleitores.
O Poder Executivo, sob administração do governo de Jair Bolsonaro, foi uma das instituições de Estado que mais atuou para a implementação da educação domiciliar no Brasil. O governo mobilizou o Ministério da Educação e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, além de suas secretarias e servidores para a defesa da proposta de campanha.
Observamos, além disso, uma mudança de estratégia na condução da temática da educação domiciliar, que envolveu a reorganização dos grupos interessados e o direcionamento para criação de plataformas digitais e congressos prestadores de serviço do ramo, visando a defesa da educação domiciliar. Os intelectuais da prática “inovam” na aliança neoconservadora com o neoliberalismo e se inclinam para os benefícios da ideologia e suas estratégias de mercado.
Passadas as fases iniciais de apresentação do tema à sociedade, a visibilidade na imprensa e disputas no Judiciário e no Legislativo, com considerável suporte técnico e apoio político do Poder Executivo, notou-se um redirecionamento a partir, provavelmente, da leitura que o grupo fez sobre o saldo adquirido nesses últimos anos.
Neste sentido, o nosso estudo confirma a nossa hipótese inicial de que esse tipo de educação patrimonial apresentada nos PLs e que circula em diferentes veículos de comunicação parece ser o resultado dos anseios, principalmente, de famílias estimuladas e relacionadas aos setores empresariais e a grupos estrangeiros defensores da causa que abrem uma discussão sobre a necessidade de liberalização do Estado em matéria de ensino oferecido ao público. É possível visualizar que diferentes grupos, políticos, partidos, utilizem da educação domiciliar para vários interesses e pautas diferenciadas, mas que se coligam à matéria como elemento de interesse.
O uso da educação para conquistar mentes e corações com interesse direto no acesso a fundos públicos e, consequentemente, a gestão desses equipamentos, sob a justificativa de uma prestação de serviços com eficiência e resultado melhores do que o Estado pode promover é um outro grande fundo de interesses desses grupos. Contudo, não podemos perder de vista que as famílias que praticam a educação domiciliar, estando articuladas ou não com estes interesses ou estritamente focadas na formação de seus filhos, revelam e pressionam a educação pública ou privada a repensar sua atuação na sociedade.
Estudiosos da área da educação, formuladores de políticas públicas e o público em geral.
William Marcos Botelho é professor de história na Prefeitura de São Paulo, doutor e mestre em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui graduação em história pela Universidade Bandeirantes de São Paulo. É pesquisador dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos Escola por seus objetos e Grupo de Estudos e Pesquisa Os Impactos do Conservadorismo na Educação Brasileira. Tem experiência e interesse de pesquisa em temas como movimentos sociais, história da educação, prática de ensino, cultura escolar, educação domiciliar, etc.
Referências
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- BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. – São Paulo: editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
- ______. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
- DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
- FREITAS, Luiz Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. – São Paulo: Expressão Popular, 2018.