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Na reta final da campanha presidencial brasileira no ano passado, a Nature, possivelmente a revista científica mais prestigiosa do mundo, publicou um editorial dizendo que “havia apenas uma opção na eleição – para o país e para o mundo”.
Nele, os editores argumentam que a reeleição de Jair Bolsonaro seria desastrosa, por razões pra lá de sabidas: a redução de proteções legais ao desmatamento da Amazônia, a negação dos riscos da covid-19, a sabotagem a programas de vacinação e a redução no financiamento da ciência e educação superior no país. Não era a primeira vez que a revista se posicionava em uma eleição: em 2020, ela havia apoiado Joe Biden contra Donald Trump, citando razões parecidas.
Em março deste ano, a Nature Human Behaviour, uma das franquias do grupo editorial, publicou um estudo questionando a estratégia. Nele, o economista Floyd Zhang descreve um experimento em que voluntários online foram aleatorizados para receber ou não o editorial, para depois emitirem opiniões sobre a Nature e os cientistas em geral.
Por que tentar ser neutro poderia ser importante – particularmente quando Bolsonaro ou Trump estão envolvidos? Talvez pela mesma ideia de ‘defesa das instituições’ levantada como bandeira pela oposição.
Os resultados foram previsíveis: após lerem o editorial, apoiadores de Trump, que já se mostravam mais desconfiados da ciência antes disso, manifestaram menos confiança no conhecimento e imparcialidade não só da revista, mas dos cientistas como um todo – ainda que a diminuição tenha sido bem maior no primeiro caso. Também se mostraram menos interessados em receber material da Nature sobre novas variantes de covid-19. Previsivelmente, nada disso foi observado entre apoiadores de Biden. Com base no estudo, o autor sugere que o posicionamento político de revistas científicas pode minar a confiança pública na ciência.
A Nature se defendeu – e em um novo editorial , argumentou que “quando candidatos ameaçam um recuo da razão, a ciência deve se pronunciar”. Ainda que reconheçam os riscos de posicionar-se, os editores alegam que, nos casos de Trump e Bolsonaro, “o silêncio não era uma opção”, e que pretendem seguir apoiando candidatos quando necessário. O editor-chefe da Science, Holden Thorp, fez coro, afirmando no Twitter que cientistas não podem se resignar a “sentar-se na mesa das crianças” e devem revidar a quem tente dissuadi-los de tomar partido em debates políticos.
A resposta foi uma saraivada de críticas. No Washington Post , o colunista conservador Ramesh Ponnuru rebateu dizendo que não se pode “confiar na ciência” para dizer em quem votar. Já o cientista político Roger Pielke Jr. argumentou que havia formas melhores de se engajar no debate político do que “cheerleading partidário”. Em vários comentários, havia a sugestão irônica de que os editores da Nature tinham optado por “não seguir a ciência” ao ignorar os resultados do estudo.
O último argumento é um tanto exagerado: um único experimento em condições artificiais não representa “a ciência”, e não deveria ser usado como uma resposta definitiva a uma questão complexa. Dito isso, a controvérsia parece importante, e ecoa questões maiores sobre como a ciência – seja lá o que isso quer dizer – é usada no debate público.
O argumento de quem defende um posicionamento ativo de instituições científicas no debate político – uma postura mais comum entre democratas do que republicanos – costuma ser de que, como qualquer atividade humana, a ciência é política por natureza . Isso faz com que a neutralidade e a objetividade plena sejam impossíveis, como ilustrado por inúmeros estudos de história e sociologia da ciência .
A ideia de que “não existe neutralidade, logo temos que nos posicionar em uma eleição”, porém, comporta uma falsa dicotomia. É óbvio que estamos todos atravessados pela política. Mas a consequência de admitir esse fato pode muito bem ser “não existe neutralidade, mas deveríamos nos esforçar pra permanecer tão neutros quanto possível neste debate em particular”.
E por quetentar ser neutro poderia ser importante – particularmente quando crápulas como Bolsonaro e Trump estão envolvidos? Talvez pela mesma ideia de “defesa das instituições” levantada como bandeira por sua oposição nas últimas eleições – já que as tais instituições, que incluem o jornalismo, a justiça, a universidade e a ciência, em tese deveriam estar acima de interesses partidários.
É óbvio que essa neutralidade é fictícia quando as pessoas que constituem as instituições não são neutras. Mas ela pode existir como aspiração. Se o grande jornalismo raramente apoia candidatos explicitamente, e o Tribunal Superior Eleitoral jamais o faz, isso não é porque editores ou juízes não tenham suas preferências. E sim porque manifestá-las num contexto institucional foge às regras das instituições, colocando em risco a credibilidade delas frente ao público.
Assim como a Nature, jornais como o USA Today também desceram do muro e apoiaram Biden nas eleições, movidos pela sensação de que a democracia e o próprio jornalismo corriam perigo. A resultante do processo, porém, parece ter sido a desconfiança da direita política em relação à mídia tradicional, e sua substituição por canais alternativos como a Fox News e as redes sociais. Com isso, a oposição do jornalismo a Trump, mesmo que justificada, acaba por estimular o eleitorado conservador a ignorá-lo e criar sua própria bolha de informação.
Deveríamos temer que algo semelhante possa vir a acontecer com a ciência? No momento atual, cientistas parecem contar com mais respaldo junto à população do que jornalistas. Ainda que 49% dos votos da última eleição tenham ido para Bolsonaro, quase 90% dos brasileiros receberam pelo menos uma dose de vacina contra a covid-19, a despeito da propaganda negativa do ex-presidente, e menos de 10% dos infectados pela doença declara ter feito uso de medicamentos defendidos por ele. Isso parece indicar que existe um contingente razoável de pessoas que, ainda que identificadas com Bolsonaro, prefere ouvir outras pessoas em assuntos de saúde.
Nada garante, porém, que essa situação vá durar para sempre – até pela experiência dos EUA, que enfrentaram uma hesitação vacinal maior e fortemente determinada por linhas partidárias . Assim como ocorre com o jornalismo, o consenso da ciência institucional sobre temas politicamente carregados como a vacinação levou à proliferação de experts alternativos, que incluem tanto dissidentes da academia como outsiders completos . E os números de seguidores destes nas redes sociais atesta que a criação de ecossistemas paralelos de informação científica acontece facilmente quando a confiança nas instituições é perdida.
É claro que o editorial da Nature não vai levar sozinho a essa situação. Uma causa mais óbvia para a desconfiança da direita política na ciência é sua marcada sub-representação em universidades , o que tem levado segmentos da população a enxergarem-nas como instrumentos de aparelhamento ideológico a serem patrulhados ou desmonetizados . Nesse contexto, porém, o apoio explícito a candidatos por parte de instituições científicas parece jogar lenha desnecessária numa fogueira que alimenta teorias da conspiração mundo afora.
O que fazer então? A resposta não é fácil. O empreendimento científico de fato depende de uma série de condições advindas da política – como financiamento, liberdade acadêmica e respaldo institucional – que podem ser ameaçadas por alguns governos. Mas ele também depende de credibilidade, e de um senso coletivo de verdade compartilhado pela população. É claro que vale a pena defender a ciência quando candidatos a ameaçam. Mas partidarizar as instituições científicas não necessariamente as defende – e pelo contrário, pode criar um telhado de vidro para que sejam atacadas.
Talvez a melhor resposta seja a de que os editores da Nature têm todo o direito de manifestar sua opinião enquanto cidadãos. Mas quando usam o nome e prestígio da revista para alavancá-las – ou pior, quando argumentam que “a ciência deve se pronunciar” – eles parecem tentar indicar que representam “a ciência”. E afora o caminhão de soberba envolvido, sugerir que a ciência apoia candidatos parece uma estratégia ruim para quem se preocupa com sua credibilidade. Mas em tempos de redes sociais e sinalização de virtude , os aplausos da própria bolha costumam disfarçar os gestos que nos isolam dentro dela.
Aliás, falar em nome da ciência em debates políticos – o que Pielke Jr. chama de stealth advocacy , ou “ativismo camuflado” – é uma estratégia que não se limita às eleições. Ela foi usada à exaustão na pandemia de covid-19, ao sugerir-se que decisões políticas como fechar escolas iam a favor ou contra “a ciência”. É óbvio que diferentes linhas de pesquisa podem e devem informar essas decisões. Mas optar por níveis mais baixos de transmissão viral ou de alfabetização, ou entre um candidato e outro, envolve escolhas humanas que não são estritamente científicas.
Nada disso vai me impedir de apoiar um candidato publicamente, ou de chamar Bolsonaro de “crápula” nessa coluna. Mas quem escreve aqui é o Olavo, e não a ciência. Ter que chamar a atenção para esse fato óbvio é um sinal de que a tal ciência, seja lá o que ela for, às vezes precisa repensar sua forma de se comunicar.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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