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Nesse mês de dezembro faz 100 anos que foi publicada a obra-prima de Lima Barreto: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. O escritor pagou do próprio bolso por uma edição barata, cheia de “gatos” – como ele dizia –, e que representava sua aposta maior para entrar na “República Brasileira das Letras” que se montava bem nos inícios do século XX. Ou melhor, das poucas letras. Só isso explica porque um autor do quilate de Lima Barreto tentou por três vezes entrar na Academia Brasileira de Letras, todas elas sem sucesso.
Mais que lamentar, vale a pena refletir sobre os motivos desse fracasso institucional, e acerca dos motivos que fizeram com que Lima Barreto só começasse a ser reconhecido pela crítica a partir dos anos 1970.
A saída não é, com certeza, cair no “vitimismo fácil”, que azeda qualquer interpretação e enreda o escritor em sua época e destino. Afinal, Lima Barreto é mais. De um lado, ele foi, sim, vítima de sua situação: ganhava a vida como amanuense e era arrimo de família desde jovem, uma vez que perdeu a mãe – uma neta de escrava –, ainda menino, e também o pai, que ficou totalmente alienado a partir de 1912. No entanto, passividade não era o nome de Lima Barreto: ele construiu seu grupo e criou estratégias diferentes de inserção no ambiente literário local. Basta lembrar de seus colegas diletos, alguns deles oriundos do curso da Politécnica – o qual Lima Barreto deixou inconcluso. Juntos fundaram a revista Floreal e participaram da mesma confeitaria: a “Papagaio”, onde até o bichano que dava nome ao estabelecimento ficava bêbado a partir da calada da noite. Mas Lima Barreto, ao menos em seu contexto, teve que se contentar também com um menos, se levarmos em conta o tamanho de suas aspirações. Não conseguiu ser aceito nas instituições de prestígio cariocas e sofreu uma espécie de veto disfarçado, recoberto pela indiferença.
Entre tantos mais e menos, melhor explorar as razões do silêncio que se abateu sobre o escritor. Em primeiro lugar, é sabido que Lima Barreto não fazia o “tipo comportado”; estilo que a Academia Brasileira de Letras estimava nesse momento, mesmo que não oficialmente. O escritor era amante contumaz da bebida, e foi internado duas vezes no Manicômio Nacional, em 1914 e 1918, por esse mesmo motivo. Os testemunhos de época o descrevem sempre um pouco ébrio, com seu terno roto, sapatos sem brilho, meias de duas cores e chapéu amassado, perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele era o quase anti-modelo de Machado de Assis ou de João do Rio, esse último um dândi ironizado (injustamente, digamos de passagem) por Lima.
Por sinal, Lima Barreto publicara anos antes, em 1909, “Recordações do Escrivão Isaias Caminha”, romance à clef que descrevia os bastidores de uma redação de jornal, rapidamente reconhecida por todos: esse era segredo de Polichinelo que o próprio escritor tratou de desvendar. O jornal da ficção se chamava O Globo, mas a inspiração vinha do poderoso Correio da Manhã; periódico que Lima era inclusive colaborador, e tinha por lá publicado seu “Triste fim de Policarpo Quaresma”, sob a forma de folhetins.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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