“Defender o Estado laico é o nosso dever e nossa salvação”: o ativismo feminista cristão no Brasil
Autoria
Maria Eduarda Antonino
LattesÁrea e sub-área
Sociologia Feminista e da Religião/Movimentos Sociais
Publicado em
01/05/2024
Como participar?
É possível ser cristã e feminista? Em 2022, a cientista social evangélica Simony dos Anjos esclareceu em artigo na Carta Capital que sim: é possível ser cristã e feminista, e faz tempo que as duas coisas deixaram de ser opostas. No entanto, dos Anjos ressalta que, num cenário “neoconservador”, em que as diversidades religiosas e de gênero são constantemente ameaçadas por discursos extremistas que distorcem os fatos, ser uma feminista cristã ativa também é ser um constante alvo de ameaças.
Esta pesquisa explora a oposição entre religião e política e discute os desafios do ativismo feminista cristão no Brasil. Mostra ainda como o conceito de laicidade pode ser usado estrategicamente para incluir, e não minar, ativistas religiosas da participação política e social.
Se as lutas feministas trazem à esfera pública questões antes tidas como privadas (violência, maternidade, tarefas domésticas), não seria a religião outra dimensão digna de se politizar?
As questões de gênero estão no cerne da ascensão “neoconservadora” em curso mundialmente, que cada vez mais tem sido fortalecida politicamente pelo uso instrumental de uma gramática cristã – um conjunto de valores, discursos, símbolos, práticas e narrativas associados à tradição cristã, que são mobilizados como ferramentas discursivas e políticas para legitimar e fortalecer agendas. Esse movimento realça a importância de uma força contra-hegemônica a respeito das questões de gênero, como o ativismo cristão feminista, cuja singularidade reside na possibilidade de ocupar um espaço próprio e único para falar com autoridade e complexidade sobre assuntos tão internos ao mundo da religião, sem se reduzir a eles.

Ato da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir
Ao mesmo tempo, esse ativismo desafia outras abordagens feministas e grupos que lutam pela diversidade social, os quais defendem que a participação pública das religiões é uma manifestação insuficiente da modernização, secularização – processo em que abandona-se gradualmente as práticas religiosas das estruturas sociais – ou democratização.
Antes de iniciar, gostaria de pontuar que o meu lugar de fala é o meu lugar de pesquisa. Diante disso, minha militância é um ativismo intelectual porque estou produzindo conhecimento a partir do que os movimentos sociais estão articulando e anunciando.
Na academia, as pesquisas que interseccionam a política com a religião tendem a se preocupar, de forma mais expressiva, com a participação evangélica na política partidária. São poucas as pesquisas que estão interessadas na política religiosa que se faz nas ruas, em particular o ativismo feminista cristão brasileiro.
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Por décadas, relacionar a opressão das mulheres à religião era uma ideia dominante no contexto ocidental, não só nos debates políticos e populares, mas nos próprios círculos acadêmicos. Em consequência desse entrecruzamento afirmativo, defendia-se uma incompatibilidade entre ser “religiosa e feminista”; ou se era uma coisa ou outra, nunca as duas ao mesmo tempo. As inquietações decorrentes deste pensamento eram várias, que podem ser sintetizadas na seguinte questão: Como a mulher pode fazer parte de uma instituição religiosa conservadora (patriarcal) e, ao mesmo tempo, lutar por seus direitos?
Na atualidade, pelo menos do ponto de vista empírico e histórico, essas interrogações acerca da noção de que as mulheres religiosas não têm agência, de que as tradições religiosas são inerentemente patriarcais, ou de que ser “religiosa e feminista” é uma contradição intransponível já foram amplamente contestadas através das estudiosas acadêmicas e ativistas religiosas. Há uma proliferação de estudos fascinantes dentro de diversas comunidades religiosas e em vários contextos geográficos que exploraram o potencial de conciliação, negociação e integração entre o feminismo e a religião.
No Brasil, país majoritariamente cristão, a religião é de grande importância, tanto para a ordem social, quanto para a identidade do indivíduo, e não incluí-la em uma análise pode resultar em simplificações e distorções. Muitas mulheres brasileiras podem não se identificar enquanto feministas, mas é possível dizer que todas estão envolvidas no espírito do tempo feminista.
Os dados da pesquisa Update, publicados no livro “Feminismo em Disputa: Um Estudo sobre o Imaginário Político das Mulheres Brasileiras”, revelam que a mulher brasileira, apesar das diferenças relacionadas à renda, cor, religião e região do país, é em média conservadora, religiosa e também favorável à igualdade de gênero. Então, mais do que nunca, é preciso entender como as mulheres articulam a religião com o feminismo para além da perspectiva secularista e seu enquadramento polarizado, desde a religião associada ao “obscurantismo” e à “irracionalidade”, ao feminismo vinculado ao “secular”, ao “moderno” e ao “racional”.
Sendo assim, se as mulheres constituem a maioria das pessoas religiosas no Brasil, o feminismo como um projeto conceitual e prático voltado para a emancipação do gênero feminino deve reconhecer: o papel da religião como uma “força inovadora” e/ou “um catalisador de mudanças sociais e políticas”, além de reconhecer as feministas “religiosas” como aliadas na luta pelos direitos das mulheres.
Os atores do ativismo cristão feminista não atuam em uníssono, assim como os ativismos feministas de modo geral. Eles também são atravessados por divergências teóricas, teológicas, políticas e organizacionais. Se no início tínhamos apenas alguns poucos representantes, como, por exemplo, a organização histórica Católicas Pelo Direito de Decidir (1993) e o Flor de Manacá (2006), hoje já temos uma ampliação e multiplicação desses espaços. Essa expansão inclui a emergência de coletivos feministas negros, como a RMNE (Rede de Mulheres Negras Evangélicas) e o MOSMEB (Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil), que articula questões de gênero e raça a partir de uma perspectiva cristã, reconhecendo o papel central das mulheres negras nas comunidades religiosas e na luta por justiça social.
Para além da virtualidade que concentrou a maioria dos atores do ativismos cristão feminista, se pensarmos em termos de distribuição geográfica, são grupos que pertencem majoritariamente às regiões sudeste e nordeste do país, mas que vêm se espalhando pelo Brasil.Na maioria dos casos, os atores estão engajados em práticas diversas, como: ativismo formativo e educativo; ativismo digital e mobilização virtual; ativismo voltado para acolhimento e assistência; ativismo estético e identitário; e ativismo político com foco na incidência pública.
Essas práticas não apenas desafiam e subvertem as estruturas patriarcais presentes nas igrejas, mas também ampliam as fronteiras do feminismo e da religião, promovendo ações transformadoras no espaço público. As ativistas são mulheres cristãs, mulheres que oram, que vão à igreja ou estão “desigrejadas”, mas escolheram continuar a crer. Mulheres que, por meio da sua fé cristã (e não apesar dela), questionam e propõem inúmeras ações de mudança. E que, nos últimos anos, foram convocadas a colocar sua cara na rua para denunciar e se posicionar diante do atual cenário político brasileiro.
Hoje, o sujeito político “progressista” já pode ter raça, sexualidade e gênero distintos, mas termina não podendo ser realmente “religioso”, pelo fato de termos sido moldados por uma consciência normativa de que qualquer experiência religiosa deve estar no privado, e que só são atores legítimos aqueles que defenderem slogans como “meu útero é laico”.
Num país onde os sentidos da laicidade são recorrentemente disputados por atores diversos, o quão estratégico é que seguimos mobilizando a laicidade? De qual laicidade estamos falando? Será que alcançamos as pessoas cristãs afirmando que o “útero é laico”?
No meio disso tudo, o ativismo cristão feminista vai à público mobilizando identidades múltiplas e não excludentes. Apresentam-se como “cristãs”, “evangélicas”, “católicas”, “feministas”, “progressistas”, “crentes”, “de esquerda”, “negras”, etc. Isto é, essa multiplicidade de pertenças que opera desafiando a lógica de homogeneidade no cristianismo brasileiro. Afinal, uma militância política-religiosa só tem sentido se for capaz de dialogar com as pessoas que estão sentadas nos bancos das igrejas – e que talvez nunca tenham tido contato com uma “fé transformadora”.
Assim, o slogan “meu útero é laico” termina reacendendo o binarismo irreal entre laico e religioso, além de defender uma separação (entre religião e política) que de certa forma mina a própria participação das ativistas na política. A laicidade tornou-se a opção padrão do nosso tempo contemporâneo secular, mesmo que nossa historiografia apresente o contrário – em que a política é tão religiosa quanto a religião é política. Em consequência disso, acreditamos que existe uma verdadeira dificuldade da sociedade brasileira em compreender a religião que transgride as marcas da institucionalidade, do dogmatismo e da moral, acessando a materialidade da fé que se cerca de objetos, de coisas, de falas, de lutas e de resistências.
Religiosos, ativistas sociais, grupos feministas e pesquisadores do tema.
Maria Eduarda Antonino é doutoranda em sociologia pela PPGS/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), mestre em ciência política pela PPCP/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisadora de gênero e feminismos no (Laberp/FUNDAJ/UFPE) Laboratório de Estudos de Religião e Política.
Referências
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- ROSADO, Maria José (2015). Gênero, feminismo e religião: Sobre um campo em constituição. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.
- SERRA, Cris. (2020) Construção de identidades e pertenças entre a “religião” e seus “outros”: “cristãos LGBTI+” e “feministas cristãs” no Brasil “evangélico.45º Encontro Anual da ANPOCS, GT48 – Religião e Sociedade: reunir temáticas e revisitar limites.
- WOODHEAD, L. (2008), Gendering secularisation theory. Coscial Compass, v. 55, n.2, 189- 195.