Acervos presidenciais brasileiros: entre o patrimônio público e a propriedade privada
Autoria
Renato de Mattos
LattesÁrea e sub-área
Ciência da Informação/Arquivologia
Publicado em
04/09/2024
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Entre os meses de março e agosto de 2023, o noticiário político brasileiro gravitou, em grande parte, ao redor do mesmo assunto: a polêmica envolvendo colares, anéis, canetas, abotoaduras e relógios ofertados pelas autoridades da Arábia Saudita ao então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e sua esposa, Michele Bolsonaro.
Para além das circunstâncias atípicas em que os objetos ingressaram no país, outro aspecto amplamente discutido na imprensa foram questões sobre quem tem juridicamente a posse dos presentes diplomáticos recebidos por pessoas que exercem a Presidência no Brasil.
Os itens que integram os acervos presidenciais pertencem aos titulares do cargo ou ao patrimônio brasileiro?
Desde a promulgação da lei n.º 8.394, de dezembro de 1991, os acervos documentais privados dos presidentes da República integram o patrimônio cultural brasileiro e são declarados de interesse público.

Joias dadas ao governo Bolsonaro pela Arábia Saudita
No entanto, mesmo que tais documentos sejam reconhecidos como fontes relevantes para a história da República brasileira, a legislação vigente não estabelece critérios claros e coerentes acerca da sua natureza jurídica.
É o que podemos observar no acórdão n.º 2.255, de 2016, registrado pelo TCU (Tribunal de Contas da União), que inclui no rol de documentos que integram o acervo privado “os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo presidente da República”.
Com efeito, a imprecisão das expressões “natureza personalíssima” e “consumo direto” abre espaço para diferentes interpretações, a ponto de terem sido empregadas simultaneamente na argumentação apresentada tanto pelas autoridades de acusação quanto pelos advogados de defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando indagados sobre a destinação das joias e de outros presentes valiosos recebidos durante o seu mandato.
O artigo problematiza os critérios legais que orientam a distinção entre a natureza pública e privada dos acervos presidenciais brasileiros. Constata-se a existência de ambiguidades na legislação vigente que impactam a preservação de parcela do patrimônio documental.
O recente debate envolvendo os presentes recebidos pelo ex-presidente Bolsonaro demonstra como a discussão sobre a distinção entre documentos públicos e privados da Presidência permanece à mercê de escândalos políticos e denúncias isoladas de desvios de ex-presidentes.
Nesse contexto, é necessário observar o “silêncio eloquente” da Comissão Memória dos Presidentes da República — instância criada em 1991, responsável pela coordenação do sistema de acervos documentais privados dos presidentes – durante a recente controvérsia e em todas as anteriores envolvendo os acervos presidenciais.
A comissão permanece alheia às discussões suscitadas pelas possíveis práticas de crimes envolvendo os desvios dos presentes recebidos pelo ex-presidente entre 2021 e 2022, assim como se manteve distante durante o processo conduzido pelo TCU acerca dos acervos de Lula e Dilma Rousseff.
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Por fim, as reflexões empreendidas nesta pesquisa apontam para a importância da participação de profissionais do campo arquivístico nos debates sobre os conjuntos documentais dos presidentes da República a fim de que as imprecisões e ambiguidades da legislação sejam sanadas.
Legisladores, profissionais e acadêmicos de áreas voltadas à preservação do patrimônio documental brasileiro.
Renato de Mattos é doutor em história pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense). Bolsista do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas sobre arquivos presidenciais, arquivologia e história do Brasil.
Referências
- ARDAILLON, Danielle. (org.) Documentos privados de interesse público: o acesso em questão. São Paulo: IFHC, 2005.
- CAMARGO, Ana Maria de Almeida; GOULART, Silvana. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo: IFHC, 2007.
- LOPES, Bruna; RODRIGUES, Georgete. M. Os acervos privados de presidentes da República no Brasil. InCID: Revista de Ciência da Informação e Documentação, Ribeirão Preto, SP, v. 10, n. 1, p. 64-80, 2019.
- MATTOS, Renato de. Notas Técnicas: Projeto de Lei n.º 6.228/2023 e os acervos presidenciais brasileiros: potenciais avanços e desafios a superar. Santa Maria: Honório – Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas Arquivísticas, v. 1, n. 4, mai. 2024. Disponível em: https://www.grupohonorio.org/publicacoes/notas_tecnicas. Acesso em: 19 out. 2024.
- _________. Entre o interesse público e o privado: natureza jurídica e amparo legal dos acervos presidenciais brasileiros. In: R. de Mattos; V. M. M. da Fonseca; L. M. Campos; L. S. de Freitas. (org.). Tendências de pesquisa no PPGCI/UFF: abordagens e perspectivas. São Paulo: Tikinet, 2020, p. 106-122.